Tratamento não farmacológico para a obstipação na idade pediátrica: Revisão
sistemática
CLUBE DE LEITURA
Tratamento não farmacológico para a obstipação na idade pediátrica: Revisão
sistemática
Ariana Tsou Ferraz Gaião
Interna de Medicina Geral e Familiar, USF São João do Porto
Tabbers MM, Boluyt N, Berger MY, Benninga MA. Nonpharmacologic treatments for
childhood constipation: systematic review. Pediatrics 2011 Oct; 128 (4): 753-
61.
Questão
Qual a evidência do tratamento não farmacológico da obstipação na criança?
Objectivos
Sumarizar a evidência e avaliar a qualidade dos estudos sobre o tratamento não
farmacológico da obstipação em idade pediátrica, incluindo fibras, fluidos,
movimentos físicos, prebióticos, probióticos, terapia comportamental,
tratamento multidisciplinar e formas de medicina alternativa.
Métodos
Foi realizada uma pesquisa em três bases de dados major de forma sistemática e
em listas de referência de revisões existentes. Incluíram-se revisões
sistemáticas e estudos randomizados controlados que reportavam o tratamento não
farmacológico da obstipação. Dois revisores classificaram a qualidade
metodológica de forma independente.
Resultados
Foram incluídos nove estudos com um total de 640 crianças envolvidas. A
heterogeneidade entre os estudos impossibilitou a realização de uma meta-
análise. Não foram encontrados estudos randomizados e controlados sobre
movimentos físicos, tratamento multidisciplinar ou medicinas alternativas.
Algumas evidências demonstraram que as fibras podem ser mais eficazes do que
placebo na melhoria da frequência e da consistência das fezes e na redução da
dor abdominal. Comparativamente com a ingestão normal de fluidos, não se
encontraram evidências que comprovassem que a ingestão aumentada de água ou que
o tratamento com fluidos hiperosmolares sejam mais efectivos no aumento da
frequência de emissão de fezes ou na diminuição da dificuldade na passagem das
fezes. Não se encontraram evidências para se recomendar o uso de prebióticos ou
probióticos. A terapia comportamental associada a laxantes não provou ser mais
efectiva do que o uso isolado de laxantes.
Conclusões
Existem algumas evidências de que a suplementação com fibras é mais efectiva do
que com placebo. Nenhuma evidência foi encontrada para melhoria de qualquer
sintoma com suplementos fluídicos, prebióticos, probióticos ou terapia
comportamental. Escasseiam estudos randomizados e controlados bem desenhados e
de elevada qualidade sobre o tratamento não farmacológico da obstipação em
idade pediátrica.
Comentário
A obstipação na idade pediátrica, definida pela NASPGHAN (North American
Society for Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition) como um
atraso ou dificuldade ao defecar por duas ou mais semanas,1 é um problema
frequentemente encontrado nos Cuidados de Saúde Primários e Secundários,
estimando-se uma prevalência de 3% no Mundo Ocidental. Por este facto, muitas
vezes o diagnóstico e orientação são negligenciados, sendo a obstipação aceite
como uma variante do normal, podendo surgir complicações como a fissura anal e/
ou encoprese.2 Pode cursar com dor abdominal, dor ao defecar ou incontinência
fecal, criando ansiedade e um impacto negativo na vida da criança e da sua
família.
A sua abordagem passa primeiro por excluir causas orgânicas que, apesar de
representarem uma minoria, devem ser particularmente estudadas nas crianças no
primeiro ano de vida (Fibrose Cística ou Doença de Hirschsprung).3 O exame
objectivo e a história clínica são as armas fundamentais no diagnóstico de
obstipação funcional, sendo por vezes necessário e recomendado recorrer a
exames auxiliares de diagnóstico, nomeadamente o raio-x abdominal e a pesquisa
de sangue oculto nas fezes.
Antes de qualquer medicação e após exame ano-rectal, é fundamental provocar a
desimpactação fecal, se existir: nas crianças mais pequenas a desimpactação
pode ser efectuada com supositórios de glicerina, devendo ser evitados os
enemas e não sendo recomendado o óleo mineral; já nas crianças mais velhas pode
ser administrada medicação oral ou rectal, incluindo enemas.1
O tratamento farmacológico baseia-se no uso de diversas classes de laxantes
sendo condicionado pela idade pediátrica, visto nem todos os fármacos serem
aconselhados em idades no início de vida. Dividem-se em laxantes osmóticos
(lactulose, sorbitol, hidróxido ou citrato de magnésio, extracto de malte de
cevada, enemas de fosfato), polietilenoglicol, lubrificantes (óleo mineral) e
estimulantes (senna, bisacodyl, supositórios e glicerina). Nas crianças mais
novas podem-se prescrever laxantes osmóticos (lactulose e sorbitol); nas
crianças mais velhas, o óleo mineral e os laxantes osmóticos (hidróxido de
magnésio, lactulose e sorbitol) são seguros e efectivos, devendo os laxantes
estimulantes ser usados como medicação de resgate, de curta duração, em
crianças seleccionadas com obstipação de difícil resolução.1
Após o diagnóstico de obstipação funcional, as orientações clínicas gerais
passam por um leque de atitudes e educação de hábitos comportamentais e
alimentares na criança que é sempre preconizado pelo médico, independentemente
do tratamento farmacológico instituído, por, de um modo lógico perante a
fisiologia humana, aparentemente proporcionarem a higiene e regulação do
trânsito intestinal. De acordo com o artigo em análise, o primeiro passo no
tratamento consiste nesta componente não farmacológica, prescrevendo-se
laxantes se não houver resposta efectiva. No entanto, a NASPGHAN, em 2006,
elaborou dois algoritmos para a obstipação funcional separando a abordagem da
criança com menos de um ano de vida, da criança com um ou mais anos. No
algoritmo das crianças com menos de um ano recomenda inicialmente uma abordagem
apenas não farmacológica prosseguindo-se com o uso de medicação se não houver
resposta; no algoritmo das crianças mais velhas a abordagem não farmacológica é
recomendada em simultâneo com a farmacológica.1 No entanto, perante uma
Medicina cada vez mais baseada na evidência, existem ainda poucos estudos sobre
este tema.
