A mudança em Portugal, nos romances de Lídia Jorge: esboço de interpretação
sociológica de uma interpretação literária
1. Conhecer a sociedade com a literatura
A imagem global que se destaca dos estudos de conjunto sobre a evolução da
sociedade portuguesa é a de uma marcada mudança social (para uma tentativa de
síntese, cuja lógica seguirei aqui de muito perto, Silva, 2006: 127-141). O
meio século que decorre entre o início da década de 1960-1970 e o fim da de
2000-2010 conhece profundas transformações na estrutura da economia, da
sociedade, da cultura e do sistema político. Dada a inércia de conservação que
pontuara o período anterior de afirmação e apogeu salazarista, as alterações
que o país experiencia, nos anos 1960 ' com o crescimento e a tímida integração
económica internacional, a grande vaga migratória para França e Alemanha, a
Guerra Colonial, a contestação juvenil, a abertura ao turismo, etc. '
significam um corte profundo com o status quo. É como se o volante da mudança
começasse a girar.
Posto em movimento, o volante acelera. Portugal muda tardiamente, por
comparação com os padrões europeus, mas muda muito ' de tal forma que o que é
em 2010, no fim do ciclo de 50 anos que consideramos, é substancialmente
diferente e, em vários aspetos, contrário ao que era no início desse mesmo
ciclo.
Para compreender esta mudança tardia, mas real ' rápida, intensa e alargada '
basta notar o bom resumo de António Barreto (2003: 63-88) sobre as tendências
gerais do período 1960-2000: progressos claros na integração nacional das
populações e territórios; aproximação acelerada aos padrões demográficos
europeus; alteração do posicionamento face aos movimentos internacionais de
migração, com a combinação, no final do período, de importantes fluxos de
imigração e emigração; terciarização da economia e da sociedade; aumento do
bem-estar dos indivíduos e famílias; emergência de formas de desequilíbrio e
desigualdade social, novas ou mais pronunciadas do que as que vivia a estrutura
tradicional; universalização do Estado de proteção social; desenvolvimento das
classes médias; nova configuração da cidadania; formalização jurídica das
relações sociais; formação da sociedade de consumo. E, sobre este pano de
fundo, os acontecimentos-rutura da democratização, do fim do ciclo colonial e
regresso à dimensão dita metropolitana, da integração na então Comunidade
Económica Europeia.
O arranque do século XXI representará a consolidação da integração europeia do
país, por via da pertença ao primeiro grupo de países que concretizam a união
económica e monetária e adotam o euro. São também assinaláveis os progressos no
Estado-Providência e, designadamente, na cobertura e nos indicadores
sanitários, na generalização da educação secundária e na massificação do ensino
superior entre os mais jovens. Mas um crescimento económico anémico e as
dificuldades de acompanhar os termos radicalmente diversos em que, numa união
monetária, se passou a colocar a questão da competitividade e da inserção na
economia globalizada, vieram manifestar e aprofundar as contradições do nosso
processo de modernização ' nomeadamente, a distância dos seus alicerces
económicos, tecnológicos e de qualificação dos recursos humanos e
organizacionais àqueles que são típicos dos países do centro e norte europeus.
Os efeitos e a configuração interna da crise mundial que rebentou em 2008 '
financeira e logo económica e sociopolítica ' vieram revelar ainda mais a
posição de encruzilhada em que Portugal se encontra, o caráter inacabado da sua
modernidade (Machado & Costa, 1998) e a natureza complexa e tensa da sua
situação no contexto europeu (cf. Viegas, Carreiras & Malamud, 2009; Costa,
Machado & Ávila, 2009; Guerreiro, Torres & Capucha, 2009).
Uma mudança de tamanho alcance e uma tal encruzilhada produzem efeitos em todos
os planos da sociedade portuguesa, incluindo portanto o campo literário, e em
todas as dimensões de ação, incluindo portanto a criação literária. Logo no que
diz respeito à estrutura e dinâmica desse campo, assunto de que não tratarei,
mas não desvalorizo. E também no que toca às obras artísticas, qualquer que
seja o género, aos temas escolhidos, aos materiais trabalhados, às suas
linguagens e estilos, aos universos de sentido e visões do mundo para que
reenviam.
Acresce que, por motivos estudados (entre outros, Lourenço, 1978; Santos, 1988;
Silva, 1997), o campo literário é de há muito charneira na organização do campo
intelectual português. Se quisermos dar conta não apenas das repercussões da
mudança mas também, e sobretudo, das interpelações e problematizações que ela
suscita, no plano da criação artística e da intervenção intelectual, esse campo
é simplesmente incontornável.
Porém, tenha-se presente a razão de ser desta posição incontornável. Os
sociólogos que estudam a mudança social beneficiarão tanto mais da consideração
de textos literários quanto menos os separarem das obras a que pertençam e em
cujo conjunto ganhem pleno sentido, quanto menos os reduzirem à condição de
testemunhos ou ilustrações, e quanto menos os olharem como efeitos ou
consequências, produtos, reflexos ou ecos de determinantes exteriores. E
beneficiarão tanto mais quanto mais retiverem a estrutura de cada obra ' cada
corpusautónomo e singular de criação de um ou de um grupo coerente de autores;
quanto melhor apreenderem o discurso e contributo próprio dessa obra como
representação, avaliação e imaginação de realidades sociais que ativamente
transforma, recria e produz, como criação criadoraque é; quanto mais nela
procurarem, para além da representação (vista não como espelho mas como
processo artístico, cf. Auerbach, 1968), a instância e a forma da
problematização e da interpelação a que a literatura sujeita o real a que se
refere.
Estes princípios terão validade geral, ao menos heurística (como orientações de
pesquisa). Mas são sobremaneira pertinentes quando está em análise o processo
da mudança social. E, em particular, quando as características, a dimensão e o
resultado da mudança são da envergadura, heterogeneidade e complexidade do
último meio século português. Porque assim são questionados, nas raízes mesmas
das suas identidades, os atores sociais, sejam indivíduos, grupos, organizações
ou instituições. Porque assim se torna ao mesmo tempo mais urgente e menos
evidente a determinação do sentido ' da razão de ser, relevância, lógica,
alcance ' do processo social vivido.
