António Gama Mendes: Um geógrafo inquieto, um heterodoxo inconformado
NOTÍCIA
António Gama Mendes. Um geógrafo inquieto, um heterodoxo inconformado
Rui Jacinto1; Fernanda Cravidão2; António Campar de Almeida3; Norberto Santos4;
Lúcio Cunha5
1Centro de Estudos em Geografia e Ordenamento do Território. Universidade de
Coimbra. E -mail: rui.jacinto@iol.pt
2Professora Catedrática do Departamento de Geografia da Universidade de
Coimbra. Coordenadora e investigadora do Centro de Estudos em Geografia e
Ordenamento do Território (CEG OT). E -mail: cravidao@ci.uc.pt
3Professor associado da Faculdade de Letras de Coimbra. E -mail:
campar@ci.uc.pt
4Professor associado com agregação no Departamento de Geografia da Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra e investigador no Centro de estudos de
geografia e Ordenamento do território. E -mail: norgeo@ci.uc.pt
5Professor Catedrático no Departamento de Geografia da Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra. E -mail: luciogeo@ci.uc.pt
A partida prematura de António Gama Mendes (30.12.1948 - 31.12.2014), quando
tinha acabado de completar 66 anos, deixa um imenso vazio entre amigos e
colegas, tanto da geografia como da Universidade portuguesa. O legado de uma
vida regista, de forma inequívoca, a sua competência científica, a sua aptidão
pedagógica e a sua estatura académica, sem contudo traduzir completamente as
qualidades intelectuais e humanas do amigo e do geógrafo que acabámos de
perder.
Ao longo de mais de 40 anos António Gama integrou o Instituto de Estudos
Geográficos, agora Departamento de Geografia, na Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, onde desenvolveu o seu trabalho de docente e de
investigador com grande dedicação, empenhamento e brio profissional, pondo ao
serviço de toda a escola (estudantes, colegas e funcionários) uma humilde
simpatia que conjugava com uma invulgar qualidade intelectual, uma elevada
capacidade crítica e uma extraordinária bagagem cultural. O seu perfil de
universitário revela tanto um profundo conhecedor da geografia Portuguesa e,
particularmente, dos temas de teoria e epistemologia da geografia, como um
docente que sempre concretizou o que deve ser o ensino universitário: a
articulação entre a investigação e o ensino, a prática efetiva da
interdisciplinaridade, a generosidade intelectual e a humildade científica,
muitas vezes assumidas como missão de vida.
No plano da investigação científica deixa muitas dezenas de trabalhos, em que
se incluem estudos originais, trabalhos de colaboração, recensões críticas e
traduções. Os temas de sua preferência estão, como acima referido, na teoria e
epistemologia da geografia, na articulação da geografia com as restantes
Ciências sociais, na geografia Política e, nos últimos anos, nos estudos sobre
o Lazer. Verdadeiro conhecedor da sua cidade e das suas dinâmicas, fez da
geografia Urbana o mote para muitos ensinamentos e investigações, que conjugava
com a História dos tempos, dos acontecimentos e das personalidades, com que nos
surpreendia pelo inesperado detalhe das descrições e dos encadeamentos. Na
verdade, “tudo” resumia ao estudo das dinâmicas dos tempos, dos espaços e dos
modos, da esquina da rua e da porta da casa, ao Mundo de infinitas nuances,
conseguindo leituras, interpretações e exemplos que simplesmente desarmavam
qualquer guarda, por mais persistente que fosse.
A perspectiva interdisciplinar levou-o também à colaboração docente em vários
cursos fora do Departamento de geografia, nomeadamente em Jornalismo, estudos
europeus, economia e relações internacionais, sempre por convite das
respectivas comissões científicas, o que representa um claro testemunho, não só
dos seus interesses científicos, mas sobretudo da sua disponibilidade, do seu
modo de estar numa instituição Universitária e do reconhecimento extra-
geografia da sua capacidade pedagógica e científica.
O capital afectivo que nos ligava ao António Gama, tecido por décadas de
cúmplice camaradagem que transcendia o simples relacionamento pessoal, acentua,
agora, o senti mento de perda deixado pelo vazio da sua ausência. Na memória
dos que partilhámos o seu convívio perduram as singelas flores de pão, os
soldados de rolhas de cortiça, os esquilos e elefantes, moldados com simpatia e
carinho, depois dum qualquer repasto, quando a conversa se alongava, sem rumo
certo, entre geografia, actualidade social, política, futebol ou outras
deambulações. Quando oferecia, com discreta candura, o fruto do seu artesanato
às crianças ou ao sector feminino ao redor da mesa, deixava transparecer, neste
gesto simples, afectuoso e solidário, a sua faceta mais terna e sensível.
