Perceção de autoeficácia do familiar cuidador após o regresso a casa do
dependente: Estudo longitudinal
Introdução
Eficácia refere-se à capacidade dos indivíduos em desenvolver competências
cognitivas, sociais, emocionais e comportamentais. Deve ser organizada e
instrumentalizada de forma eficaz para servir inúmeros propósitos. A
autoeficácia percebida preocupa-se, não com o conjunto de habilidades que os
indivíduos possuem, mas com o que estes acreditam que são capazes de fazer com
aquilo que possuem em diferentes circunstâncias (Bandura, 1997; Gilliam &
Steffen, 2006).
A autoeficácia é conceptualizada como uma crença do indivíduo na sua própria
capacidade de realizar uma tarefa específica, onde é imperativo mobilizar a
motivação, os recursos cognitivos e de ação, necessários para enfrentar e
satisfazer as exigências específicas duma situação considerada desafiadora
(Bandura, 1997). Portanto, a autoeficácia é um constructo psicológico
individual e que se refere à confiança do indivíduo na realização de um
determinado comportamento e ser capaz de superar os obstáculos na concretização
desse comportamento. Sentimentos de autoeficácia resultam da interação dos
comportamentos pessoais com os fatores ambientais necessários à realização
desses mesmos comportamentos (Bandura, 1997; Weng, Dai, Wang, Huang, &
Chiang, 2008). No contexto da prestação de cuidados, a autoeficácia percebida
refere-se à crença de ser capaz de lidar, adequadamente, com problemas
específicos de saúde/desenvolvimento, problemas estes que podem surgir num
determinado momento do ciclo de vida (Pinquart & Sorensen, 2006).
No contexto das transições de vida potencialmente stressantes, como, por
exemplo, a transição para o exercício do papel de cuidador, as crenças de
autoeficácia podem servir como recurso pessoal ou um fator de vulnerabilidade
(Bandura, 1997). A supervisão do papel exercido pelos familiares cuidadores
(FC), após o regresso a casa do dependente, deve ser um aspeto central do
exercício profissional dos enfermeiros. Assim, as terapêuticas de enfermagem
visam facilitar o processo de aquisição do papel e passam por desenvolver a
capacitação e dar suporte aos FC (Schumacher, Stewart, Archbold, Dodd, &
Dibble, 2000; Shyu, 2000; Shyu, Chen, Chen, Wang, & Shao, 2008). Na
transição para o exercício do papel de cuidador, é crucial que os enfermeiros
sejam capazes de identificar as competências dos familiares acerca das
necessidades de cada situação específica, às quais terão de dar resposta eficaz
na assunção do papel. A natureza do envolvimento, os cuidados a assegurar, as
mudanças a efetuar e o período de tempo de todo este processo, terão de ser
foco de atenção dos enfermeiros. O elogio das competências dos FC reforça-lhes
a autoeficácia e, assim, sentem-se mais competentes para poderem lidar com os
desafios (Mok, Chan, Chan, & Yeung, 2002).
A construção de autoeficácia por parte dos indivíduos na execução das tarefas
tem apelado, consideravelmente, a uma organização teórica e de investigação que
permita o desenvolvimento de instrumentos de medida nesta área (Crncec,
Barnett, & Matthey, 2008). Schumacher et al. (2000), através da
concretização de estudos, identificaram nove "processos de cuidar"
(competências), associados há habilidade dos FC para assegurar os cuidados
necessários ao dependente (Quadro_1). Assim, concetualmente, o papel de
prestador de cuidados foi definido como a habilidade do familiar para se
envolver eficaz e progressivamente nos nove "processos de cuidar" (Schumacher
et al., 2000).
O FC torna-se competente quando consegue obter os melhores resultados possíveis
dos cuidados que presta, como uma adequada gestão dos sinais e sintomas, a
prevenção de lesões, a identificação precoce de problemas, entre outros.
Estudos referem a existência de diferentes fases na adaptação ao exercício do
papel de prestador de cuidados ao longo do tempo, das quais, decorrem
diferentes necessidades no processo de transição do hospital para o domicílio
até o FC atingir um padrão estável de cuidar (Schumacher et al., 2000; Shyu,
2000). O estudo apresentado neste artigo teve como objetivo conhecer a evolução
da perceção de autoeficácia dos familiares cuidadores (PAE FC) para tomar
conta, nos primeiros três meses após o regresso a casa do dependente.
Metodologia
Tipo de estudo: utilizando uma metodologia de perfil quantitativo, foi
desenvolvido um estudo descritivo e exploratório, numa perspetiva longitudinal.
