Os indicadores de saúde e a contratualização
EDITORIAL
Os indicadores de saúde e a contratualização
Raquel Braga*
*Directora da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar
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No último editorial da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar,
abordou-se a desaceleração do processo de reforma dos Cuidados de Saúde
Primários1 e foram apresentados argumentos que apoiam o seu desenvolvimento e
implementação. No entanto, como em qualquer outro processo em curso, há
factores que necessitam de reflexão, melhoria e intervenção.
Os médicos de família portugueses podem orgulhar-se de terem idealizado uma
reforma completa e complexa dos Cuidados de Saúde Primários. Ela contempla,
entre outras características, a autonomia organizativa das Unidades de Saúde
Familiar (embora cada vez mais relativa ), a existência de um compromisso
assistencial (que garante maior cobertura populacional à custa da ampliação das
listas de utentes) e a contratualização de objectivos ou metas a atingir (em
relação ao acesso, desempenho assistencial, qualidade percepcionada e
desempenho económico), mas que nem sempre tem decorrido nos prazos e formatos
previstos.
Muitos são os países que ainda não atingiram semelhante grau de sofisticação e
de objectivação da qualidade de cuidados que se propõem prestar. A definição de
indicadores de saúde, a sua contratualização e a sua avaliação evidenciam um
nível de envolvimento e de responsabilização notáveis por parte da tutela, dos
profissionais de saúde e da população e reflectem um desejo de garantia e
melhoria dos cuidados prestados.
No entanto, os indicadores de saúde até agora propostos entre nós, sofrem de
problemas de dimensão, relevância e cálculo. As metas propostas aproximam-se de
valores cada vez mais próximos dos 100%, como acontece com os indicadores de
desempenho assistencial, apenas porque isso é o que parece lógico aos gestores,
seguramente sem formação do ponto de vista clínico. Estes valores, gradualmente
mais elevados ano após ano, pretendem reflectir uma progressão da melhoria da
qualidade de cuidados prestados, mas estão desfasados de um enquadramento
clínico e assistencial realista, das circunstâncias locais, dos contratempos
pessoais e dos sistemas de saúde reais.
No entanto, o cálculo das metas a contratualizar deveria ser cuidadosamente
baseado na evidência científica e ter em conta o contexto local, para além da
caracterização das necessidades detectadas e expressas da população.2 A
abrangência e a diversidade dos indicadores contratualizados deveriam,
igualmente, ter em conta a prevalência dos problemas de saúde que afectam a
população, bem como a importância e a frequência dos motivos que trazem os
doentes à consulta. Por último, seria de esperar que a quantidade de
indicadores de saúde sofresse uma evolução, no sentido de um aumento na
diversidade dos problemas de saúde incluídos, até níveis virtualmente
impossíveis de "tomar atenção" ou "dar conta de" por
parte dos prestadores de cuidados de saúde. Dessa forma, seria atingida a
Qualidade, no sentido de ela estar garantida, mesmo sem ser avaliada ou
monitorizada, o que significa que seria tudo bem feito, sem necessidade de
estar alguém "a observar".
Apesar de sofrerem de problemas, como a focalização de cuidados (que pode
conduzir a um afunilamento da actividade médica)3 e de se centrarem em normas
de actuação arbitrárias, em vez de em resultados que interessam ao doente
(Patient oriented evidence that matters – POEM) a existência de indicadores
orienta a actuação e responsabiliza as equipas de saúde em prol de resultados
objectiváveis. O trabalho a efectuar para garantir bons resultados e ganhos em
saúde não é, neste momento, aumentar a fasquia destes indicadores
indefinidamente, (até porque em algumas Unidades de Saúde isso já nem é
possível!) mas sim trabalhar no sentido da criação de outros indicadores,
dirigidos a reais ganhos em saúde e que promovam uma medicina centrada na
pessoa mais do que uma medicina centrada nos indicadores.3
O Plano Nacional de Saúde 2012-20164 é um documento abrangente que prevê
indicadores que reflectem o estado de Saúde e o desempenho do Sistema de Saúde.
