Derivação e validação de um modelo preditivo do perímetro abdominal
Introdução
As doenças cardiovasculares constituem a principal causa de morte em Portugal,
tendo em 2009 sido responsáveis, de acordo com os dados do Instituto Nacional
de Estatística, por 31,9% das mortes.1 Nos últimos anos o excesso de peso/
obesidade tem ganho especial importância como factor de risco cardiovascular,
estimando-se que este factor de risco possa ser responsável por até 7% dos
gastos em saúde.2
Tradicionalmente usado como marcador de risco cardiovascular, o índice de massa
corporal (IMC) tem sido criticado por reflectir tanto o tecido adiposo como a
massa magra.3 A evidência actual sugere que as complicações vasculares
encontradas no utente obeso estão mais relacionadas com a localização do tecido
adiposo do que com o seu total corporal, tendo-se encontrado uma forte relação
entre a adiposidade intra-abdominal e o risco cardiovascular.4
A visão tradicional do tecido adiposo visceral como simples depósito de energia
tem sido substituída pela de um verdadeiro órgão endócrino com efeitos
autócrinos, parácrinos e sistémicos.5 Foram já identificadas diversas
substâncias segregadas pelo tecido adiposo visceral que podem explicar a
frequente associação deste com outros factores de risco, como por exemplo o
angiotensinogénio, as angiotensinas I e II, e a hipertensão arterial, ou a
resistina e a resistência à insulina, entre outras.5 O reconhecimento da
associação do excesso de obesidade abdominal com o risco cardiovascular e
metabólico6,7 levou à sua inclusão na determinação do risco cardiovascular
global nas normas de orientação clínica da Sociedade Europeia de Cardiologia
(ESC), que sugere para a sua avaliação a medição do perímetro abdominal (PA).8
A inclusão desta variável na avaliação do risco cardiovascular parece ganhar
ainda maior importância se for tida em conta a altura do indivíduo.6,7,9,10 A
medição antropométrica da obesidade abdominal é simples, barata e acessível,
estando fortemente correlacionada com as medidas radiológicas usadas para a sua
determinação, como por exemplo a tomografia computorizada, a ressonância
magnética ou a absorsiometria radiológica de dupla energia.4,6,8,10
Para alcançar o PA desejado, o utente deve ser aconselhado a adoptar estilos de
vida saudáveis, especialmente no que diz respeito a uma dieta equilibrada e à
prática regular de exercício físico.8,11 As metas preconizadas para o PA são
diferentes consoante o género do utente, no entanto não têm em conta outras
características, como por exemplo a idade ou estatura, que comprovadamente
influenciam o PA.4,12 Assim, este estudo teve como objectivos determinar a
influência que o IMC, a idade, a altura, a massa corporal e o género têm sobre
o PA através da derivação e validação de um modelo preditor do PA com
aplicabilidade na prática clínica que permita uma intervenção personalizada
visando a sua redução.
MÉTODOS
Estudo observacional, transversal e analítico, realizado na Unidade de Cuidados
de Saúde Personalizados (UCSP) Quinta da Lomba e Unidade Saúde Familiar (USF)
Eça, pertencentes ao Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) Arco Ribeirinho, e
na USF Cuidados de Saúde Integrados (CSI), pertencente ao ACES Seixal-Sesimbra.
A recolha dos dados decorreu em dois períodos: o primeiro, realizado na USF Eça
e na USF CSI entre Maio e Julho de 2009, visou a elaboração do modelo preditivo
e sua validação interna; o segundo período, realizado na UCSP Quinta da Lomba
entre Fevereiro e Abril de 2010, teve como intuito a validação externa do
modelo.
O estudo teve como população alvo os utentes com 20 ou mais anos de idade das
instituições acima referidas. Foi colhida uma amostra de conveniência referente
aos utentes que frequentaram a consulta de Saúde do Adulto nos períodos de
recolha dos dados.
Os utentes foram caracterizados quanto a: idade (anos), género (categorizado em
masculino e feminino), altura (centímetros), massa corporal (kg) e PA
(centímetro, medido com fita métrica numa linha paralela ao solo, passando
pelos pontos médios situados entre o bordo inferior da última costela e o bordo
superior da crista ilíaca antero-superior).8 Com base nos dados recolhidos foi
calculada a variável IMC (kg/m2) através da equação:
IMC (kg / m2) = Massa corporal (kg) / altura2 (m)
A avaliação das variáveis antropométricas foi efectuada por avaliação única com
os instrumentos de medida disponíveis nos consultórios de cada médico. A
recolha dos dados foi realizada durante o tempo de consulta pelos médicos que
aceitaram participar no estudo.