Amostra: partindo de uma população acessível de 273 pessoas dependentes
internadas em seis hospitais da região norte de Portugal, a amostra deste
estudo (de conveniência) é constituída por 117, 115 e 123 FC, avaliados,
respetivamente, no 1º (M1), 2º (M2) e 3º (M3) mês após a alta hospitalar da
pessoa dependente.
Assim, apenas foram incluídos no presente estudo os FC dos dependentes que se
encontravam no domicílio nos três momentos de avaliação, uma vez que o
"destino" destes (273 casos) após a alta hospitalar ao longo dos três meses do
estudo foram: 1) unidades de internamento da Rede Nacional de Cuidados
Continuados Integrados, 2) domicílio, 3) lares, 4) famílias de acolhimento e,
por último, 5) reinternamento hospitalar, quando se verificava o agravamento da
sua condição de saúde. Instrumento de recolha de dados/Procedimento de recolha
de dados: foi aplicado o formulário "Famílias que integram dependentes no
autocuidado" nos três momentos de avaliação (M1, M2 e M3). Relativamente ao
objeto de estudo reportado neste artigo, este instrumento de recolha de dados
engloba subescalas de PAE FC, construídas por:
· Domínios do autocuidado (International Council of Nursing [ICN],
2005), especificamente: "tomar banho", "vestir-se/despir-se", "alimentar-se",
"usar o sanitário", "virar-se", "transferir-se", "andar" e "tomar a medicação"
(oito subescalas);
· Domínios dos "processos de cuidar" definidos por Schumacher et al.
(2000), especificamente: "monitorizar/interpretar", "decidir", "agir",
"providenciar cuidados", "ajustar", "aceder a recursos", "trabalhar com a
pessoa cuidada" e "negociar com o sistema de saúde" (oito subescalas).
Para cada momento de avaliação (M1, M2 e M3) foi computada uma variável
intervalar para o cálculo da média de PAE FC para cada domínio de autocuidado e
dos "processos de cuidar" da totalidade dos participantes. Após este cálculo
esta variável intervalar foi reconvertida numa variável ordinal (PAE FC Global)
de acordo com os quatro intervalos equidistantes definidos (1-1,75 =
"incompetente"; de 1,75 a 2,5 = "pouco competente"; de 2,5 a 3,15 =
"medianamente competente"; de 3,15 a 4 = "muito competente").
A recolha dos dados foi efetuada entre agosto de 2010 e março de 2011. Em M1 e
M2 a recolha de dados foi realizada por entrevista telefónica entre o
investigador e o FC. Em M3, a entrevista foi efetuada por contacto presencial
em contexto domiciliar. Relativamente à escala global da PAE FC para tomar
conta utilizada ficou demonstrada a sua boa consistência interna. O valor do
Coeficiente Alfa de Cronbach apurados em M1 foi (α=0,861); em M2 (α=0,894) e,
por último; em M3 (α=0,895). O tratamento estatístico dos dados foi realizado
com recurso ao programa SPSS, versão 18,0. Considerações éticas: foram
acautelados os procedimentos éticos necessários com vista à proteção dos
direitos, da confidencialidade e da dignidade dos participantes.
Resultados
O Gráfico_1 mostra-nos a evolução positiva na PAE FC Global, situando-se esta
média entre "medianamente competente" (M1=3,03; M2=3,05) e "muito competente"
(M3=3,21). No entanto, verifica-se que este ganho de PAE FC é mais visível
entre o 2º e o 3º momento de avaliação (M2 e M3).
O Gráfico_2 mostra a evolução da média de PAE FC por domínios de autocuidado ao
longo dos três momentos de avaliação. O domínio onde se constata uma evolução
positiva mais acentuada na PAE FC entre M1 e M3 reporta-se ao "usar o
sanitário" (M1=2,84 "medianamente competente" e M3=3,16 "muito competente").
No domínio "andar" os FC apresentam a média mais elevada de PAE nos três
momentos de avaliação, acompanhado de "tomar banho", "vestir-se/despir-se" e
"alimentar-se". Apesar de se verficar uma evolução positiva na PAE FC no
autocuidado "virar-se", "usar o sanitário", "tomar a medicação" e "transferir-
se", entre M1 e M3, são os domínios que apresentam os scores mais baixos de PAE
FC.
Relativamente à média de PAE FC para tomar conta em função dos "processos de
cuidar" (Gráfico_3), verificamos que aqueles em que se obteve uma evolução mais
positiva ao longo dos três momentos de avaliação foram "negociar com o sistema
de saúde" (M1=2,95 "medianamente competente"; M3=3,27 "muito competente"); e
"trabalhar com a pessoa cuidada" (M1=2,53 e M3=2,94 "medianamente competente").
