O problema da integração
Integrar significa, em português corrente, tornar inteiro. Em sociologia, o
termo integração é usado com um sentido semelhante para designar o conjunto de
processos de constituição de uma sociedade a partir da combinação das suas
componentes, sejam elas pessoas, organizações ou instituições. Essa combinação
nunca está concluída, podendo qualquer sociedade colapsar por separação das
partes que a constituem. Daí a referência à integração como problema.
Sendo um problema geral, tem expressão particular na era moderna. Dois
processos contribuem para isso. Por um lado, o processo de individualização,
isto é, de autonomização do agente humano nos planos cultural, normativo e
material. Por outro, o processo de diferenciação, isto é, de crescente
especialização das atividades, organizações e instituições que constituem as
sociedades modernas. O desenvolvimento da modernidade tem pois, entre outras
características, a de se fazer por aumento das partes que constituem as
sociedades, seja porque estas são compostas por indivíduos mais autónomos, seja
porque nelas se multiplicam atividades, organizações e instituições mais
especializadas.
Falar da combinação das componentes de uma sociedade é o mesmo que falar da
organização das relações sociais que concretizam essa combinação. Ou seja, o
problema da integração constitui uma das dimensões do problema da ordem na
medida em que envolve os modos de padronização da vida social no âmbito das
relações problemáticas entre as partes na constituição do todo. Relações
que têm propriedades diferentes consoante sejam relações entre atos de pessoas,
singulares ou coletivas, ou relações de interdependência sistémica entre
instituições e hierarquias.
Convém, por isso, distinguir entre integração social e integração sistémica. No
plano social, integração é o modo como indivíduos autónomos são incorporados
num espaço social comum através dos seus relacionamentos, isto é, como são
constituídos os laços e símbolos de pertença coletiva. No plano sistémico,
integração é o modo como são compatibilizados entre si subsistemas sociais
especializados, isto é, como são constituídas as interdependências entre
subsistemas de um mesmo sistema. Em termos mais gerais, integração social é a
ordenação das relações entre indivíduos, agrupamentos de indivíduos, atos
individuais e atos coletivos. Por sua vez, integração sistémica é a ordenação
das relações entre papéis, instituições, lugares e hierarquias.
Nas próximas duas secções, são conceptualizados os processos de diferenciação e
de individualização que estão na origem das manifestações particulares do
problema da integração nas sociedades modernas. Passa-se, depois, à análise dos
planos social e sistémico dos processos de integração.
1. Diferenciação
Todos os sistemas sociais de maior dimensão são compostos por subsistemas de
menor dimensão. Ou seja, o crescimento dos sistemas sociais tem-se feito não
por inchamento mas por multiplicação das suas partes, sistematicamente
recombinadas em novos moldes. Muitos autores defendem mesmo, com argumentos e
provas convincentes, que o crescimento dos sistemas sociais não seria possível
sem os acréscimos de complexidade que resultam da multiplicação e recombinação
das partes que os constituem.
Essa multiplicação é, habitualmente, designada por diferenciação e a sua
recombinação por integração (ou reintegração). Em rigor, porém, a diferenciação
é apenas um dos três tipos básicos de divisão que contribuem para aumentar a
complexidade dos sistemas sociais, devendo ser distinguida da segmentação e da
hierarquização. Segmentação é um tipo de divisão que leva à constituição de
entidades autónomas e semelhantes à entidade inicial. Pelo contrário,
diferenciação e hierarquização são processos de divisão caracterizados por
perca de autonomia das novas entidades e crescimento das interdependências
entre elas. Essas interdependências são de dois tipos. Quando há diferenciação,
num sentido mais estrito, as partes tornam- se interdependentes porque se
tornam especializadas, seja em termos funcionais (especialização de domínios),
seja em termos estruturais (especialização de mecanismos). No caso da
hierarquização, as interdependências entre as partes baseiam- se na separação
entre controlo e execução, o que significa que a hierarquização é um caso
especial de diferenciação, por especialização do controlo. Vejamos melhor cada
um destes processos que, distintos em termos analíticos, apresentam-se, na
realidade social e histórica, combinados em graus e modalidades variáveis.