Discrimina indicadores de estado de saúde (que contemplam a mortalidade,
morbilidade, incapacidade e bem-estar), determinantes de saúde (que
possibilitam o conhecimento sobre os factores para os quais há evidência
cientifica quanto à influência sobre o estado de saúde e da utilização dos
cuidados de saúde), indicadores de desempenho do sistema de saúde (que
reflectem a aceitabilidade, acesso, qualidade, capacitação, integração de
cuidados, efectividade, eficiência e segurança) e os indicadores de contexto
(que contêm medidas de caracterização que permitem, por ajustamento, comparar
populações distintas).4
Estes últimos, talvez os mais dificeis de definir e monitorizar, vêm ao
encontro da necessidade sentida de olhar e planificar cuidados de saúde para
cada realidade local, de forma personalizada, fugindo a um modelo de prestação
de cuidados e de contratualização uniforme que se revela desfasado das
necessidades e características particulares de cada população.
Para garantir a melhoria dos cuidados a prestar, é fundamental ter em conta as
necessidades expressas pelo doente, para além das detectadas pelos Planos de
Acção e possibilitar, do ponto de vista clínico, tempo na consulta que permita
dirigir a atenção ao fundamental: ouvir a pessoa que está diante de nós.
A comunicação médica, baseada num modelo centrado no paciente, para a qual os
Médicos de Família são especificamente treinados, necessita de tempo e de
focalização de atenção na pessoa e nos seus problemas. É uma competência
específica, à qual raramente outras especialidades dedicam treino ou atenção e
que constitui, em si mesma, uma ferramenta de trabalho e um meio diagnóstico e
terapêutico custo-efectivo. Todos os Médicos de Família têm a experiência
frequente de ouvirem as pessoas dizer, ao sair do consultório, "Fez-me
bem desabafar!" ou "Fez-me bem falar consigo!".
O médico como medicamento, a relação terapêutica, não pode ser posta em causa
por outras tarefas. O médico deve ser o continente das angústias e necessidades
dos doentes e, para isso, deve ter o tempo suficiente para as entender e
permitir a posterior intervenção terapêutica adequada.
Se persistir a focalização da prática clínica em indicadores para os quais
tenhamos de canalizar a atenção, desdobrando os nossos gestos em tarefas
maquinais e registos desgastantes e distraindo-nos da pessoa que está diante de
nós, perdemos o fundamental.
O âmago da acção do Médico de Família é olhar a pessoa na sua globalidade
biopsicossocial, triar, isolar, diagnosticar e intervir, prevenindo ou
solucionando problemas. Não se restringe a verificar checklists de tarefas
desprovidas de fundamentação ou inoportunas, face às necessidades prementes
demonstradas pelas pessoas que nos solicitam ajuda.
As propostas de consultas focalizadas em doenças ou a assunção de actividades
direccionadas para patologias (como a consulta de hipocoagulação, a consulta de
desabituação tabágica e a consulta de pé diabético) que estão a ser atribuídas
às Unidades de Saúde sob a capa da contenção de custos, desvirtuam o âmago dos
cuidados que devemos prestar.
Este tipo de actividades, propostas inicialmente como carteira adicional de
serviços, deverão manter-se como tal e ser assumidas voluntariamente, por
motivação e gosto pessoal, assegurada a aquisição da necessária formação. O
tempo que lhes é dispensado não poderá ser roubado ao tempo consagrado a
tarefas que só um especialista em Medicina Geral e Familiar pode providenciar.
Estas tarefas estão devidamente contratualizadas e fazem parte do compromisso
assistencial assumido pelas Unidades de Saúde, constituindo a carteira básica
de serviços.
As competências específicas de um especialista em Medicina Geral e Familiar,
que constituem o seu "core business" e são sua atribuição
específica, não podem ser praticadas por outros médicos. Da mesma forma, este
princípio deve ser salvaguardado deixando às outras especialidades a tarefa de
se ocuparem das áreas para as quais têm competências específicas. Mesmo que
estas sejam empurradas para o âmbito da consulta de Medicina Geral e Familiar
sob o pretexto de minorar custos, o carácter generalista e integrador da
actividade do Médico de Família, aliado à sobrecarga com um número crescente de
utentes, visando o cumprimento do compromisso assistencial, não se compactua
com maior elasticidade.
Não se trata de um problema de competências ou de falta delas e não se trata de
um problema de falta de vontade; trata-se apenas de não sobrar espaço nem tempo
aos Médicos de Família para abarcarem mais do que o muito que já os ocupa e que
mais ninguém pode ou deve fazer em vez deles.