Prática clínica e avaliação económica de intervenções em saúde: conceitos
antagonistas ou complementares?
COMENTÁRIO EDITORIAL
Prática clínica e avaliação económica de intervenções em saúde: conceitos
antagonistas ou complementares?
Clinical practice and economic assessment of health interventions: antagonistic
or complementary concepts?
António Vaz Carneiro*
*Centro de Estudo de Medicina Baseada na Evidência, Faculdade de Medicina da
Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal
Durante 25 séculos a prática clínica não teve qualquer base científica e, por
consequência, a sua eficácia foi quase inexistente (o exemplo mais
paradigmático é a utilização da sangria terapêutica para tratar todas as
doenças e todos os doentes). Neste contexto, as decisões clínicas baseavam-se
exclusivamente na tradição e na relação médico-doente.
O início da investigação científica em saúde no século XVII veio a servir de
base especialmente a partir do primeiro quartel do século XX para a
verdadeira explosão do conhecimento médico, com subsequentes benefícios para os
doentes (que passaram a viver mais tempo e com melhor qualidade de vida). Neste
contexto, as decisões clínicas baseavam-se na selecção dos meios de diagnóstico
e terapêutica que estavam disponíveis, adaptando-os às necessidades do doente
individual.
Este modelo de desenvolvimento foi acompanhado por gastos financeiros
rapidamente progressivos e há uns 30 anos atrás irrompeu com espectacular
premência o conceito de controlo de custos em saúde.
A questão actual que se coloca a médicos, gestores, políticos e pacientes é
saber se se consegue controlar os custos em saúde mantendo (ou aumentando) a
qualidade dos cuidados, para além de aquilo que se convencionou designar como
controlo de custos 1.
Uma das áreas que mais se tem desenvolvido é a da farmacoeconomia, que se
define como a descrição e análise dos custos e benefícios para os sistemas de
saúde e para a sociedade da terapêutica farmacológica, identificando, medindo e
comparando custos e consequências dos medicamentos e dos serviços2. A
importância desta metodologia analítica encontra-se na necessidade de controlar
custos cada vez mais pesados, que crescem a um ritmo superior ao da inflação e
que obrigam a uma reflexão de como é que recursos limitados podem ser usados de
maneira mais eficiente (e efectiva). A eficiência define-se como o benefício
obtido num contexto experimental (por exemplo num ensaio clínico) e a
efectividade é o impacto na vida prática, quotidiana.
Existem três tipos básicos de análise farmacoeconómica: de custo-efectividade
(ACE), de custo-benefício (ACB) e de custo-utilidade (ACU). Cada método mede o
custo em unidades monetárias (euros, dólares, etc.), mas diferem na metodologia
que utilizam para comparações entre os custos e os resultados (outcomes).
Na tabela 1 estão descritas as principais características de cada metodologia.
A metodologia mais utilizada é a da análise de custoefectividade, que mede o
custo em euros (ou outra unidade monetária qualquer) e os resultados em
unidades naturais que indiquem uma melhoria de saúde (tais como taxas de curas,
anos de sobrevida ganhos, baixas de glicémias, etc.). Estes últimos indicadores
são habitualmente estudados em ensaios clínicos, pelo que são de fácil
interpretação para os médicos no que concerne o seu impacto.
Há várias maneiras de apresentar custos e efectividades numa ACE, sendo o rácio
incremental de custo-efectividade (Incremental Cost-Effectiveness Ratio ICER)
o mais utilizado. Este índice procura responder à questão Como é que se
compara um tratamento com outro, em termos de custos e resultados?. O ICER é o
rácio da diferença em custos, com a diferença em resultados numa determinada
intervenção.
Certos autores consideram que uma análise de custoutilidade (ACU) que avalia
os resultados utilizando os anos ajustados para a qualidade de vida (quality-
adjusted life-year QALY) constitui um subconjunto de uma ACE. Uma ACU leva
em linha de conta as preferências dos doentes na medição de consequências em
saúde (as chamadas utilidades). A grande vantagem da ACU é que se podem
comparar diferentes tipos de resultados em saúde (ou doenças com múltiplos
resultados) utilizando precisamente os QALY. A desvantagem é que nalguns casos
pode ser difícil calcular uma utilidade (que é uma preferência dos doentes) e
portanto um QALY preciso está sujeito a viéses 3.
No presente número da Angiologia e Cirurgia Vascular, Paulo Sousa e col.
avaliaram, no contexto Português, o custo-efectividade do tratamento
endovascular (EVAR) no tratamento do aneurisma da aorta abdominal (AAA)
comparado com o tratamento por cirurgia convencional, usando um modelo
desenvolvido previamente no Reino Unido. As variáveis mais importantes para
alimentar este modelo os benefícios e a utilização de recursos, bem como as
consequências a curto e médio prazo basearam-se respectivamente em estudos
clínicos internacionais e num painel de peritos constituído para o efeito (numa
técnica de Delphi em duas rondas). O modelo económico é constituído por uma
árvore de decisão capturando custos e resultados nos primeiros 30 dias após
cirurgia e um modelo de Markov que os avalia a longo termo após aquele período
inicial. Os resultados indicam que a maior diferença no custo da EVAR (mais
3.064) foi devida ao custo directo da endoprótese ( 8,027 versus 968) e que
a segurança das duas intervenções é semelhante em termos de taxas de
complicações e reintervenções. O valor da EVAR foi de 65.605/QALY no curto
termo, valor que desce para metade na projecção de benefícios no longo termo.
Este último valor é próximo do que se convencionou ser uma intervenção custo-
eficaz entre nós, pelo que os autores concluem que o valor económico do EVAR
melhoraria se se confirmassem os benefícios a longo prazo que alguns dos
estudos recentes parecem apontar. Nessas circunstâncias, o tratamento
endovascular tornar-se-ia uma intervenção economicamente interessante que,
aliada aos bons resultados ao nível da efectividade e da qualidade de vida dos
doentes, poderia ser indicada para um maior número de situações clínicas.
Numa breve abordagem crítica deste trabalho, haverá que, em 1º lugar, felicitar
a equipa que o elaborou e a Revista de Angiologia e Cirurgia Vascular que o
publicou. Numa altura de severas restrições económicas na saúde, estudos como
este servem para racionalizar o uso das diversas opções terapêuticas
comparando-as com as alternativas disponíveis, quer no benefício de cada
intervenção quer no seu custo. Só com informação deste tipo se podem
fundamentar as decisões clínicas levando em linha de conta não só os aspectos
clínicos (benefício e risco), como os aspectos económicos. Para além disso,
deverá ser realçada a honestidade intelectual da equipa de autores, que não
hesita em identificar um problema de custo com a técnica que utiliza.
Este estudo tem alguns problemas, dos quais se destacam: 1) a inexistência de
estudos com resultados objectivos sobre a estrutura de custos em Portugal das
técnicas analisadas, o que faz com que os autores tenham extrapolado de um
estudo inglês e de um painel de peritos para alimentação do modelo de Markov
utilizado no cálculo do custo-efectividade do EVAR; 2) a pouca fundamentação
das melhores taxas de sobrevivência no longo termo, já que não há estudos que o
confirmem: deste modo, o benefício pode não ser real, o que coloca dúvidas
sobre o custo-efetividade da EVAR; 3) tal como os autores reconhecem na
discussão, ausência de possibilidade de identificação de subgrupos de doentes
que possam responder de modo diverso à intervenção.
Apesar destes reparos, consideramos que o presente estudo constitui uma válida
adição à área dos estudos económicos em saúde, com resultados claros que podem
servir de base a decisões clínicas, de administração e até de políticas de
saúde.