Por conseguinte, a arte não só encontra aqui a riqueza e densidade de materiais
e de motivos que podem fundar uma criação ' de acordo com o sábio aforismo de
Camus (2007: 103): Se o mundo fosse claro, a arte não existiria; a
centralidade da questão do sentido das mudanças vividas torna crítica, para a
sua apropriação social ' incluindo a apropriação por via da abordagem
sociológica ' a construção acerca delas, e a disseminação, de interpretações
artísticas.
Batalho, pois, pela pertinência e utilidade do cruzamento entre interpretações:
no caso, a interpretação sociológica e a interpretação literária. Para que
exista, é necessário que nenhuma queira reduzir a outra ao estatuto de objeto;
que nenhuma queira negar autonomia e legitimidade à outra; que nenhuma queira
impor os seus próprios termos e critérios. Mas é também necessário que ambas
entendam a sua convergência, ao fim e ao cabo baseada neste comum compromisso
com a procura de sentido.
Colocando-me na perspetiva do sociólogo, quero mostrar a possibilidade de uma
aproximação sociológica que não pretenda explicar a literatura situando-a
na sociedade, mas sim coisa bem diversa: conhecera sociedade coma literatura.
Mobilizando em seu favor, e em acumulação com as suas próprias chaves de
interpretação dos processos sociais (literários incluídos), algumas das chaves
de interpretação (incluindo dos processos sociais) próprias da literatura.
Tentarei fazê-lo com um simples exercício. Tomarei a dezena de romances
publicados por Lídia Jorge, entre 1980 e 2010, como uma problematização
literária sobre a mudança social em Portugal. Este exercício vem na sequência
lógica de outros (Silva, 2005a; Silva, 2005b; Silva, 2011), e como esboço ou
tentativa de teste e apuramento de um modelo analítico deve ser encarado. Não
sei se será preciso repetir que não se quer abordar a obra romanesca de uma
dada autora, mas apenas um dos seus eixos temáticos; e que não se quer fazer
crítica ou análise ou história da literatura, mas sociologia. À cautela, fica
dito e registado.
2. O Algarve muda
Parto, pois, da ideia simples de que a ficção de Lídia Jorge (romancista e
contista nascida em Boliqueime, Loulé, em 1946) elabora expressivamente sobre a
mudança social em Portugal ' com particular atenção à região algarvia.
O cais das merendas, publicado em 1982, romanceia a metamorfose de um grupo,
oriundo da pequena agricultura e da pesca artesanal, em conjunto de
assalariados de um novo hotel, ligado ao turismo de sol e praia. Estamos entre
os anos 1950, quando se inicia o processo de implantação do hotel, e os anos
1970. Estes homens e mulheres do campo e do mar, e a comunidade que formam, são
sacudidos pela novidade absoluta da exploração turística da sua região. O hotel
é dirigido por estrangeiros, acolhe estrangeiros, pulsa de acordo com ritmos
estrangeiros. E a comunidade local que o recebe de fora, que nele vê a
oportunidade do emprego, da independência face às incertezas da subsistência
tradicional e da aproximação ao que é exterior e moderno, essa comunidade tem
de fazer a difícil e, às vezes, dolorosa aprendizagem de coisas absolutamente
novas: o assalariamento; o trabalho organizado; a língua inglesa; os valores e
regras de conduta dos estrangeiros em turismo; as normas de apresentação de si,
as técnicas corporais e as formas de comunicação exigidas pelo mundo urbano e
cosmopolita, tão contrastantes com as rotinas tradicionais. Já não pode falar-
se de merenda, coisa que lembraria figos, mas sim de party, ajuntamento que
falava festa, doces gestos (Jorge, 1982: 25), é preciso distinguir um long
drink de um short drink (Idem: 170), as mulheres, agora empregadas de hotel,
têm de incorporar regras de civilidade até então desconhecidas, lavar os dentes
deixará irremediavelmente de ser, como outrora, a excentricidade de que se ria
(Venham ver. Consta que o filho da Belisanda lava a boca como as putas, idem:
154).
É um processo de adaptação ' a algo que vem de fora, é comandado de fora, e a
que é forçoso ajustar hábitos, capacidades e rotinas. Uma rutura, que põe
abruptamente em causa os fundamentos mesmos da comunidade formada nesses tempos
anteriores em que a areia ainda não se havia transformado de terreno de
pescaria, remendo de rede, em espaço de esturração, nudez ao sol (Idem: 86).
Um desafio, pois, para que os locais não estão suficientemente munidos. E a
adequação forçada que ensaiam tropeça nos falhanços, na imitação desajeitada,
nos equívocos e desencontros, no permanente retorno impertinente do passado
aldeão. E, assim, tende a ser gerida através da submissão ao universo exógeno
do turismo e do recalcamento do passado que este universo tão cruamente
desqualifica. À medida que se empregava no hotel, a pouco e pouco toda a gente
se tinha desembaraçado dos seus incómodos, como porcos, galinhas, animais que
cagavam nas ruas e que precisavam de comida e água a horas certas (Idem: 57).
Depois, perante o risco de despedimento, será sombria a perspetiva de regresso
ao modo de vida camponês: Imaginassem só o que seria voltar a sair de casa às
cinco da manhã em cima de muares cheirando a estrume. O que seria não ter hora
para comer nem para descansar. Andar sem banho. Semear milho e ordenhar gado.
Que imaginassem só. E Aldegundes Beira estava a fazer um grande esforço. Gado?
Que gado? Nunca vi na vida nenhuma cabeça dele. Como é? Aliás, Aldegundes é que
respondia cabalmente ao que estava a acontecer. Também não sabia o que era
lavra, nem capoeira, nem jungir as bestas. Mulher, que mau feitio de memória.
