Papel do suporte transfusional na endarterectomia carotídea: uma mudança no
protocolo de atuação
Introdução
A endarterectomia carotídea é uma cirurgia com risco hemorrágico baixo em que a
hemorragia não controlada ou hematoma cervical grave são complicações raras
(0,7-3%). Quando esta complicação é verificada, parece estar relacionada com
uma hemorragia em toalha de baixo débito (80%), sendo que menos frequentemente
(20%) se verifica associada a um defeito na sutura da arteriotomia ou de
fixação do patch1,2.
O suporte transfusional perioperatório na endarterectomia carotídea raramente é
necessário (até 4%). Existe também uma tendência progressiva para tentar
diminuir o limiar de hemoglobina para o qual se deverão iniciar transfusões de
glóbulos rubros, sem que se verifique um aumento de taxa de complicações1,3.
Por sua vez, o hematoma cervical, neste contexto cirúrgico, pode corresponder a
uma emergência médica e cursar com rápido compromisso de estruturas cervicais
vitais, como a compressão da via aérea e/ou dos próprios eixos vasculares. Para
além disto, surge descrito na literatura associado a um aumento de taxa de
complicações e a maior morbimortalidade, nomeadamente do foro cardio e
cerebrovascular isquémico4.
Desta forma, faz sentido refietir acerca das perturbações de hemóstase
relacionadas com a endarterectomia carotídea, não só para antever as situações
que poderão cursar com maior taxa de complicações hemorrágicas ou isquémicas,
como também para antever aquelas em poderá ser necessário intervir e corrigir
qualquer desequilíbrio na hemóstase ou de parâmetros do sangue.
Este trabalho pretende rever a experiência do nosso serviço relativamente à
necessidade de suporte transfusional no âmbito da endarterectomia carotídea.
Adicionalmente pretendemos estudar possíveis fatores de risco que estejam
relacionados com aumento de complicações hemorrágicas.
O nosso protocolo contempla o pedido pré-operatório de 2 unidades de glóbulos
rubros, como reserva para a cirurgia. Tal facto parece estar associado a um
consumo desnecessário de múltiplos recursos, sejam estes monetários, humanos ou
mesmo das reservas de glóbulos rubros que, como sabemos, trata-se de um recurso
limitado. Desta forma justifica-se uma revisão e possível mudança do protocolo
de atuação, assim como uma procura de alternativas viáveis que garantam a
segurança na nossa prática, com diminuição dos recursos utilizados.
Métodos
Procedeu-se a uma análise retrospetiva dos casos de endarterectomia carotídea
no nosso serviço, entre 2010-2012. Procedeu-se à quantificação do número de
transfusões de glóbulos rubros efetuadas perioperatoriamente e, adicionalmente,
à caracterização da população submetida a este procedimento cirúrgico, de
acordo com fatores de risco cardiovascular, como também possíveis fatores de
risco hemorrágico e, consequentemente, para a eventual necessidade de suporte
transfusional, como a hipocoagulação, coagulopatia, anemia e/ou trombocitopenia
previamente conhecidas. Procedeu-se à avaliação dos parâmetros técnicos da
cirurgia como a técnica utilizada (angioplastia com patch de dacron ou
eversão), a necessidade de uso de shunt, o tempo operatório e de outros fatores
relevantes como as perdas hemáticas intraoperatórias, a presença de hematoma
cervical ou outras complicações perioperatórias.
Resultados
Sessenta e seis doentes foram submetidos a endarterectomia carotídea no nosso
serviço, no período de 2010-2012. A maioria do sexo masculino (56 doentes, ou
seja 84,8%). A média de idades é de 68,85 ± 8,52 anos (fig._1).
A distribuição dos fatores de risco cardiovascular encontra-se apresentada na
Tabela_1. Nesta população é de referir a elevada prevalência de fatores de
risco como dislipidemia e hipertensão arterial.
Trinta e oito doentes (57,6%) tinham na sua história um evento cerebrovascular
isquémico correspondente ao lado a ser submetido a endarterectomia carotídea,
dos quais 11 (16,7%) haviam apresentado um evento há menos de 15 dias.
Relativamente a possíveis fatores de risco para hemorragia verificou-se que
apenas 2 doentes (3%) apresentavam trombocitopenia prévia, um (1,5%) anemia
crónica e 6 (9,1%) encontravam-se hipocoagulados com anticoagulante oral.