Existe segmentação quando, por exemplo, o crescimento das populações se faz por
multiplicação de comunidades autónomas, como terá acontecido no início da
história humana. Na ausência de processos de diferenciação e hierarquização
capazes de acomodarem as pressões do crescimento, a segmentação terá sido o
processo pelo qual foi mantida uma escala de organização social viável. Existe,
ainda, segmentação em episódios de colapso nacional, por exemplo, quando um
mesmo país dá origem a vários países, como aconteceu, a partir de 1991, com a
sucessiva divisão da ex-Jugoslávia na Eslováquia, Croácia, Macedónia, Bósnia,
Sérvia, Montenegro e Kosovo. Cada uma das novas entidades é, como a inicial,
uma sociedade nacional, pelo que, neste caso, segmentação significou
desintegração (da Jugoslávia). Porém, a relação entre segmentação e integração
nem sempre é negativa. O exemplo do federalismo como modo de organização
política ilustra bem quer as possibilidades de compatibilização entre
segmentação e integração quer as suas tensões. Quando combinada com alguma
diferenciação e hierarquização entre governo central e estados federados, as
federações têm sido viáveis em países como os EUA, a Alemanha ou o Brasil.
Quando nessa combinação a segmentação se sobrepõe à diferenciação e à
hierarquização, como tem acontecido na União Europeia, as tensões
desintegradoras tendem a ser endémicas.
O desenvolvimento da modernidade implica aquelas combinações e tensões. A
modernidade caracteriza-se, antes de mais, pela generalização, do topo para a
base, de processos de diferenciação funcional e estrutural antes localizados
apenas no topo das hierarquias sociais (Mouzelis, 2008: 148-155). A
diferenciação funcional concretiza-se na especialização de diferentes domínios
institucionais, como, entre outros, a economia, a política, a lei, a religião e
a família. Esta diferenciação traduz-se na emergência de normas, organizações e
papéis específicos em cada um dos domínios institucionais. Como cada sociedade
concreta é composta por instituições económicas, políticas, jurídicas,
religiosas e familiares que dependem umas das outras, as partes assim
constituídas não têm a autonomia das partes que referimos a propósito da
segmentação.
A autonomia das partes funcionalmente diferenciadas é a autonomia da lógica da
sua organização, não de conjuntos de pessoas. De facto, enquanto a segmentação
opera através da separação de conjuntos de relações entre pessoas, a
diferenciação opera através da especialização das propriedades dessas relações,
independentemente dessa especialização poder ser também, pelo menos em parte,
separação entre relações e conjuntos de relações entre pessoas. Exemplificando,
a desintegração da Jugoslávia significou a separação, entre outros, de sérvios
e croatas. A separação entre as instituições económicas e familiares não é a
separação entre conjuntos de pessoas, como naquele caso, mas entre conjuntos de
papéis desempenhados pelas mesmas pessoas, profissionais no trabalho e
familiares em casa. A maior compatibilidade entre diferenciação e integração
resulta, pois, das interdependências entre domínios e papéis, bem como da não
sobreposição entre papéis e pessoas. Voltaremos a este ponto.
A diferenciação estrutural, por sua vez, concretiza-se na especialização de
três mecanismos relacionais básicos que têm sustentado o alongamento espácio-
temporal das relações sociais: a interação, a organização e a
institucionalização. A sua diferenciação opera por sucessivas
despersonalizações das relações sociais, quando passamos do primeiro para o
segundo e deste para o terceiro. Um processo de interação é sempre constituído
por relações entre pessoas. Um processo organizacional é constituído por
relações coordenadas entre atividades, com um objetivo, independentemente das
pessoas que realizam essas atividades. Um processo de institucionalização é
constituído por relações entre as propriedades gerais e abstratas das relações
entre pessoas, organizações e atividades num domínio específico definido por um
meio simbólico e universal de equivalência relacional (como o dinheiro, na
economia, ou a autoridade, na política).