Os dados, depois de recolhidos e codificados, foram transferidos para uma
matriz inserida na aplicação informática Microsoft Excel® 2003.13 O tratamento
dos dados foi efectuado com recurso aos softwares R® 2.9.2.14 e SPSS® 15.0 para
Windows (SPSS Inc., Chicago IL).15
A primeira amostra, colhida na USF Eça e USF CSI, foi dividida em dois grupos
de forma aleatória através da geração de uma sequência de números aleatórios:
dois terços foram utilizados para a elaboração do modelo preditivo; um terço
para a sua validação interna. A homogeneidade destas duas amostras foi testada
através dos testes Symbol">c
2 de Pearson para as variáveis categóricas e t de Student para duas amostras
independentes para as variáveis contínuas. Para a tomada de decisão adoptou-se
o nível de significância de 5%.
A importância das variáveis estudadas foi determinada através do modelo de
regressão linear múltipla, método stepwise, com probabilidade de entrada de 5%
e saída de 10%.
As validades interna e externa foram avaliadas pela percentagem de utentes das
amostras de validação cujo perímetro abdominal medido se encontrava dentro do
intervalo de confiança de 95% predito pelo modelo. As validades foram
comparadas através do teste Symbol">c
2 para comparação de proporções.
RESULTADOS
Análise Descritiva
A primeira amostra, compreendendo os grupos para elaboração do modelo preditivo
e validação interna, contabilizou um total de 493 utentes. As características
desta amostra podem ser consultadas no Quadro_I.
Após a aleatorização destes utentes foram obtidos dois grupos: o primeiro, que
teve como intuito a elaboração do modelo preditivo, foi composto por 329
elementos; o segundo, destinado à validação interna do modelo obtido, foi
constituído por 164 utentes. As características destes dois grupos estão
descritas no Quadro_II.
A amostra de modelação apresentou uma idade média de 58,4 ± 17,1 anos, com
idades compreendidas entre os 20 e os 95 anos. Foi observada uma altura média
de 161,7 ± 9,4cm com um mínimo de 135cm e um máximo de 185cm. Os elementos
desta amostra tinham um peso médio de 72,0 ± 14,0kg variando entre os 40kg e os
126kg. O IMC médio foi de 27,6 ± 4,5kg/m2, com um mínimo de 17,8 kg/m2 e um
máximo de 42,2kg/m2. A maioria dos participantes era do género feminino
(66,3%).
A amostra de validação interna apresentou uma idade média de 56,2 ± 17,2 anos,
com idades compreendidas entre os 20 e os 91 anos. Foi observada uma altura
média de 162,5 ± 9,6cm com um mínimo de 144cm e um máximo de 187cm. Os
elementos desta amostra tinham um peso médio de 71,4 ± 14,4kg variando entre os
40kg e os 119kg. O IMC médio foi de 27,0 ± 4,6kg/m2, com um mínimo de 16,2 kg/
m2 e um máximo de 44,0kg/m2. A maioria dos participantes era do género feminino
(60,4%).
Não foram encontradas diferenças significativas entre as amostras de modelação
e de validação interna pelo que estas foram consideradas homogéneas (Quadro
II).
A segunda amostra, destinada à validação externa do modelo, foi constituída por
240 utentes. Esta apresentou uma idade média de 60,8 ± 14,7 anos, com idades
compreendidas entre os 21 e os 93 anos. Foi observada uma altura média de 161,5
± 8,5cm com um mínimo de 142cm e um máximo de 188cm. Os elementos desta amostra
tinham um peso médio de 71,0 ± 13,8kg variando entre os 43kg e os 118kg. O IMC
médio foi de 27,2 ± 4,7kg/m2, com um mínimo de 17,2 kg/m2 e um máximo de
42,7kg/m2. A maioria dos participantes era do género feminino (61,2%). A
comparação com a amostra de modelação não revelou diferenças significativas
(Quadro_III).
Modelo de Regressão Linear
Foram introduzidas no modelo as variáveis idade, género, altura, massa
corporal, PA e IMC. Exceptuando a variável massa corporal, todas as variáveis
introduzidas no modelo foram significativas, tendo-se obtido o seguinte modelo
preditivo do PA:
PA = 2,019*IMC + 0,211*(Idade - 20)
+ 0,327*Altura - 1,951*Género - 21,031
em que Género é uma variável dicotómica que toma o valor 0 se masculino e 1 se
feminino.