Juro. Juro que não me lembro se é a galinha que põe o ovo, nem se é a parreira
a árvore que dá as uvas. Como eu ando. E enquanto Pinaira parecia ter terminado
o seu aranzel, Aldegundes Breba estava morta por matar aquela curiosidade de um
mundo que tinha vivido na Redonda. Então quantas vezes se semeia ao ano?
Precisamos de chuva para que as plantas nasçam? E a chuva donde vem? Não, nunca
ouvi falar de vento, não sei que vvv é esse. Sim, estou a compreender que
mondar é separar o joio do trigo, mas e que é o trigo? Digam-me, por favor.
Aldegundes tinha esquecido tudo, senhores, tudo tudo, parecia um habitante do
fundo do mar dado à costa, só que, para se ser franco, estávamos todos
desmemoriados, sem sabermos, por exemplo, se as segas se faziam na primavera,
se no Outono. Eu tenho a ideia de ver num filme colorido mulheres a ceifarem
com uma luz alaranjada, própria da queda da folha entre nós. Pois será outubro
o mês das ceifas? Digam, digam mais que é tão bom ouvir. Insistia Aldegundes
atenta nas estrelas ainda não desmaiadas (Jorge,1982: 244-245).
Uma outra luz sobre a mudança histórica do Algarve será projetada pelo romance
O vale da paixão, editado em 1998. A sucessão de três gerações da família Dias,
em São Sebastião de Valmares, uma aldeia perto de Faro, é narrada ora na
terceira ora na primeira pessoa, mas sempre da perspetiva da neta do patriarca
Francisco Dias. Ela nasceu em 1948 do relacionamento ilícito de um dos filhos
de Dias, chamado Walter, com a adolescente Maria Ema, de uma família vizinha.
Como Walter recusa casar-se, embarcando como soldado para a Índia, o patriarca
obriga outro dos seus filhos, o coxo Custódio, vítima de doença infantil, a
casar com Ema, reparando a ofensa cometida. Walter é o rebelde e aventureiro, o
que abandonou a terra, que corre mundo, não tem ocupação permanente e
produtiva, ora soldado, ora comerciante, ora embarcadiço, ora dono de bar, o
que se dedica a desenhar pássaros e seduzir mulheres. Custódio é o filho
vinculado, preso ao pai e à terra, subordinado aos interesses da casa e do
grupo, o integrador e protetor dos que lhe couberam em destino.
Os Dias eram uma família de agricultores médios. Com sete filhos, o pai juntava
o seu trabalho ao dos jornaleiros e criados de casa e lavoura, e ia
acrescentando terras e cultivos, porque só aí, no ambiente rural da unidade
doméstica, do trabalho, da poupança e do património, se sentia realizado e
seguro ' sendo, por isso mesmo, tremendamente desconfiado face ao meio exterior
e à novidade e mudança com que ele o ameaçava. Ora, entre os fins dos anos 1940
e 1983, que balizam o tempo da história, o agricultor Francisco Dias vai sofrer
sucessivos rombos no seu mundo. Logo em 1948, a ofensa de Walter e o
sacrifício de Custódio. Em 51, Walter regressa da Índia e de novo se envolve
com Maria Ema, de tal modo que pai e irmãos o forçarão a partir, dois anos
depois. A seguir, entre 1955 e 1958, os cinco irmãos restantes emigram todos,
para o Canadá, os Estados Unidos e a Venezuela, deixando o pai e a agricultura
familiar amparados apenas pelo vinculado Custódio. Em 1963, novo retorno de
Walter: traz automóvel, rádio e máquina fotográfica, cheio de projetos: o
Algarve vai mudar e a força motora é o lazer. Novo envolvimento com a cunhada,
que tenta suicidar-se; e Walter parte definitivamente, elemento estranho a um
mundo que não reconhece e que o não reconhece. O velho Dias luta pela
sobrevivência do seu casulo rural, enquanto espera o regresso dos filhos
emigrados e assiste perturbado à transformação urbana e turística dos anos
sessenta e setenta. Mas nenhum filho regressa, um após outro remetem cartas,
cheias de expressões em inglês ou espanhol, que assumem o não retorno. Só
restam, com o velho, Custódio, a sua esposa Maria Ema e a sua filha legal,
filha carnal de Walter.
No romance sucessivo, O vento assobiando nas gruas, editado em 2002, a ação
desenrola-se também em Valmares, agora na segunda metade dos anos noventa. A
família de Milene, jovem oligofrénica, teve uma fábrica conserveira, fundada no
início do século XX pelo seu bisavô e depois dirigida pela avó paterna. Em
1975, o pai de Milene entregou a gestão aos trabalhadores, que a devolveram à
família dez anos depois, falida e abandonada. A avó acabou por arrendá-la, para
habitação, a uma família extensa de imigrantes caboverdianos, trabalhadores na
construção civil (exceto o mais novo, cantor). Mas a morte da avó vem tornar
possível a vontade dos tios de Milene (um presidente de Câmara Municipal, outro
advogado e cavaleiro, outro empresário em negócios lícitos, etc.), que
pretendem desfazer-se da fábrica vendendo terreno e instalações a especuladores
imobiliários holandeses ' coisa que requer a resolução do caso de Milene, que
era órfã dos pais e residia com a avó falecida.
Algarve em mudança, pois: muito acentuada dos anos sessenta em diante, com a
alteração radical da economia, da estrutura social e dos padrões de
comportamento. Da agricultura e da indústria tradicionais para o turismo e a
construção civil, a hotelaria, a restauração e as atividades de lazer a ele
associadas; da sociedade rural de famílias patriarcais e comunidades de
vizinhança para o confronto com a emigração e o turismo, primeiro, e, depois,
com a imigração; e a transformação correlativa dos valores, hábitos e estilos
de vida.
Mas o que é que muda, como é que muda o que muda, o que o faz mudar?