Estas diferenças devem ser conceptualizadas como diferenciação porque resultam
da especialização entre relações sociais mais personalizadas e relações sociais
mais despersonalizadas, não da substituição das primeiras pelas segundas. Nas
sociedades modernas, a evidência dessa especialização exprime-se no discurso
comum em expressões como trabalho é trabalho, conhaque é conhaque, ou
amigos, amigos, negócios à parte. No discurso académico exprime-se, por
exemplo, na dicotomia parsoniana afetividade versusneutralidade afetiva. Ou
seja, não havendo organização sem interação, um processo organizacional opera
por especialização da interação, estabelecendo regras de entrada, saída e
desempenho das interações que distinguem as interações organizacionais de
outras interações, por exemplo, de sociabilidade. O que significa que as
exigências comportamentais de uma organização e as exigências comportamentais
dos seus membros podem variar de modo independente (Luhmann, 1982: 75).
Do mesmo modo, não existindo instituições sem interação e organização, um
processo de institucionalização opera por especialização de um domínio
interativo e organizacional, distinguindo, por exemplo, entre uma empresa e um
serviço público. Ou seja, a diferenciação entre a economia e a política, no
plano institucional, só é possível porque existe diferenciação estrutural entre
instituição, organização e interação. Como as tensões entre papéis
profissionais e familiares não são apenas tensões entre domínios
institucionais, mas também entre níveis de diferenciação estrutural. Duas
notas mais sobre os processos de diferenciação estrutural. Primeira, para
sublinhar, uma vez mais, que a diferenciação de mecanismos não distingue
categorias de fenómenos isolados uns dos outros, mas níveis interdependentes de
funcionamento das sociedades. Por exemplo, o funcionamento das organizações
assenta em interações, por um lado, e é institucionalmente regulado, por outro.
Ou seja, partes estruturalmente diferenciadas são combinadas verticalmente, por
encastramento.
Segunda nota, a diferenciação de mecanismos não é apenas analítica, mas
constitutiva da diferenciação entre os níveis micro, meso e macro da ordem
social. Estes níveis correspondem a escalas sucessivamente mais amplas da ordem
social por envolverem um número crescente de pessoas e relações num espaço mais
vasto e por um tempo mais longo, isto é, correspondem a um maior alongamento
espácio-temporal das relações sociais, para usar a terminologia de Giddens
(1984). Aquelas escalas não são secções de um continuummicro-macro mas estratos
ordenados e encastrados, pois distinguem-se entre si pela operação de
mecanismos específicos que tornam possível os sucessivos ganhos de escala.
A emergência de escalas mais amplas requer a estabilização das regras
impessoais que as constituem e a efetividade da sua aplicação. A hierarquização
é o processo que tem permitido essa estabilização e efetividade. Não haveria
diferenciação estrutural e funcional sem hierarquização, isto é, sem a
separação entre controlo e execução ao nível organizacional.
Convirá sublinhar que o reconhecimento da existência de relações funcionais
recíprocas entre diferenciação e hierarquização não permite concluir que a
hierarquização tem origem em requisitos da diferenciação. A hierarquização das
relações sociais tem outras origens, independentes da diferenciação,
nomeadamente a procura, pelos agentes sociais, de controlo da agência de outros
agentes, ou seja, de poder sobre esses outros agentes por coerção ou persuasão.
Nessa procura de controlo, a organização, e portanto os processos de
diferenciação que a concretizam, permite estabilizar e fixar as relações de
poder. Ou seja, neste caso, a diferenciação tem origem em episódios de poder e
nos processos de institucionalização dos seus resultados. A relação entre
diferenciação e hierarquização é, pois, uma relação de imbricação mútua.
A generalização da diferenciação nas sociedades modernas implica essa
imbricação, a qual tem uma dupla face. Por um lado, o aumento da capilaridade
das hierarquias formais, isto é, o crescimento extensivo e intensivo dos
controlos organizacionais da vida social. Por outro, a multiplicação dos eixos
de hierarquização (por diferenciação institucional) e a consequente
complexificação dos sistemas de estratificação.