Conhecemo-lo há muitos anos e desde logo nos sentimos companheiros, cúmplices e
amigos. Durante estes anos (o tempo da crise de 69 para uns, os anos 70 para
outros) conversámos muito. Sobre tudo e às vezes sobre nada. Ouvíamo-nos quase
sempre. Partilhámos muitas cumplicidades. Pessoais. Políticas Académicas.
Frequentámos os mesmos bancos e corredores da universidade, trilhámos caminhos
que se cruzaram, participámos em jornadas de campo onde se soltavam emoções e
as ideias voavam sem amarras. Comungámos utopias e partilhámos desafios em que
depositámos fundadas esperança s e que, embora se tenham saldado por algumas
derrotas, não deixaram de contar significativas vitórias. A faculdade e a
geografia foram a nossa casa comum, espaços vividos com fervor, empenho e
convicção que não soçobraram perante outros tantos momentos de incerteza e de
desânimo.
Independente e livre-pensador, o António Gama antecipava o futuro ao viver numa
permanente insatisfação criativa que o estimulava à constante invenção de novos
projectos, viagens e geografias, algumas vezes adiadas, outras nem sempre
concretizadas. Nesta viagem comum de cerca de 40 anos fizemos alguns percursos
juntos. Com colegas, com alunos, com amigos. Percorremos o país. Este país que
o António Gama conhecia como poucos. Caminhámos pela(s) cidade(s) vezes sem
conta. Esta Coimbra que, melhor do que ninguém, mostrava a todos. Através da
viagem foram muitos os privilegiados que partilharam o seu conhecimento, o seu
entusiasmo e o seu amor à geografia.
Ficaram memoráveis algumas destas viagens. No início dos anos oitenta alguns de
nós percorremos a então república socialista da Jugoslávia. O conhecimento que
tinha sobre o carso rapidamente se transpôs para o livro que se abria do outro
lado da janela do autocarro. A alegria que colocava nas palavras, a capacidade
de despertar o interesse dos companheiros de viagem onde os geógrafos eram um
pequeno número, mostravam que a sua relação com as Ciências sociais era
suficientemente consolidada para continuar, com entusiasmo, a olhar a geografia
na sua dimensão total e multifacetada. A lição que deu, em split, sobre as
ruínas do palácio de Diocleciano, de onde se advinha, ao longe, a península
itálica, testemunhava, já, um dos seus últimos interesses, que foi o da
geografia Política, interesse que se foi construindo à medida que ia sendo
desafiado pelos rumos que as diferentes geografias mundiais foram (des)
construindo...
O António, nome de guerra do António Gama em terras de Castela e Leão, fez dos
seus contactos e conhecimento ibéricos o motivo perfeito para os mais diversos
e variados périplos. Estão ainda afectuosamente presentes os convívios das
viagens do que ficou conhecido como o ramo de formação educacional (RFE), num
período em que a formação de professores era fulcral nas saídas profissionais
na geografia. Sempre disposto a colaborar em toda e qualquer viagem, foi o
esteio científico e a bússola das viagens dos futuros professores de geografia
que passaram por Coimbra, nos últimos vinte anos.
Incansável no apoio à organização dos itinerários que cada viagem deveria
efectuar, sempre utilizou estes momentos de são convívio para transmitir, a
todos aqueles que participavam, o seu muito apurado conhecimento do
território. Mas, para António Gama, a viagem começava muito antes da partida.
Discutir percursos, recolher informação, confirmar visitas, solicitar o apoio
de colegas de além-fronteiras, encontrar alojamento para todos – juntando a
comodidade do preço com a acessibilidade do lugar – pesquisar o que podia
oferecer ao itinerário elementos de novidade, de modo a tornar inesquecíveis
os momentos, eram um nunca acabar de afazeres que tomava para si com uma
alegria contagiante. Quando em terras espanholas ou na faixa fronteiriça, de
um ou do outro lado, usava o seu profundo conhecimento da realidade geográfica
de Espanha, mas também da sua História, para mostrar que nesta “jangada de
pedra” é mais aquilo que une estes povos do aquilo que os separa.
António Gama tinha interesses diversificados que nunca se limitaram à
geografia. A incessante demanda dum conhecimento holístico fizeram-no percorrer
múltiplas encruzilhadas em que se foi bifurcando a geografia e, a sua outra
paixão, as restantes Ciências sociais. Alicerçou, deste modo, um conhecimento
sólido e uma informação rigorosa e completa que, por formação e por convicção,
o tornaram avesso a dogmas e cartilhas. Heterodoxo inconformado, olhava com
igual desconfiança a híper especialização acrítica que viu alastrar à sua
volta, quase sempre tão redutora e estreita quanto as demais ortodoxias que,
dogmaticamente, tentam impor um pensamento único ou confinar o conhecimento às
estritas fronteiras disciplinares.