O primeiro romance de Lídia Jorge, editado em 1980 e intitulado O dia dos
prodígios, encena essa mudança como a tensão entre o que move uma comunidade
por dentro (e é outra vez uma pequena povoação algarvia, agora a vila de
Valmaninhos) e o que lhe chega, ou pode chegar, de fora. A comunidade faz-se de
várias gerações, e entre os mais velhos há até quem tenha demandado a Flandres,
como soldado do Corpo Expedicionário Português na Guerra de 1914-18. São
populares nada ou pouco escolarizados, ocupados na terra e nos ofícios, como os
de almocreve, cantoneiro, arreeiro ' lavradores e artífices, pois. Estão física
e socialmente muito próximos uns dos outros, partilham falas e memórias,
trabalham com as mãos e o corpo, encaram a cidade como sítio de burocracias,
aprovisionamento, comércio, poder e mudanças, guiam-se por uma estrita divisão
de géneros e não conhecem prior desde que o último se amantizou com mulher
local e lhe gerou uma filha. A ligação com o exterior faz-se pela cidade a que
conduz a estrada, percorrida de animal ou na camioneta de carreira; pelos que
emigram; pela experiência da tropa e a nova realidade da guerra em África, a
partir de 1961. E assim chegam as notícias de eventos que significam ruturas ou
possibilidade de ruturas; acontecimentos inesperados, factos novos, que são
desafios à compreensão comunitária e carecem, por isso, de um trabalho moroso e
incerto de apreensão. Prodígios, fraturas repentinas no modo de ser e viver
que, por enquanto, apenas podem ser enunciadas como lances exógenos,
inexplicáveis, prenhes de riscos e oportunidades. Estamos no verão de 1973 e,
certo dia, uma cobra, depois de morta, levanta voo. Subsequentemente, a mula do
almocreve desaparece sem deixar rasto; a mulher passa a dormir de olhos
abertos. Como decifrar estes prodígios? E como entender estoutros
acontecimentos que perturbam, como a morte do soldado afilhado de guerra de
Carminha, a filha do padre, e seu prometido? E Branca, a mulher do almocreve,
que há dez anos borda ininterruptamente uma colcha, que fará com ela?
Continuará com o marido, presa ao mundo dos campos e dos animais, ou dirá que
sim ao cantoneiro, que a desencanta com promessas de trabalho e viagens num
camião?
E, logo na primavera seguinte, outro instante de fratura, outra coisa que vem
de fora e chega primeiro como notícia e, depois, se manifesta à vista de todos,
com a entrada na vila de um camião de soldados: qualquer coisa os militares
fizeram, terão tomado conta do país.
O romance termina em suspensão. Valmaninhos está suspensa, expectante, inquieta
e desentendida: pois a verdade inquestionável é que algo vai mudar, está já a
mudar, algo de muito fundo e com grande alcance, e não se sabe como vai ser
essa mudança, quem poderá adivinhá-la e prevê-la, de que ameaças é portadora ou
que vantagens trará, quem poderá conduzi-la ' e sobretudo como se pode exprimi-
la, isto é, interpretá-la uns com os outros.
A narração dos factos cruza-se com a expressão das emoções e sentimentos deste
sujeito coletivo que é a comunidade em sobressalto ' são múltiplas as vozes que
narram, falamos todos ao mesmo tempo, percebendo-se o que cada um dia diz
mas ficando bem claro o desentendimento entre todos (Jorge, 1981: 13). A
vontade e necessidade de falar, e falar em comum, falar em atropelo, falar e
ouvir e tornar a falar, exprimir e comunicar, são tanto mais importantes quanto
essa é a forma mais instante de mobilizar a arca de competências e saberes e
por aí tentar compreender e apropriar o mundo. Não se trata apenas, embora
crucialmente, de se proteger e convencer a si mesmo e aos outros com as
palavras doces, o mel do falar, como diz o cantoneiro (Idem: 37); trata-se
também de fazer regressar a novidade à bagagem cultural comum que a possa
integrar.
Falas de dentro: de dentro de famílias, de vizinhanças, de comunidades; de
dentro de casas, do quotidiano das casas e dos lugares; falas marcadamente
femininas, falas de mulheres, falas acerca das técnicas e das normas do corpo,
das tarefas, da domesticidade, do desejo; gente que se eleva ao estatuto de
sujeito, pessoa parte da história, ao falar entre si e a outrem da sua história
e do seu encontro e desencontro com a história envolvente, e falando das
incertezas e inquietações, mas ainda das promessas contidas em tal tensão.
3. O país muda
Dos dez romances publicados por Lídia Jorge entre 1980 e 2010, quatro têm por
lugar de ação o Algarve (as povoações designadas por Valmaninhos, Redonda, São
Sebastião de Valmares ou Valmares), quatro, Lisboa e um, a Beira, em
Moçambique. No romance restante, A última dona, de 1992, a ação decorre entre
Lisboa e uma casa solada em pinhal algarvio.
Ora, quase todos os romances tematizam questões de mudança social. Para além
das ficções que já referimos, sobre a transformação do Algarve ' as quais
consideram processos como a expansão do turismo e das indústrias e serviços que
lhe estão associados, a urbanização, a emigração, sob a lógica do confronto das
comunidades e artes de ser tradicionais com os desafios que esses processos
representam ', a obra romanesca de Lídia Jorge contém outras elaborações sobre
a contemporaneidade portuguesa e, em particular, sobre a sua estrutura urbana.
Em A costa dos murmúrios, livro editado em 1988, está em causa a experiência
traumática da Guerra Colonial ' e o que ela significa de dilaceramento de
identidades pessoais e relações afetivas. Vinte anos depois, a narradora
recorda a sua passagem, em 1968, pela cidade da Beira, acompanhando como esposa
recém-casada o alferes miliciano Luís Alex, estudante de Matemática mobilizado
para Moçambique. Como ela escreve: o meu problema é que em tempos me apaixonei
por um rapaz inquieto à procura duma harmonia matemática, e hoje estou
esperando por um homem que degola gente e a espeta num pau (Jorge, 1988: 167).