O primeiro processo resulta da omnipresença das instituições nas sociedades
modernas, e portanto das organizações que as suportam, , consequência direta da
sua crescente diferenciação. A diferenciação entre economia, política,
religião, família, educação, medicina, desporto, arte, processa-se através da
constituição de normas, papéis e organizaçõesespecializadas em cada um destes
domínios. Por exemplo, a diferenciação entre a arte e a economia não é um
processo negativo (a arte não é economia), mas um processo de definição de
normas, papéis, organizações e hierarquias especializadas que constituem o
domínio da arte, para além das normas, papéis, organizações e hierarquias
especializadas que constituem o domínio da economia. Por outras palavras,
quanto mais diferenciada é uma sociedade mais institucionalizada é a atividade
social em geral e, portanto, mais regulada hierarquicamente.
O segundo processo resulta da especificidade das propriedades relacionais que
distinguem os domínios institucionais entre si e, em particular, da
especificidade do meio simbólico e universal de equivalência relacional
organizador de cada domínio. Por exemplo, a diferenciação entre a economia e a
política é também a diferenciação entre princípios de hierarquização e de
estratificação em função da desigual distribuição do dinheiro, no primeiro
caso, e da autoridade política, no segundo.
O conjunto destes processos de diferenciação e hierarquização nas sociedades
modernas gera problemas de integração, tanto sistémicos como sociais. No plano
sistémico por multiplicação das partes diferenciadas, no plano social por
multiplicação dos focos de tensão associados à hierarquização dessas mesmas
partes. Porém, parte desses problemas encontra meios de resolução nos próprios
processos que os originaram.
Em primeiro lugar, no plano sistémico. Por um lado, porque, como já se referiu,
mais diferenciação significa acréscimos de dependência recíproca entre as
partes e, portanto, redução das pressões para a sua autonomização. Por outro
lado, porque a imbricação entre diferenciação e hierarquização permite
incrementos na coordenação das partes diferenciadas, internamente e entre elas.
Dependência recíproca e coordenação são mecanismos fundamentais de integração
das partes.
Em segundo lugar, no plano social. A multiplicação dos focos de tensão,
potencialmente geradores de conflitos, tem duas contratendências associadas.
Por um lado, a diferenciação institucional a que está associada a maior
dispersão desses focos não recorta conjuntos segmentados de pessoas, mas
domínios especializados de atividades, os quais envolvem pessoas no desempenho
de papéis especializados, ou seja, pessoas enquanto atores sociais, só
parcialmente afetados pelas hierarquias de cada domínio diferenciado. Por outro
lado, a diferenciação estrutural tende a separar os lugares de autoridade dos
agentes que os ocupam, isto é, a transferir autoridade dos agentes para os
lugares e papéis. Uma tal transferência tende a facilitar a legitimação da
hierarquia e, portanto, a reduzir as tensões interindividuais potencialmente
indutoras de conflito.
Em geral, a separação entre pessoas e papéis é uma das mais importantes
consequências dos processos de diferenciação, do ponto de vista da resolução
dos problemas de integração suscitados por esses mesmos processos. A separação
entre pessoas e papéis concretiza-se de dois modos. No plano funcional, a
diferenciação institucional das sociedades modernas impede a sobreposição entre
um papel e uma pessoa, pois toda a pessoa tem que desempenhar vários papéis. No
plano estrutural, muitos desses papéis, nomeadamente quando parte de um
contexto organizacional, são despersonalizados, isto é, definidos antes do seu
desempenho concreto por um agente concreto: da mesma maneira que nascemos com
uma posição nos sistemas de estratificação antes de começarmos a agir, acedemos
também a papéis já desenhados antes de começarmos a desempenhá-los (e,
provavelmente, a personalizá-los parcialmente). Multiplicação e
despersonalização de papéis são processos que possibilitam a redução do
envolvimento emocional de cada pessoa em cada papel e, portanto, a redução do
potencial de disrupção social associada ao seu desempenho.