De acordo com a técnica cirúrgica utilizada verificou-se que a maioria dos
doentes foi submetida a encerramento da arteriotomia com patch sintético
(93,9%), sendo que apenas 4 (6,1%) foram submetidos a cirurgia por técnica de
eversão.
O tempo médio de cirurgia foi de 102,33 ± 33,97 minutos.
O valor médio de perdas hemáticas intraoperatórias (quantificáveis) foi de
138,70 ± 78,82 ml.
Apenas um doente necessitou de drenagem cirúrgica de um hematoma cervical.
Relativamente à repercussão das perdas hemáticas a nível do valor de
hemoglobina, constata-se que existe uma descida média deste valor em cerca de 2
g/dL e que não existe diferença numa análise por anos de trabalho. Estes dados
encontram-se apresentados na Tabela_2.
De acordo com o protocolo do serviço todos os doentes encontravam-se sob
terapêutica com antiagregante (aspirina em baixa dose) e estatina. Todos os
doentes foram submetidos a heparinização intraoperatória pré-clampagem (cerca
de 70 U/Kg), sendo que apenas em casos selecionados foi efetuada reversão com
protamina no fim do procedimento cirúrgico. Relativamente à utilização de
dextrano no contexto perioperatório, uma vez que os seus registos não foram
realizados de forma consistente, nomeadamente no que se refere ao início e
tempo de sua utilização, a análise deste parâmetro não foi efetuada neste
trabalho.
Apenas em 2 casos houve necessidade de proceder à transfusão de glóbulos
rubros. Em ambos os casos foram transfundidas 2 unidades e apenas no contexto
pós-operatório. Por um lado temos um doente de sexo masculino, cronicamente
hipocoagulado por uma fibrilação auricular, que apresentou um quadro de
hematemeses por lesões de Mallory-Weiss e hemorragia incisional, e que se
encontrava em tratamento com enoxaparina em dose terapêutica; por outro lado
temos uma doente de sexo feminino, com antecedentes de anemia crónica e
cardiopatia isquémica que no contexto pós-operatório apresentou uma descida de
hemoglobina de 10,7 para 8,1 g/dL tendo-se optado por iniciar suporte
transfusional.
Não foram identificados fatores de risco para complicações hemorrágicas com
associação estatisticamente significativa.
A mortalidade perioperatória neste grupo de doentes foi de 3% (2 doentes). Um
doente faleceu em contexto de oclusão carotídea nas primeiras 24 horas do pós-
operatório; o outro doente faleceu ao 9.ºdia de pós-operatório no contexto de
um quadro de sépsis com foco respiratório.
Discussão
Quando analisamos a necessidade de suporte transfusional no contexto cirúrgico
temos que ter em conta vários aspetos importantes. Existem múltiplas cirurgias
em que as perdas hemáticas (na maioria das vezes expectáveis) são de tal forma
importantes que obrigam ao recurso de transfusões de hemoderivados para
garantir a sobrevida a curto prazo5. A endarterectomia carotídea é um desses
exemplos1,3-5e este trabalho parece reforçar esta noção aplicada à da nossa
experiência.
Nas guidelines as recomendações para o suporte transfusional não têm sofrido
grandes alterações para a generalidade dos procedimentos cirúrgicos (recomendam
quase sempre transfusão de glóbulos rubros quando a hemoglobina se encontra
abaixo de 7 g/dL e quase nunca quase se encontra acima de 10 g/dL). No entanto,
estudos demons-tram, e podemos falar também de estudos na área da cirurgia
carotídea, que estamos a utilizar um limiar progressivamente mais baixo para
iniciarmos o suporte transfusional (considerando o chamado "grupo
duvidoso" com valores de hemoglobina entre os7eos10 g/dL). Desta forma
submetemos os nossos doentes a cada vez menos transfusões de glóbulos rubros,
sem que se verifique um aumento do número de complicações associado,
nomeadamente do foro cardio e cerebrovascular isquémico3,5,6.
Relativamente ao estudo de possíveis fatores de risco para complicações
hemorrágicas, verificou-se que, e tal facto estará seguramente relacionado com
a baixa incidência destas complicações, não existiu nenhum fator de risco com
associação estatisticamente significativa. Múltiplos estudos tentam
caracterizar os fatores de risco hemorrágico. São habitualmente estudos de
pequenas dimensões e tiram conclusões contraditórias ou não são capazes de
tirar conclusões com significado estatístico4,7. Essa limitação parece ter
existido neste estudo. Portanto, se a estatística não é capaz de predizer os
fatores de risco que vão estar associados a um risco hemorrágico, o senso
clínico é fundamental nesse papel.