O artigo em questão, de elevada qualidade, com pesquisa em bases de dados de
qualidade (Embase, Medline e PsycINFO) e referências de artigos, fez uma
revisão de toda a evidência clínica disponível, desde sempre até à actualidade
(encontrados artigos de 1986 a 2008), sem restrição de língua, com artigos
seleccionados por dois revisores de modo independente e com cruzamento de
dados, sobre o tratamento não farmacológico da obstipação funcional na idade
pediátrica (excluídos artigos sobre obstipação em patologia orgânica).
A pesquisa incidiu sobre a suplementação com fibras, fluidos, movimentos
físicos, prebióticos, probióticos, terapia comportamental e medicinas
alternativas (incluindo acupunctura, homeopatia, terapia corpo-mente,
manipulação músculo-esquelética e terapias espirituais como o ioga).
Foram encontrados poucos estudos publicados (total de nove): três relativos ao
uso de fibras, apenas um de elevada qualidade (estudo espanhol randomizado,
controlado e cego que comparou o uso de fibras – suplemento de casca de cacau –
com placebo); um relativo aos fluidos, de baixa qualidade; um relativo a
prebióticos, de elevada qualidade (estudo holandês pequeno, randomizado,
controlado e cego que comparou uma fórmula standard com uma mistura de
oligossacáridos prebióticos: ácido palmítico sn-2); dois relativos a
probióticos, ambos de elevada qualidade (estudos controlados e randomizados, um
da Polónia, que comparou o uso de lactulose + lactobacillus com lactulose +
placebo, e um de Taiwan, que comparou o uso de lactobacillus com óxido de
magnésio ou com placebo); e dois relativos a terapia_comportamental, apenas um
de elevada qualidade: estudo da Holanda, randomizado e controlado, que comparou
a terapia comportamental, realizada por um Psicólogo Infantil (processo de
aprendizagem que visa minimizar as fobias relacionadas com o defecar), com o
tratamento convencional, realizado por um Gastrenterologista Pediátrico
(educação, diário, treino da casa-de-banho, recompensas). No total, obtiveram-
se apenas cinco estudos de alta qualidade.
Não foi encontrada nenhuma evidência que sugerisse qualquer efeito com fluidos,
terapia comportamental, prebióticos ou probióticos.
A suplementação com fibras foi o único tratamento não farmacológico que
demonstrou alguma evidência clínica quando comparado com placebo. Um estudo de
elevada qualidade, de 56 crianças (3 a 10 anos), com duração de quatro semanas,
apresentou resultados estatisticamente significativos relativamente à noção de
melhoria da consistência de fezes. No entanto, apesar de uma aparente melhoria
no grupo de crianças suplementado com fibras, não houve significância
estatística nos restantes outcomes: mudança no tempo de trânsito intestinal,
frequência média de defecação e noção de melhoria da dor. Um ponto importante a
destacar é a subjectividade dos resultados relativos à noção da dor e da
consistência das fezes, uma vez que se trata de uma população que abrange
idades muito distintas, desde os 3 aos 10 anos, com diferentes noções de
sintomas e de bem-estar, independentemente da forma como foi quantificada
(diários).
Um dos outros estudos que também comparou o uso de fibras com placebo (EUA),
randomizado, com 31 crianças (4 a 11 anos), durante quatro semanas, obteve
resultados estatisticamente significativos a favor do uso de fibras em todos os
outcomes: frequência na defecação, dor abdominal, noção de melhoria clínica
pelo médico e noção de melhoria clínica pelos pais da criança. Contudo, é um
estudo de baixa qualidade por não apresentar definições importantes (estudo
cego?, definição de obstipação?) e não explicar a alta taxa de abandono (32%).
Aplica-se a mesma questão das idades pediátricas na noção de dor.
Não foi encontrado nenhum estudo que envolvesse movimentos físicos, tratamento
multidisciplinar ou medicinas alternativas.
Perante os poucos resultados desta revisão sistemática tão vasta e extensa, e
face a um problema comum e frustrante da população pediátrica, denota-se a
necessidade de estudos de qualidade, bem desenhados e definidos, com grupos
pediátricos distintos, que corroborem as medidas não farmacológicas tão
preconizadas pelos Médicos. No entanto, parece lógico que esta abordagem não
farmacológica seja preconizada de forma empírica por ir de acordo com a
fisiologia humana.