A variável massa corporal foi excluída do modelo por apresentar elevada
colinearidade com as variáveis altura e IMC (Tolerância = 0,011; Factor de
Inflação da Variância = 92,96).
Foram verificados os pressupostos teóricos de aplicabilidade do modelo
(normalidade, homocedasticidade, inexistência de correlação serial,
inexistência de multicolinearidade e ausência de observações influentes). O
modelo mostrou ter um R2 de 0,772 e um erro-padrão de 5,71cm, como se descreve
em maior detalhe no Quadro_IV. A variável mais importante para a determinação
do PA foi o IMC com um R2 de 0,641 indicando que, por cada unidade de aumento
do IMC, o PA aumenta em média 2,019cm. O modelo mostrou também que a variável
altura é um preditor independente do PA, aumentando este 0,327cm por cada
centímetro de altura. O modelo mostrou ainda que o PA aumenta com a idade,
estimando um incremento de 0,211cm por cada ano. Por fim verificou-se que o
género feminino apresenta em média um PA inferior ao do género masculino em
cerca de 1,951cm.
Validades Interna e Externa
A aplicação do modelo à amostra de validade interna mostrou que 152 casos
(92,7%; IC95%: 88,7% - 96,7%) foram correctamente preditos pelo modelo. O mesmo
modelo aplicado à amostra de validação externa previu correctamente o PA de 225
casos (93,8%; IC95%: 90,7% - 96,8%), não diferindo estas percentagens de forma
significativa (Symbol">c
2Pearson(1) = 0,178; p = 0,67).
DISCUSSÃO
Os resultados deste estudo mostraram que as variáveis IMC, género, idade e
altura de um utente podem ser incluídas num modelo preditivo que permite
estimar com precisão o seu PA.
Neste estudo o IMC foi a variável com maior influência na determinação do PA,
ou seja, quanto maior o IMC do utente maior deverá ser o seu PA. Este resultado
está de acordo com outros estudos que encontraram uma forte correlação entre o
IMC e o PA.4,12,16 As correlações encontradas, tanto no nosso estudo como
noutros anteriormente publicados, não são perfeitas, o que pode ser explicado,
por um lado, por o IMC não representar apenas a massa gorda,3 por outro, por
ser necessário ter em conta outras variáveis que influenciam o valor do PA.
Um aspecto interessante deste estudo foi o ter mostrado que a altura do utente
tem influência no PA. De facto, é concebível que uma pessoa mais alta apresente
um maior PA sem que este esteja, necessariamente, associado a maior obesidade
visceral. Esta relação foi demonstrada por Heymsfield e colaboradores, ou seja,
indivíduos mais altos apresentam perímetros abdominais superiores quando
comparados com indivíduos com estaturas inferiores, e que esta relação se torna
ainda mais evidente após ajustamento para outras variáveis.17 Schneider e
colaboradores consideram que o estabelecimento de um ponto de corte para o PA
sem ter em conta a altura do indivíduo pode subestimar a quantidade relativa de
adiposidade abdominal em indivíduos de baixa estatura e sobrestimar nos
indivíduos mais altos.7 Como solução para este problema, vários estudos têm
apontado a determinação da razão entre o PA e a altura (waist-to-height ratio,
WHtR) como um melhor indicador de risco cardiovascular que o IMC ou que o PA
isoladamente.4,6,7,18 Este problema foi tido em conta nas normas de orientação
clínica da ESC, que recomenda que a avaliação do PA tenha em atenção a altura
do utente na determinação do risco cardiovascular.8
Neste estudo verificou-se que o género influencia o PA, isto é, para o mesmo
IMC, altura e idade, um homem apresenta em média mais 1,951cm de PA. A
existência desta diferença está de acordo com as recomendações da ESC8 que
recomenda valores diferentes de PA consoante o género, devendo os utentes ser
aconselhados a reduzir o seu peso caso o PA seja ≥ 102cm no género masculino ou
≥ 88cm no género feminino. No entanto, verifica-se que a diferença entre estes
dois valores é de 14cm ao passo que no nosso modelo a diferença é de apenas
cerca de 2cm. Uma possível explicação para esta discrepância relaciona-se com a
inclusão da altura no modelo. De facto, o género masculino apresenta, em média,
na idade adulta, uma altura superior ao género feminino, um efeito já incluído
no modelo proposto. Se tivermos como referência as curvas de crescimento da
Direcção-Geral da Saúde,19 verificamos que o percentil 50 aos 20 anos no género
masculino é 177cm para a estatura e 23,0kg/m2 para o IMC, ao passo que no
género feminino é 163cm e 21,8kg/m2 respectivamente. Se estas diferenças de
14cm na estatura e de 1,2kg/m2 no IMC forem aplicadas no modelo verifica-se uma
diferença média de PA de 2,019 * 1,2 + 0,327 * 14 = 7,0cm entre os dois
géneros. Ou seja, em conjunto, as diferenças de altura, IMC e género
representariam uma diferença média de 7,0 + 1,95 = 8,95cm. Estes resultados
mostram que é mais difícil alcançar o objectivo preconizado pelas normas das
ESC no género feminino no que diz respeito ao PA.