Por outro lado é fundamental relembrar que complicações deste tipo estarão
diretamente relacionadas com os cuidados intraoperatórios difíceis de
quantificação, como são os cuidados de hemóstase ou as variações tensionais
intraoperatórias. Um estudo do Jobst Institute (Toledo, Ohio, EUA) publicado em
2012 e que tinha em vista a avaliação retrospetiva da necessidade de suporte
transfusional e complicações hemorrágicas na cirurgia carotídea demonstra que,
embora devam existir fatores de risco hemorrágico neste contexto cirúrgico
(neste estudo foi a utilização concomitante de dextrano e antiagregante
plaquetário), verifica-se que quando um cirurgião se encontra alerta para uma
elevada incidência de uma complicação deste tipo, este tende a reforçar os
cuidados de hemóstase e dessa forma é verificada uma inversão dessa tendência
com uma incidência inferior de complicações como hematoma cervical
perioperatório4.Por sua vez, Dalton, et al., numa avaliação retrospetiva
definiu como fatores de risco major para a formação de hematoma cervical no
pós-endarectomia carotídea a não reversão de heparinização intraoperatória, a
hipotensão intraoperatória e a necessidade de recurso ao shunt7.
São múltiplos os testes realizados durante a preparação de uma unidade de
glóbulos rubros (Tabela_3). O tempo médio da sua preparação é de 45 minutos e o
seu custo total é de 218,75 euros sendo que a maior parte deste é atribuída à
unidade de concentrado de glóbulos rubros (186 euros).
Após a discussão destes parâmetros com o serviço de imuno-hemoterapia do nosso
hospital concluiu-se que uma alternativa viável para o atual protocolo do
serviço seria o "Type and Screen". Este novo protocolo consiste na
realização de fenotipagem ABO RhD e pesquisa de anticorpos irregulares, que
representam grupos de sangue raros que podem corresponder a unidades de
glóbulos rubros que não existem no nosso serviço de imuno-hemoterapia e que
tenham de ser requisitados a outros centros hospitalares. O médico do doente é
alertado para a presença destes anticorpos e o mesmo pede a reserva das
unidades. Desta forma no dia da cirurgia garantimos que até um máximo de 45
minutos temos unidades de glóbulos rubros disponíveis para transfusão (sem
necessidade de recorrer a sangue "não tipado"). No caso dos
"grupos raros" estes estarão imediatamente disponíveis.
Se, por um lado, sempre que pedimos uma unidade de reserva tem de ser efetuada
uma fenotipagem, o que acrescenta um custo adicional de 14,05 euros ao
processo, por outro, na maioria das situações iremos poupar 186 euros por
unidade não pedida (totalizando 372 por 2 unidades de glóbulos rubros), assim
como o valor dos restantes testes confirmatórios (o Coombs direto, o de
compatibilidade e o confirmatório do grupo da unidade 18,7 euros). Da mesma
forma evitamos que uma unidade de glóbulos rubros fique alocada a determinado
doente impedindo a sua utilização durante o período em que estão de reserva
(até 72 horas).
Conclusões
Face a um risco hemorrágico baixo e à possibilidade de minimizar os custos
associados ao procedimento justifica-se a mudança do protocolo do nosso serviço
no que diz respeito à reserva de unidades de glóbulos rubros em preparação para
a endarterectomia carotídea.
O "Type and Screen" é uma alternativa viável ao atual protocolo e
garante a disponibilidade de unidades de glóbulos rubros até um máximo de 45
minutos.
Antever o risco hemorrágico e os fatores com ele relacionados pode ser difícil.
São necessários mais estudos, com maior número de doentes, para que se possa
proceder a uma estratificação de risco com significado estatístico.
De forma a salvaguardar os casos de exceção podemos pedir de reserva unidades
de glóbulos rubros quando julgamos estar perante doentes com risco hemorrágico
mais elevado e, dessa forma, garantir a sua imediata disponibilidade durante o
procedimento cirúrgica.
Responsabilidades éticas
Proteção de pessoas e animais.Os autores declaram que para esta investigação
não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dados.Os autores declaram ter seguido os protocolos do
seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes.
Direito à privacidade e consentimento escrito.Os auto-res declaram que não
aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interesses
Os autores declaram não haver conflito de interesses.