O uso da Medicina Complementar e Alternativa por doentes com doença
cardiovascular
CLUBE DE LEITURA
O uso da Medicina Complementar e Alternativa por doentes com doença
cardiovascular
The use of complementary and alternative medicine by people with cardiovascular
disease
Ana Lúcia Soares
Interna de Medicina Geral e Familiar, USF Nova Via
Grant SJ, Bin YS, Kiat H, Chang DH. The use of complementary and alternative
medicine by people with cardiovascular disease: a systematic review. BMC Public
Health 2012 Apr 26; 12: 299.
Enquadramento
A doença cardiovascular (DCV) é uma causa importante de morbimortalidade. Por
ser uma doença crónica, muitos dos doentes com DCV encontram-se medicados com
fármacos que podem ter a sua eficácia comprometida se associados a estas
medicinas alternativas ou complementares (MAC). São exemplos de MAC chás,
plantas, suplementos vitamínicos ou nutricionais, produtos de aromaterapia ou
homeopatia e também terapias com uma vertente mais física como o yoga ou reiki.
No caso da DCV, o uso concomitante destas terapêuticas pode trazer benefícios.
São exemplos disso a prática de yoga – ou outras terapias com uma componente
física mais marcada – no controlo da hipertensão arterial; ou o consumo de
suplementos de co-enzima Q10 no tratamento da insuficiência cardíaca. No
entanto, as MAC podem também constituir um risco: o consumo de algumas plantas
e chás que interferem no perfil farmacocinético e farmacodinâmico dos fármacos
habitualmente prescritos com uma janela terapêutica estreita são fonte de
interações planta-medicamento que assumem especial relevância.
Objetivo
Identificar a prevalência e tipo de MAC na coorte de doentes com DCV, para
encorajar o uso das MAC benéficas nestes casos e evitar as interações planta-
medicamento.
Métodos
Pesquisa em oito bases de dados acerca do uso de MAC em doentes com DCV. Os
estudos e a sua qualidade foram avaliados por dois investigadores
independentes.
Resultados
Foram obtidos 2124 artigos e incluídos 27 destes.
A prevalência do uso de MAC por doentes com DCV variou entre 4 e 61%.
Relativamente ao tipo de MAC consumida: o consumo de plantas – avaliado em 16
estudos – variou entre 2 e 46%, com a echinacea, o alho, o gengibre, o ginkgo e
o ginseng como as cinco mais consumidas. Relativamente ao consumo de vitaminas
e suplementos nutricionais – avaliado em 13 estudos – a prevalência do seu
consumo variou entre 3 e 54%, sendo os suplementos de vitaminas do complexo B,
vitamina C, E, cálcio, glucosamina/condroitina, co-enzima Q10 e magnésio, os
principais suplementos consumidos.
O recurso a terapêuticas denominadas «body-mind-therapies» foi reportado em 2 a
57% dos casos.
A revisão concluiu ainda que 39 a 65% dos médicos assistentes não tinham
conhecimento relativamente ao facto dos seus doentes recorrerem a este tipo de
terapias (num dos estudos a percentagem foi de 8% – o resultado mais baixo).
Quando inquiridos, os utentes apontaram como justificação, por um lado, o
receio do médico desaprovar esta opção e, por outro, o facto de estes consumos
nunca terem sido inquiridos durante a consulta.
No que concerne às razões que levam os doentes a optarem pelas MAC – avaliadas
em 12 estudos – em 15% dos inquiridos (em 2 estudos) havia a crença de que as
MAC eram superiores à farmacoterapia. Num outro estudo, 59% dos inquiridos
referiram que consumiam MAC para evitar os efeitos secundários causados pela
farmacoterapia.
O uso de MAC especificamente para o controlo da DCV variou entre 7 e 65%.
Relativamente a interações fármaco-medicamento, foram identificadas quarenta e
duas (um estudo) e o uso concomitante de anticoagulantes e MAC (nomeadamente
plantas) foi identificado em 13-26% dos inquiridos em dois dos estudos.