O romance é sobre essa rutura. De um lado, Luís vai-se transformando, no
ambiente da guerra, num oficial de exército de ocupação, admirador e seguidor
das proezas do seu capitão, participante dos massacres sobre populações
nativas, encurralado como os demais militares entre a pressão dos ultras para a
independência branca de Moçambique, os protestos dos colonos contra a aparente
incapacidade da tropa para acabar com a guerrilha e a evidência crua das
dificuldades sentidas face à resistência adversária. Do outro lado, Eva, a quem
pouco ou nada dizem os códigos da honra militar, testemunha revoltada a
violência exercida sobre a população negra e constata à sua própria custa como
é impossível denunciá-la.
Em 2010, A noite das mulheres cantorasevocará também a experiência africana de
várias gerações de portugueses: os pais da narradora, Solange de Matos, foram
colonos em Angola ' e o episódio em que o pai descobre que o seu trabalhador
dileto estava afinal ligado à luta anticolonial significa de alguma forma o fim
da ilusão sobre a natural legitimidade da presença portuguesa. Eles retornaram
depois do 25 de Abril e experimentaram as dificuldades mas também o relativo
sucesso da reintegração, instalando-se como pequenos agricultores na província.
Todas as raparigas que constituirão, nos últimos anos oitenta, a girls band
popque haverá de conhecer um episódico sucesso, são originárias de África ' e a
uma africana, Madalena Micaia, pertence a melhor voz do grupo, vindo também ela
a ser a vítima do seu excessivo comprometimento com o sonho do rápido triunfo
no mundo do espetáculo.
Outro tema maior da ficção de Lídia Jorge é o refluxo pós-revolucionário e a
melancolia que alimenta. A Lisboa de Notícia da cidade silvestre(com primeira
edição em 1984) vive a ressaca da revolução subsequente ao 25 de Abril de 1974.
Estão ainda presentes mas já se vão tornando anacrónicas as referências
revolucionárias ' doutrinas, ícones, palavras de ordem, ou tão simplesmente
bordões linguísticos. Estávamos em setenta e seis, suponho, ainda um barulho
real no ar, mas descontando o ruído que murchava, tudo corria manso (Jorge,
1994: 62); e, até 1979, limite temporal da ação, mais murcharão as referências,
mais mansos se tornarão a cidade e o país, mais perdidas ficarão as ilusões e
mais desamparadas as personagens que haviam entrevisto, na fratura
revolucionária, um horizonte de redenção: David Grei, escultor falhado, que se
suicida logo em 1975, ou Artur Salema, também artista, que ainda ensaia uma
experiência tardorrevolucionária de fusão artística e dinamização cultural numa
oficina de serralharia, mas acaba expulso pelos trabalhadores, regressados à
montagem de caixilharias e fechamento de varandas. Outros revolucionários-
artistas vão desistindo e rendendo-se, recolhidos ao redil das respetivas
famílias burguesas. E o contraponto entre as duas mulheres protagonistas do
romance ' Júlia, a narradora, jovem viúva do suicida Grei, com o filho comum a
cargo, vulnerável, procurando proteger-se e ao seu filho em empregos, casas,
relações; e Anabela, a aventureira, livre e individualista, independente e
calculista ' é também o testemunho da crescente afirmação da lógica competitiva
de sobrevivência e aproveitamento pessoal, que o episódio revolucionário havia
colocado em suspenso ou na sombra mas agora irrompe com redobrado vigor.
O dono da casa de hóspedes de O jardim sem limites(editado em 1995) é, talvez,
a melhor encarnação desta geração desencantada que interpretou a estabilização
democrático-constitucional como perda irrecuperável do pathosrevolucionário.
Eduardo, conhecido como Lanuit por causa das noites de tortura que sofrera,
durante o Estado Novo, ainda tinha, em 1988, que é o tempo da história, na
casota que lhe servia de escritório, uma fotografia sua junto de um enorme
cartaz de Mao Zedong. E vive obcecado com o destino dito burguês dos camaradas
de resistência e revolução que se deixaram normalizar, tornando-se
funcionários, quadros e gestores, ou seja, do seu ponto de vista, que se
renderam e traíram. Ele recusa fazê-lo ' e por isso não tem agora emprego,
vivendo do que a mulher consegue tirar do aluguer dos quartos da casa de ambos;
por isso dedica os seus dias à tentativa de escrever um livro de ajuste de
contas, cujo título seria, significativamente, Alguém me amará mais tarde. As
paredes da casota estão preenchidas com a mapeação explícita e
classificatória das pessoas e percursos dos seus ex-companheiros: o primeiro
grupo são os que não devemos esquecer ' poucos; o segundo, os que não
podemos perdoar ' bastantes mais; o terceiro, os verdadeiramente traidores;
e, quarto, o mais numeroso, aqueles que não nos traíram mas nos deixaram sós
(Jorge, 2002a: 159-161).
Eduardo acabará ele próprio, depois de abandonado pela mulher, por se render:
mas à sua maneira, como um último gesto de rebeldia. Aceita então o terrível
encargo de atear um fogo nos Armazéns do Chiado. Todavia, estabelecidos os
contactos necessários, testado o plano de operações, encetado o pagamento na
forma combinada e aprazado o incêndio para certos dia e hora, eis que, no
mesmíssimo local, dois dias antes, sem qualquer intervenção sua, se declara o
fogo. Derradeira perda e humilhação, pois: nem sequer o crime, nem a assunção
singular de uma culpa lhe são permitidos. Que futuro resta? Talvez, diz a
narradora, que é uma dos hóspedes da casa de Eduardo, vá buscar a mulher,
retomar a vida familiar, rasgar notas e papéis e renunciar ao livro, abandonar
a Casa da Arara e recomeçar noutro sítio ' talvez acabe por eliminar-se o que
restava, neste lugar da zona histórica de Lisboa, de teimosa resistência à
normalização.
4. Derivas, sombras, desencontros
A transformação que alterou radicalmente, ao longo da segunda metade do século
XX e por influências sobretudo exógenas, a estrutura e a identidade da
sociedade portuguesa; o facto e a memória do momento revolucionário que, a meio
da década de setenta, pareceu acelerar a história e abrir horizontes de
novidade absoluta; e a reestabilização do país como sociedade da periferia
europeia, envolvida numa modernização incompleta ' todos estes processos
convergem numa recomposição sociocultural que vários romances de Lídia Jorge
sondam, desvelando as suas zonas de sombra, inquietude e desencontro.
