Questões de liderança
EDITORIAL
Questões de liderança
Raquel Braga*
*Directora da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar
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É possível recordar que, ainda há poucos anos atrás, a nível dos Cuidados de
Saúde Primários, a figura de um ‘Director Clínico’, encarnada pelo Director de
um Centro de Saúde, se traduzia na pessoa que detinha a gestão corrente, a
organização dos recursos humanos e logísticos, que veiculava as estratégias da
Direcção-Geral de Saúde. Em alguns casos, estes ‘Directores Clínicos’
extravasavam essas competências de gestão e tinham uma real actividade clínica,
dirigindo e fomentando reuniões clínicas, pugnando pela implementação de
programas de saúde, pelas boas práticas clínicas e pelo apoio e desenvolvimento
da formação médica contínua e da investigação.
Com a reforma dos Cuidados de Saúde Primários1 aboliu-se a imagem do Director
do Centro de Saúde e procurou-se um formato de gestão mais partilhada e
descentralizada através da criação da figura de Coordenador da Unidade de
Saúde. Estas Unidades, em particular as Unidades de Saúde Familiar, com maior
autonomia e responsabilização de todos os seus elementos, procuravam demover
uma hierarquia vertical e cristalizante para promoverem uma liderança
partilhada, activa e alternada.
Numa parte interessante dos casos, a autonomia e liderança das Unidades de
Saúde é um facto, um sucesso recompensador para quem fez a aposta neste tipo de
modelo. No entanto, desde logo se percebeu que, em alguns casos, a coordenação
assumiu “tiques” e maneirismos de anteriores formatos de Direcção, não só
porque de um dia para o outro os Coordenadores (agora eleitos entre a equipa
por votação) eram afinal os anteriores Directores dos Centros de Saúde, mas
também porque os anteriores dirigidos, procuravam (in)activamente continuar a
ser comandados, sem interesse por tomar em mãos a responsabilidade partilhada e
o peso do trabalho da gestão da Unidade de Saúde.
Verificamos até que, em algumas Unidades, nomeadamente em Unidades de Cuidados
de Saúde Personalizados, há crises de liderança, sem candidatos voluntários à
Coordenação. Exceptuando as Unidades de Saúde Familiar em Modelo B, em que essa
função é remunerada, o incentivo a assumir esta liderança é por vezes diminuto
e apresenta-se mais como uma carga de trabalhos a desenvolver a par da prática
clínica, do que como uma oportunidade de desenvolvimento pessoal e
profissional, com reconhecimento interpares ou com reconhecimento
institucional, através de recompensa financeira.
Na sequência da reforma dos Cuidados de Saúde Primários e da criação dos ACeS
(Agrupamentos de Centros de Saúde) surgiram as figuras dos Conselhos Clínicos e
dos Directores Executivos.1 A separação e interpenetração de funções entre
estes dois organismos parece racional e interessante. Na prática, ao Director
Executivo cabe um papel de gestão em saúde e ao Conselho Clínico um papel a
nível das boas práticas de saúde, das auditorias, da formação contínua e da
gestão do risco clínico.1 Ter separado estas duas vertentes permite libertar os
presidentes dos Conselhos Clínicos para direccionarem a sua actuação para as
vertentes realmente clínicas e possibilitar ao Director Executivo um maior foco
nos assuntos de decisão estratégica e de gestão.
Apesar desta separação de funções, espera-se dos Directores Executivos um papel
integrador e compreensivo dos aspectos clínicos na gestão do ACeS. Daí que um
Director Executivo que seja médico com competência, experiência ou formação em
gestão em saúde seja uma mais valia. O mesmo se poderá talvez dizer de um
gestor com experiência ou formação na área da saúde, sensível e aberto às
questões clínicas e capaz de ultrapassar uma visão meramente contabilística
para abarcar uma estratégia de real governância clínica. Neste último caso,
para que a escolha resulte, um director executivo que não seja médico tem de
ser devidamente assessorado e aconselhado nas questões clínicas pelo Conselho
Clínico (que integra o presidente, um médico de família, bem como mais três
elementos representantes de cada grupo profissional que integra o ACeS).