Os resultados deste estudo mostraram ainda que o PA tem tendência a aumentar
com a idade, ou seja, utentes mais idosos apresentam tendencialmente maior PA.
De facto, de acordo com este modelo, o PA aumenta cerca de 1cm a cada 5 anos,
relação esta que é independente do género, altura ou IMC do indivíduo. Assim, é
de esperar que seja mais difícil atingir os objectivos para o PA no utente mais
idoso. Esta relação ganha ainda maior importância se tivermos em conta que a
própria idade é considerada um factor de risco independente para o risco
cardiovascular. De acordo com as normas de ESC, o risco está aumentado no homem
a partir dos 55 anos, e na mulher a partir dos 65 anos.8 Estes resultados
parecem indicar a existência de um mecanismo subjacente que justifique o
aumento concomitante do perímetro abdominal com a idade. Uma possível
explicação para este fenómeno poderá estar relacionada com a sarcopenia
associada à idade, ou seja, a redução da massa muscular esquelética que ocorre
mesmo no idoso saudável.20,21 Este fenómeno parece ter natureza multifactorial,
estando relacionado com alterações na enervação central e periférica,
modificações hormonais e inflamatórias com efeitos catabólicos a nível
muscular, e reduções na ingesta calórica e proteica, que se revelam mais
pronunciados no género masculino.21 A diminuição da massa muscular esquelética
induz uma diminuição da taxa metabólica basal, que no adulto jovem pode ser
responsável por 60 a 80% do gasto energético diário.22 Apesar de ocorrer
redução da ingesta calórica com a idade, esta é desproporcionada relativamente
à perda muscular, resultando em aumento da massa gorda corporal22 onde se
inclui o tecido adiposo visceral associado ao aumento do PA. Este mecanismo
reforça a importância da modificação dos estilos de vida, nomeadamente uma
alimentação correcta e prática regular de exercício físico, na redução do risco
cardiovascular associado à idade.
De todas as variáveis com potencial influência no PA avaliadas neste estudo, a
única passível de ser intervencionada é o IMC, através da modificação da massa
corporal. Os resultados deste estudo mostraram que o conhecimento das
características do utente pode ser utilizado para estimar o PA. O modelo
mostrou ter excelente validade interna e externa, deixando antever a sua
potencial aplicabilidade em contexto clínico através da individualização do
plano terapêutico, mais concretamente no estabelecimento de metas de redução
ponderal com vista a reduzir o risco cardiovascular.
Devem ser reconhecidas algumas limitações deste estudo. Trata-se de uma amostra
de conveniência pelo que a generalização dos resultados deve ser feita com
cautela. Optámos por uma amostra de conveniência por se tratar de uma primeira
abordagem a esta linha de investigação em que tivemos a intenção de verificar
se seria possível prever o PA com base no conhecimento de algumas
características do utente. Reconhecemos também que o estudo não considerou
outras variáveis com potencial explicativo do PA, como por exemplo a raça,8,17
estado de saúde17 ou o consumo de álcool. A variabilidade do modelo poderá ter
sido influenciada pelos diferentes instrumentos de medida disponíveis em cada
consultório médico bem como pela medição única das variáveis em estudo.
Em conclusão, este estudo mostrou que é possível prever o PA com base no
conhecimento das características individuais do utente. A utilização deste tipo
de modelos na prática clínica poderá facilitar o aconselhamento objectivo e
individualizado e em última instância resultar numa melhor abordagem da redução
ponderal e consequente redução do risco cardiovascular.