Nessas décadas de oitenta e noventa, Portugal acabara de encerrar, tardia e
turbulentamente, o ciclo colonial, regressando ao contorno europeu: várias
gerações jovens ou adultas transportavam, entretanto, a experiência de uma
origem africana ou de trechos da vida passados em África, maximea experiência
direta ou indireta da Guerra Colonial. O fim do ciclo colonial é concomitante
do fim da vaga emigratória, na dimensão que havia conhecido no pós-Guerra,
também por aí Portugal se reconstrói como sociedade e tem na integração, sem
ruturas, de meio milhão de retornados das ex- colónias e outro tanto de
emigrantes regressados de França e Alemanha, a demonstração mais sólida da sua
própria capacidade de coesão e desenvolvimento. Ao mesmo tempo,
institucionaliza a democracia política e a viragem que ela representa na
vivência da liberdade, na afirmação dos direitos pessoais, na vida quotidiana.
Intensifica-se a terciarização da economia, a cobertura do território com
serviços e equipamentos públicos, a afirmação das mulheres e das gerações
jovens, mais escolarizadas e cosmopolitas, a nova centralidade das classes
médias urbanas. Integrado na União Europeia, o país reforçará as pontes com o
Sul, mediando a relação entre o centro de que é periferia e a periferia a que
não pertence por ser do centro. Torna-se uma sociedade ao mesmo tempo de
emigração e de imigração, em rápida desaceleração demográfica, com assinaláveis
progressos nos indicadores sociais e de qualidade de vida mas marcada por
profundas assimetrias regionais e desigualdades sociais. Para onde vai?
Primeiro elemento de resposta, nos romances de Lídia Jorge: sondemos as
derivas. Aquelas, certamente, induzidas pela alteração, abrupta e inesperada
pelo menos quanto à envergadura, da revolução portuguesa ' e o ambiente
cultural, social e político internacional em que ocorreu. O momento de deriva,
nos anos pós-revolucionários, da filha de Walter Dias e Maria Ema, em rutura
com a mãe e o avô, aparentemente reproduzindo o padrão do seu pai biológico ( O
vale da paixão). As derivas em que estão envolvidos os hóspedes da Casa da
Arara (O jardim sem limites), no geral filhos de famílias ricas a cuja rotina
querem escapar, e por isso estão ali, remetidos a quartos, em ocupações
marginais e precárias. Um é ajudante de cabeleireiro, outro está empregado num
restaurante de comida rápida, outro transporta um passado de dependência de
drogas, outro intitula-se cine-repórter em busca de uma peça sobre crimes ou
tragédias urbanas ' e Leonardo, Static Man, o homem-estátua, faz do sacrifício
extremo do próprio corpo e da afirmação pública do seu isolamento e total
indiferença a afirmação de vontade própria: Essa coisa, essa ideia para a qual
não tinha outra palavra senão Nada, era a sua honra (Jorge, 2002a: 346).
Segundo elemento de resposta: olhemos as sombras. Os crimes, as ofensas, as
opressões e as exclusões de que se alimenta a ordem social, as coisas indignas
que se fazem nos subterrâneos ou nos interstícios da vida urbana, as transações
e as transigências em que se alicerça a normalização. As aventuras que
apimentam a existência de Geraldes, engenheiro de barragens na meia-idade,
preso a um casamento convencional e monótono, progenitor de três filhos e
ilustre homem público, desembocam numa breve relação clandestina com a jovem
amante de um amigo; e, quando a rapariga morre na casa de encontros furtivos,
vítima de sobredose de medicamentos, os esbirros da casa farão desaparecer o
corpo. O engenheiro, esse, depois de uma breve hesitação, lá se acolhe a
Lisboa, à empresa, à família (A última dona, editado em 1992). As raparigas que
constituem, no fim dos anos oitenta, uma banda pop de algum, efémero, sucesso
comercial, e nessa materialização de um sonho, a entrada no mundo do
espetáculo, vivem também as lógicas de relacionamento interpessoal, os amores
juvenis e a primeira sexualidade, carregam um interdito, uma zona de sombra,
culpa e vergonha que só vinte anos depois a protagonista-narradora revelará. É
que a melhor voz do grupo, a africana Madalena Micaia, empregada de
restauração, havia desafiado o tabu lançado pela líder do grupo, Gisela
Baptista, a saber: não ter comércio com homens, para haver concentração total
nos ensaios e nenhum risco de perturbações na marcha prevista de gravações e
concertos. Madalena não só desobedecera como até engravidara e agora dava à luz
exatamente no momento mais crítico para o êxito do projeto, a gravação do
primeiro disco e a realização do primeiro espetáculo. Para não atrasar o grupo,
apressa-se a retomar os ensaios, sem respeitar o descanso pós-natal, e acaba
por morrer na própria garagem que acolhia os ensaios. Sob o comando do padrasto
de Gisela, a morte é ocultada e o corpo desaparece (A noite das mulheres
cantoras, 2010). A bela história de amor entre a oligofrénica Milene, rebento
órfão, ingénuo e simples de uma família de industriais algarvios, à mercê dos
tios depois da morte da avó protetora, e Antonino Mata, o operador de gruas
negro e viúvo, da família de imigrantes caboverdianos a que a avó de Milene
havia arrendado as instalações da sua antiga fábrica, põe em perigo o projeto
imobiliário daqueles tios. A família, ludibriando-a, leva-a a submeter-se à
laparoscopia que a tornará infértil ' um crime que o silêncio de todos,
incluindo Antonino, sepultará ( O vento assobiando nas gruas, 2002). Em
Combateremos a sombra, o psicanalista Osvaldo Campos, com consultório aberto em
Lisboa, havia quanto tempo ( ) não escutava uma vida que não fosse para se
queixar duma perda, duma dor? De um aniquilamento? De alguma coisa dolorosa ou
insuportável? (Jorge, 2007: 293). E, contudo, a história de Rossiana, a
angolana sua forçada vizinha, era ainda mais brutal e direct(a), bem para
lá do catálogo canónico de traumas psíquicos e procedimentos analíticos.