No caso de um Director Executivo ser médico, podem, eventualmente, as funções
de gestão não revelar um tão apurado grau de eficiência, mas a compreensão das
questões clínicas, de facto a finalidade principal do ACeS, será mais natural.
Em qualquer dos casos, para o papel de Coordenador da Unidade (eleito
interpares ou designado), para o papel de Director Executivo ou de Presidente
de Conselho Clínico, as questões do reconhecimento interpares, as qualidades
técnico-científicas e as competências em gestão e liderança são cruciais.
Valorizar quem desempenha condignamente estes papéis é fundamental para
possibilitar que estas funções sejam apetecíveis, estimulantes e seja uma
honra, para além de um dever cívico, desempenhá-las.
Não podemos permitir que, sem o necessário ou adequado incentivo financeiro e
muitas vezes sem qualquer outro tipo de reconhecimento, quem desempenha estas
funções seja chamado a assumir cada vez mais responsabilidades, como no caso
dos Conselhos Clínicos, a auditoria das normas de orientação clínica, o
acompanhamento e a implementação e desenvolvimento das Unidades de Saúde, para
além do acompanhamento e discussão dos perfis de prescrição, dos registos
clínicos e dos indicadores de saúde contratualizados e ainda a contratualizar,
etc, etc, etc…
Algumas destas tarefas, assumindo um carácter que pode ser entendido como
‘policial’, podem ser até francamente desestimulantes de uma liderança
visionária, inspirada e inspiradora.
A especialização em gestão que o sector da saúde requer na actualidade não se
compadece com amadorismos e boas-vontades. É compreensível e salutar essa
evolução, bem como o pressuposto de que nem sempre os médicos são os únicos
gestores possíveis de serviços médicos. No entanto, nenhum gestor, mesmo com
diferenciação e experiência na área da saúde, poderá ser um Director Clínico.
Partindo da premissa de que estas funções ficam mais bem asseguradas se forem
repartidas, dificilmente poderemos dizer qual das duas deve ser mais
valorizada.
Não podemos deixar que o papel de uma direcção clínica em qualquer serviço de
saúde, quer seja a nível hospitalar quer seja a nível dos Cuidados de Saúde
Primários, deixe de ser valorizado, ou seja mesmo subalternizado às questões
puras da gestão.
Não devemos deixar que um médico que assume as funções de direcção clínica seja
menos valorizado do que um seu colega que mantém apenas a pratica clínica.2,3
Será perigoso impedir um Director Clínico (sobretudo quando este já não é, nem
tem de ser, um gestor), de praticar clínica.2 A prática clínica, outrora
incompatível com a sobrecarga das actividades de gestão que um Director Clinico
tinha de desempenhar, bem como a dedicação que essa função pressupunha, na dose
sensata e no nosso contexto actual, poderá ser um auxílio e um estímulo a
manter uma liderança actualizada, eficaz e realista.
Factores, actualmente mandatórios, como a falta de retribuição diferenciada,
como a falta de valorização interpares e da possibilidade de manter uma
actividade clínica compatível com as funções de Direcção Clínica, poderão ser
constrangimentos a que as pessoas certas se abeirem e assumam a liderança.
O risco de os médicos se afastarem cada vez mais destas funções que lhes são
naturais e para as quais são insubstituíveis e se transformarem em meros
assalariados acéfalos e desinteressados das questões maiores de estratégia e da
governância clínica é real.
É tempo de, politicamente, se repensarem as prioridades e de os médicos
recuperarem o lugar que sempre tiveram na liderança dos sistemas de saúde, com
o reconhecimento efectivo do seu papel. É uma questão de respeito pela
dignidade de uma classe que, genericamente, sempre colocou o interesse comum
acima do seu próprio, sem se deixar vencer pelo desestímulo ou pelo cansaço.
É uma questão que, embora afectando directamente um número exíguo, se reflecte
profundamente em todos nós e, sobretudo, deixará marcas na qualidade do nosso
sistema de saúde, se não for prontamente corrigida.