A PAE FC para "agir", "monitorizar" e "providenciar cuidados", apresentam-se
como os domínios em que os FC referem sentir-se, globalmente, mais competentes
ao longo dos três meses em que ocorreu o estudo, comparando com os restantes
"processos de cuidar". Em paralelo, "trabalhar com a pessoa cuidada", "ajustar"
e "aceder a recursos", são os domínios onde se verifica ao longo do estudo as
médias de PAE FC mais baixas.
Discussão
No global, a análise dos resultados deste estudo revela uma evolução positiva
na PAE FC quer nos domínios do autocuidado, quer nos domínios dos "processos de
cuidar". Esta evolução positiva é mais acentuada entre M2 e M3. Vários estudos
referem que após um período de maior indefinição e dificuldade na assunção do
papel de cuidador, que coincide com o período imediato ao regresso a casa do
dependente, segue-se uma fase de maior estabilidade, relacionado com maior
aquisição de mestria por parte do FC, o que lhe permite percecionar maior
sentido de competência para cuidar (Schumacher et al., 2000; Schumacher et al.,
2008; Shyu, 2000; Shyu et al., 2008).
Os familiares cuidadores, quando questionados sobre a sua perceção de
competência acerca das atividades necessárias para o exercício do papel,
parecem focalizar-se, sobretudo, nos cuidados que, na sua perspetiva, são mais
importantes de assegurar. Daí, resulta que há uma construção mental da natureza
do papel a exercer que determina a sua ação. Assim, parece-nos evidente que a
maior atribuição de importância a determinados cuidados está associada uma
maior PAE FC.
No presente estudo, parece-nos que os FC atribuem maior importância na
assistência em atividades associadas a domínios do autocuidado como "andar",
"vertir-se/despir-se", "alimentar-se" e "tomar banho", considerando-as
fundamentais para a vida dos dependentes, assim como, as atividades associadas
a "agir", "monitorizar" e "providenciar cuidados". Em paralelo, os resultados
evidenciam menor perceção de competência por parte dos FC em domínios do
autocuidado como, "virar-se", "usar o sanitário", tomar a medicação" e
"transferir-se", assim como, em relação aos "processos de cuidar" nos domínios
"aceder a recursos", "ajustar" e "trabalhar com a pessoa cuidada".
Assim, questionamos: 1) implicarão estas áreas pela sua natureza, onde os FC
revelam menor PAE, um conjunto de atividades de maior intensidade e
complexidade para a sua execução, exigindo maior aprendizagem dos FC e maior
suporte profissional por parte das equipas de enfermagem no domicílio? 2) estes
resultados estarão relacionados com um menor grau de importância atribuído
pelos FC a estas atividades e, deste modo, menores implicações percecionadas
relativamente à segurança, saúde e bem-estar dos dependentes, traduzindo-se,
deste modo, num menor investimento da sua parte na aquisição de um nível mais
elevado de competências? Neste sentido, Schumacher et al. (2000) referem-se ao
"significado pessoal" atribuído ao cuidado por parte do FC, sendo determinante
para a qualidade do exercício do papel.
Das médias mais baixas de PAE FC ao longo dos momentos de avaliação deste
estudo, verifica-se no domínio "aceder a recursos". Parece demonstrar as
dificuldades dos familiares na obtenção de informação que lhes possa facilitar
a aquisição dos recursos necessários para a prestação de cuidados, incluindo as
informações, os equipamentos, a assistência dos serviços da comunidade, a ajuda
nas tarefas domésticas e a assistência nos cuidados pessoais (Schumacher et
al., 2000). Advogar o acesso e a utilização dos recursos necessários aos FC é
uma intervenção crucial dos enfermeiros na transição para o exercício do papel
de prestadores de cuidados por parte dos familiares.
Conclusões
Apesar das dificuldades com que se deparam no exercício do papel, de um modo
geral, os FC atribuem importância aos desafios que se vão colocando ao longo
do tempo e vão desenvolvendo estratégias por forma a adaptarem-se com eficácia,
demonstrando um sentido de competência positivo. Todavia, parte significativa
dos cuidados que os dependentes necessitam e que são assegurados pelos FC
revestem-se de grande complexidade e intensidade, apontando, deste modo, para a
grande relevância do suporte em cuidados de enfermagem, facilitadores das
transições saudáveis desta população-alvo.
Implicações para a Prática Clínica
Os resultados deste estudo apontam para a necessidade e os benefícios da
definição e implementação de programas de educação e apoio efetivo aos FC,
tendo em conta o "significado pessoal" atribuído ao cuidado, as suas
expectativas, as suas necessidades e os recursos disponíveis, promovendo
progressivamente a sua capacitação, com ênfase no período imediato à alta
hospitalar.