Tinha um modo próprio de interpretar, estar e intervir no Mundo, radicado num
imaginário que mergulha nos idos de sessenta, anos que moldaram o seu
pensamento e a maneira diferente de olhar, entender e fazer geografia. Neste,
como em outros domínios, foi pioneiro, um inovador bem informado que, sempre um
passo à frente, aparecia com a última novidade surgida num livro acabado de
publicar. Foi assim que o conhecemos na flor da juventude, quando monitor,
professor ou colega nos sugeriu leituras e nos iniciou em debates que ainda não
tinham entrado na agenda. Ainda temos connosco nalguns dos livros que não lhe
devolvemos, as indicações de leitura nunca esgotadas, as sugestões de ir onde
não fomos, as inquietudes do seu espírito inquieto. E, agora, a saudade que o
tempo se encarregará de serenar.
António Gama marcou com o seu saber e labor um período e uma geração da
geografia Portuguesa, particularmente em Coimbra, onde teve uma influência
discreta mas profunda, que sempre se situou para além de qualquer pretenso
estatuto académico. Sempre acreditou na cooperação pessoal, interdisciplinar e
intergeracional como alternativa a uma competitividade pura e dura, que parece
esgotar-se num quantitativismo redutor, valor supremo e absoluto que esmaga
qualquer apreciação qualitativa e que não deixa lugar para a mais leve aragem
humanista, tão necessária para compreender e viver o Mundo de hoje.
Disseminou entre os que dele se abeiravam, com desprendimento e sem cálculo de
algum tipo de retorno, informação pertinente e estratégica que granjeou ao
longo dum laborioso, paciente e solitário percurso pessoal. Um exemplo desta
generosidade está na grande quantidade de materiais que, após a sua saída da
faculdade, disponibilizou aos colegas. Por exemplo, os dossiers da disciplina
de teoria e Metodologia da geografia, disciplina que marcou gerações sucessivas
de alunos que davam os primeiros passos pela geografia. Dominam textos de
geógrafos, sociólogos, antropólogos e economistas. Quase todos comentados!
Notas pessoais ou reflexões interrogativas e que em muito os valorizam.
Sobretudo para quem os lê! São textos que durante anos repartiu com muitos de
nós. a preto e branco. Simples. Muitas vezes a lápis, como se nada que
escrevesse fosse definitivo. e é aí que reside a sua maior generosidade.
Na senda de alfredo fernandes Martins e de outros mestres universitários,
preocupados com o modo como o estado novo cerceava as liberdades, também
António Gama se entregou, precocemente e com empenho, a um envolvimento
cívico, não isento de riscos e desafios pessoais, institucionais e políticos.
a democratização da universidade e a sua abertura à sociedade levaram-no a um
envolvimento militante no movimento estudantil e a participar, já depois do 25
de abril de 1974, nos órgãos directivos da faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra.
Este seu empenhamento cívico e político foi o caminho natural e expectável de
um conhecedor precoce da realidade cultural e política do tempo que se vivia e
do mundo que nos rodeava (da multifacialidade da europa, mas também dos mundos
mediterrâneo, oriental e africano). a vesso a interpretações simplistas de
acontecimentos ocorridos ou de cursos sociopolíticos tomados em algumas dessas
regiões mundiais, aproveitava-os sempre para discorrer, com explicações
geopolíticas lógicas, baseadas em argumentação sólida e fundamentada. e aqui
podiam perpassar argumentos ora de geografia física que se interpenetravam com
os de geografia Humana, mas também com os antropológicos ou com os históricos,
para mostrar que na evolução das sociedades humanas nada acontece por acaso.
sem pretensiosismo, com frequência fundamentava as suas explicações em
bibliografia que enunciava de cor, chegando por vezes ao rigor de indicar as
páginas onde se poderia encontrar determinada afirmação.
Sabemos que o legado de António Gama permanecerá para sempre na geografia
portuguesa, ainda que dissolvido na voracidade do tempo que passa e no
silêncio da palavra que deixámos de escutar, palavra que nunca se cansou de
defender uma geografia renovada e mais culta, sofisticada, cosmopolita e
solidária. foi uma luta permanente que travou convictamente ao pugnar por uma
geografia que, antes de mais, deve estar ao serviço das pessoas e ser
comprometida com o Mundo.
Preservar o seu legado e honrar a sua memória também passam por continuar a
debater temas e causas em que António Gama depositou tanta esperança.