Rossiana ficara refém de uma rede de tráfico de droga e aguardava, escondida
noutro andar do edifício de escritórios em que estava instalado o consultório
de Campos, o visto e o bilhete que lhe permitissem a fuga para Angola. Ao mesmo
tempo, a sua paciente magnífica, a jovem Maria London, filha de um arquiteto
dado aos negócios, separada da mãe desde a infância e hiperdependente do
psicanalista, tentava revelar-lhe uma história, contando- lha como se fosse uma
fantasia e um sonho. História terrível, nem mais nem menos do que a exploração
de pessoas desesperadas como correios de droga, por parte de uma rede de alta-
roda em que estava metido o pai de Maria. A mesma rede que perseguia Rossiana,
testemunha, enquanto técnica de radiologia numa clínica afinal envolvida nesse
tráfico, do modo de usar tais correios.
5. Narrar, escrever, falar
Temos pois comunidades, Valmaninhos ou Redonda ou Valmares, envolvidas por
processos sociais de transformação estrutural que alteram praticamente tudo: as
técnicas de organização e apresentação dos corpos; as relações pessoais,
familiares e vicinais; as tarefas, os instrumentos, os lugares e modos do
trabalho; a língua, a linguagem e a comunicação; a geografia dos sítios e das
deslocações; os valores e princípios de perceção e avaliação do mundo; as
formas de agir; a relação entre os géneros, as classes e as gerações; as
memórias, o seu valor e a sua convocação; o futuro. Uma transformação operada
de fora, a que as comunidades reagirão por adaptação e manipulação, certamente,
mas o modo predominante é por enquanto a expectativa, o desconforto e primeiro
tatear. E, por isso, é o tempo de falar, falar para compreender, para integrar
e exprimir. Tempo de narrar e comunicar.
Mas não são só essas comunidades que se encontram em processo de mudança. Muda
o país como tal, movido pelas grandes forças que o transformam: o impasse
político-militar da Guerra Colonial, a emigração maciça, a consumação da
revolução e depois a institucionalização da democracia, a inscrição europeia, a
abertura à imigração, o crescimento das áreas urbanas e metropolitanas, e o
fluxo poderoso das alterações estruturais na economia, na sociedade, no
imaginário e nos padrões de comportamento. Gerando uma inquietação, um estar
incerto e como que em suspenso, à procura do caminho ou com o caminho bloqueado
' atores em rutura, em contradição, em deriva ou rendição, triunfo dos
expedientes, de pequenas ou grandes explorações, sombras, sombras nas pessoas,
entre as pessoas, nas famílias, nas instituições, nas cidades. Também aí é
preciso falar, contar, discorrer. Contar a sua experiência na primeira pessoa,
como a Eva Lopo de A costa dos murmúriosou a Solange de Matos de A noite das
mulheres cantoras. Ou contá-la a um interlocutor, que a há de reelaborar, como
o engenheiro Geraldes de A última dona. Ou fazer o relato escrito da sua visão
da história de uma família e do seu filho rebelde, a visão de quem é afinal
filha natural desse rebelde, como em O vale da paixão; e a narrativa começou
por ser uma forma de romper com esse pai que seduzia e abandonava e regressava
e seduzia e abandonava. Ou relatar ' a uma pessoa narradora que o organizará em
texto ' o que se sabe, por testemunho pessoal e direto, dos acontecimentos que
levaram à morte do psicanalista Campos, como fazem Rossiana e Maria London, em
Combateremos a sombra. Ou escrever, e fazer da escrita um instrumento de rutura
e afirmação, caso da Júlia de Notícia da cidade silvestre' e os seus cadernos
servirão de base à composição do romance da romancista Lídia Jorge, que duas
vezes se assina, uma como autora do livro e outra como autora da nota que o
introduz. Ou fazer do discurso escrito não apenas um testemunho mas também um
ensaio de redenção, como a narradora de O jardim sem limites, afinal também
hóspede da Casa da Arara, traçando nas paredes do quarto e na máquina de
escrever o curso já havido e o curso a haver dos acontecimentos da Casa e dos
seus habitantes ' e, quiçá, assim determinando esse curso. É preciso ouvir,
como ouve e regista esta mesma narradora de O jardim sem limites, como a pessoa
que narra O dia dos prodígiosouve e anota as vozes da comunidade que se lhe
dirigem em atropelo. Ou como o psicanalista Osvaldo Campos, uma pessoa que não
fazia mais nada na vida do que escutar narrativas para delas extrair a sua
lógica implícita (Jorge, 2007: 232): ( ) o aparelho psíquico, tão à vista e
tão recuado que nele só se entrava a poder de sondas. A fala, como sonda. Fazer
da fala um bisturi e ir lá (Idem: 445).