Discussão
O uso das MAC é comum em doentes com DCV (4-61%). Para a grande variabilidade
de resultados verificada contribuiu o facto de não existir uma definição de MAC
consensual em todos os artigos. Conclui-se ainda que o uso de MAC pode
associar-se a uma falsa segurança por parte dos doentes de controlarem melhor a
sua DCV e de essa falsa segurança levar a uma diminuição da compliance à
farmacoterapia. Os autores concluem ainda que o facto de grande percentagem dos
médicos assistentes desconhecerem estes consumos pode ser preocupante.
Como limitações desta revisão são apontados o não uso de questionários
validados (para a obtenção dos dados em alguns estudos incluídos), a ausência
de amostras representativas que permitam a extrapolação dos resultados, a
ausência de dados sobre o estado de saúde dos participantes e a inclusão apenas
de artigos em língua inglesa.
COMENTÁRIO
Em Portugal, o enquadramento jurídico dos suplementos alimentares está definido
no Decreto-Lei n.o 136/2003, de 28 de junho,1 que se apoia na Diretiva
Comunitária nº 2002/46/CE, de 10 de junho.2 Neste diploma definem-se
«suplementos alimentares» como «géneros alimentícios que se destinam a
complementar e/ou suplementar o regime alimentar normal e que constituem fontes
concentradas de determinadas substâncias nutrientes ou outras com efeito
nutricional ou fisiológico, isoladas ou combinadas, comercializadas em forma
doseada, tais como cápsulas, pastilhas, comprimidos, pílulas e outras formas
semelhantes, saquetas de pó, ampolas de líquido, frascos com conta-gotas e
outras formas similares de líquidos ou pós que se destinam a ser tomados em
unidades de medida de quantidade reduzida». Definem-se ainda «substâncias
nutrientes ou nutrimentos» e «vitaminas e minerais», sendo listadas as
substâncias que podem ser utilizados no fabrico de suplementos alimentares.
As interações planta-medicamento estão amplamente documentadas (http://
www.ff.uc.pt/oipm/interacoes/).
Em Portugal existem apenas dois estudos publicados sobre o uso de terapêuticas
alternativas/complementares. As prevalências encontradas do consumo deste tipo
de produtos variaram entre 48,8% e 81%.3,4
A disparidade de prevalências de consumo observada nos estudos portugueses
publicados pode ficar a dever-se ao tamanho das amostras selecionadas e à
metodologia utilizada em cada estudo (nomeadamente o modo de inquirir sobre
estes consumos: através do fornecimento de uma lista de exemplos de produtos
naturais que pode não incluir todos os existentes).
Essa variabilidade foi encontrada também neste estudo de revisão de Grant et
al. e pode prender-se com a mesma razão já referida.
Independentemente da variabilidade encontrada, importa referir que os doentes
incluídos no estudo de Grant et al. são até um subgrupo de alto risco, uma vez
que a janela terapêutica dos fármacos usados no tratamento da DCV é estreita e
a interação planta-medicamento, nestes casos, pode acarretar consequências
graves.
Destaca-se neste artigo, o facto do médico assistente desconhecer – em alguns
estudos, em mais de metade dos casos – que os doentes consomem estes produtos e
que este desconhecimento advém em parte de o médico nunca ter questionado o
doente quanto a este assunto.
A pertinência da escolha deste artigo prendeu-se com a necessidade de alertar
para a existência deste tipo de terapêuticas alternativas ou complementares
(cujo possível benefício carece de evidência científica para a maior parte
delas), muitas vezes ocultadas pelos doentes ao seu médico assistente.
À semelhança da coorte de doentes com DCV, a prevalência destes consumos a
nível nacional é igualmente elevada, pelo que poder-se-á pensar na pertinência
que teria uma prática mais comum em cada consulta, no momento da revisão
terapêutica, de questionar especificamente sobre o consumo de produtos naturais
como chás, suplementos nutricionais, vitamínicos ou outros que possam ser fonte
de interação com a farmacoterapia prescrita pelo médico.