Falar é agir. É aperceber e interpretar e pronunciar o mundo de um certo ponto
de vista, mesmo que este ponto de vista não seja linear, antes um mosaico de
perspetivas cruzadas, ou um Eu fragmentado ou em processo de (re)construção. O
ponto de vista mais presente na ficção de Lídia Jorge é, sem dúvida, o das
mulheres. Por vezes, ele próprio significa uma mudança radical na literatura
portuguesa ' como essa descrição do momento-rutura associado à experiência da
Guerra Colonial, do lado e na lógica da jovem universitária que perde o marido-
soldado porque não está disposta a perder, ao contrário (aparentemente) dele,
os seus valores e convicções (A costa dos murmúrios). O olhar feminino ilumina
outros aspetos, outras sombras da realidade social ' por exemplo, o aborto
clandestino (Notícia da cidade silvestre). O olhar das mulheres incorpora o
interior das casas, o cuidado dos filhos, os rituais de enamoramento e
conjugalidade, a proximidade afetiva, as solidariedades de género e parentela,
o sentido de comunidade. São, em geral, jovens ou rememorando momentos da
juventude, e o crescimento e experimentação que a caracterizam, o complexo
caminho para a idade adulta: por vezes uma educação sentimental intensa e um
pouco crua, implicando múltiplas tentativas, ilusões, desencontros, tropeções,
frustrações, cumplicidades, raivas, cair e tornar a pôr-se de pé, romper e
unir, separar e ligar, para que o mundo e o Eu no mundo adquiram algum sentido
(tal o percurso de Júlia, em Notícia da cidade silvestre). Aprender a lidar com
o fascínio e a estranheza de ser filha de um nómada, sempre em travessia dos
momentos e lugares e círculos da vida, filha acolhida pelo irmão dele que lhe
assume a culpa em defesa da família, casando com a mulher que ele havia
seduzido e abandonado, e protegendo, como seu encargo e seu afeto, a filha dele
que a convenção social determina que seja oficializada como filha sua ' e é
nesse mundo perdido de casa rural de aldeia que a filha de Walter Dias acaba
por ficar, dona da manta de soldado em que ele desenhava pássaros e seduzia
mulheres, e que lhe remetera no fim da vida, por encomenda postal proveniente
da Argentina e largos meses perdida em vicissitudes de correio, como única
herança, legada à sobrinha (O vale da paixão). Ou viver em grupo, sob a
liderança enérgica e despótica da maestrina que tem o projeto musical e os
recursos materiais indispensáveis para concretizá-lo, viver a juventude, os
primeiros amores e a primeira sexualidade, os primeiros sonhos e a primeira,
dolorosa, violentíssima, culpa (A noite das mulheres cantoras).
Falar, escrever, discorrer sobre o que se vive ou quer viver, organizar em
relato e narrativa, tentar formar uma estrutura de relevância e sentido,
desenhar por ai uma identidade e um projeto, é testar a sua própria autonomia
de sujeito no mundo, de pessoa em situação, de ator e intérprete. Sujeito
coletivo, comunidade e grupo (Valmaninhos de O dia dos prodígios, ou o grupo de
trabalhadores do hotel provenientes da aldeia da Redonda, em O cais das
merendas); esse grupo que Francisco Dias gostaria que a família fosse, coesa,
unida e inalterável, mas que se esboroa a seus olhos, minada por aqueles que
aparentemente lhe eram mais próximos, mas que, emigrando e não regressando,
operam uma rutura afinal ainda mais radical do que a do aventureiro Walter (O
vale da paixão). Ou sujeito individual, pessoa na mais radical singularidade
que a constitui, a de dizer a suapalavra, delimitar o seumundo, escolher,
quebrar e fazer erguer. Ganhar, como ganha Júlia Grei (Notícia da cidade
silvestre), que enfim encontra um motivo e um caminho para recomeçar; ou
perder, como perde Eduardo Lanuit (O jardim sem limites), acabando por render-
se à norma a que tentara opor a mais inútil e solitária negativa, ou Osvaldo
Campos (Combateremos a sombra), que foi tão canhestro na denúncia pública das
redes de traficantes que acabou assassinado às respetivas ordens, sem que nada
viesse sequer a apurar-se no processo judicial subsequente ' só restando, pois,
o testemunho de duas mulheres e a narração que o utiliza e faz perdurar.
Mas talvez as coisas sejam mais complexas, e haja um lado de vitória, quer
dizer, de relevância e sentido, nas decisões de Osvaldo, como na rutura
dolorosa de Eva (A costa dos murmúrios), ou na ligação amorosa de Milene (O
vento assobiando nas gruas), enganada até por todos, ou na heterodoxa autonomia
de Walter Dias e sua filha, ou mesmo na morte de Leonardo, o homem-estátua (O
jardim sem limites), em cujo desesperado desempenho, que o levará à inanição,
uns verão a oportunidade de um novo recorde e disso quererão tirar vantagem,
mas ele investe apenas a prova da sua capacidade de querer e ser o que quer,
mesmo que isso seja, simplesmente, o Nada.
Ganhar e perder, perder-se e encontrar. Personagens e não tipos sociais, têm
substância própria e não representam ou figuram ninguém. São atos de
criação, obras e eixos de obras, literatura.
Mas o ponto não é esse. O ponto é que a mudança, as dinâmicas, ciclos e campos
de mudança que a ficção romanesca de Lídia Jorge convoca, constituem um pano de
fundo favorável para o erguer da sua obra literária, e uma matéria apropriada
para a sua laboração. Lendo-se os seus romances, compreende-se porque é que
Portugal já não é o de antanho, mas que é difícil definir esse antanho, situar,
como diria Fernando Pessoa, outrora agora ' como foi radical a transformação,
e como ela desafiou tanto pessoas e comunidades, e como abriu horizontes e
perplexidades, e provocou desamparos, e (como tão bem descreve O vento
assobiando nas gruas) houve perda, e erro, e crime, nessa rápida transformação,
ao mesmo tempo que um mundo novo se perfilava perante destinos, rasgando a sua
previsibilidade, abalando a sua força de destinos.
Portugal já não está em convulsão, o curso da história já não se encontra em
aberto, a erupção revolucionária esfriou ' e tanta frustração, tanta
melancolia, tanta orfandade, em certos meios que dela haviam feito ou fé ou
descoberta. Diferente e diverso, consolidado como sociedade europeia,
democrática, urbana, terciarizada e periférica, Portugal é o que é, moldado por
cidades, escolas, serviços, negócios, poderes, hegemonias, vivendo os complexos
processos de substituição de gerações, novos equilíbrios entre géneros, maior
plasticidade nas relações afetivas, velhas e novas formas de exclusão e
violência moral, identidades pessoais e grupais em (des)estruturação. Com
múltiplas sombras, margens, desventuras, indefinições. Com múltiplos motivos e
espaços de afirmação de autonomia e singularidade, cortes. E aí, nessa
complexidade das coisas a que a criação artística acrescenta outra, sua
própria, densidade, cabem tantos, cabe tanta literatura.