Em síntese, o crescimento dos sistemas sociais tem-se feito por multiplicação
das suas partes e posterior recombinação das mesmas em novos moldes, mais
complexos. Aquela multiplicação das partes opera por segmentação, diferenciação
e hierarquização, tipos básicos de divisão social com propriedades diferentes:
a) a segmentação é uma divisão em entidades autónomas e semelhantes à
entidade inicial; b1) a diferenciação funcional é uma divisão em
domínios sociais especializadas, e portanto menos autónomos, no plano
institucional (domínios institucionais); b2) a diferenciação
estrutural é uma divisão em mecanismos especializados, e portanto
menos autónomos, no plano relacional (interação, organização e
institucionalização); c) a hierarquização é uma divisão por separação
entre controlo e execução.
Destacou-se, ainda, a existência de relações de mútua dependência entre os
processos de diferenciação estrutural e de hierarquização, bem como de
propriedades integradoras dos processos de diferenciação, nomeadamente os
acréscimos de interdependência sistémica e de coordenação, bem como a separação
entre pessoas e papéis. Esta separação é, num quadro analítico mais geral,
particularmente importante, por duas ordens de razões.
Em primeiro lugar, porque a separação entre pessoas e papéis é uma das
manifestações, nas sociedades modernas, da distinção entre relações entre
pessoas, por um lado, e relações sistémicas (ou relações entre as propriedades
das relações entre pessoas), por outro. O que significa que aquela distinção é,
simultaneamente, analítica e empírica, pois remete para modos de organização
social historicamente variáveis. Se toda a sociedade inclui relações entre
pessoas e relações sistémicas, a amplitude das segundas tende a ser tanto maior
quanto mais diferenciada for essa sociedade. A modernidade é, pois, um tipo de
sociedade mais sistémica, isto é, com maior escala e grau de sistematicidade,
do que sociedades mais locais e menos diferenciadas.
Em segundo lugar, porque a separação entre pessoas e papéis é um dos mecanismos
que sustenta o processo de individualização e que contribui para a integração
social numa sociedade de indivíduos.
2. Individualização
As sociedades modernas são sociedades de indivíduos porque são compostas por
pessoas autónomas no plano normativo, singulares no plano valorativo e com
autoconsciência da sua autonomia e singularidade no plano cognitivo. Neste
contexto histórico, a função primordial do termo indivíduo' consiste em
expressar a ideia de que todo o ser humano ( ) é ou deve ser uma entidade
autónoma e, ao mesmo tempo, de que cada ser humano é, em certos aspectos,
diferente de todos os outros, e talvez deva sê-lo (Elias, 1987: 130).
Em termos ontológicos, autonomia, singularidade e autoconsciência são
potenciais humanos gerais, isto é, características que todas as pessoas têm
capacidade para manifestar de modo variável. Porém, as condições normativas e
valorativas de expressão desses potenciais não são propriedades humanas mas
relacionais, isto é, sociais. Historicamente, a prevalência de sistemas de
normas e valores que autorizam e promovem a definição das pessoas em geral, e
não apenas das que integram uma minoria hierárquica, como seres autónomos,
singulares e autoconscientes, numa palavra, como indivíduos, é uma
característica das sociedades modernas. Individualização é, portanto, o
processo social moderno de emergência e institucionalização dos sistemas de
normas e valores que autorizam e promovem a autonomia, singularidade e
autoconsciência dos seres humanos em geral, bem como as condições da sua
concretização relacional.
A definição normativa da categoria de indivíduo foi um processo longo de
mudança que envolveu, num primeiro momento, a progressiva eliminação dos
múltiplos tipos de laços de dependência pessoal e de vinculação comunitária
localista. Num segundo momento, a mudança passou pela progressiva valorização
da razão em relação ao costume, ou seja, pela afirmação da ideia de que são
possíveis e desejáveis escolhas individuais responsáveis sobre os destinos
pessoais, de que somos, ou devemos ser, os autores dos nossos atos ou, pelo
menos, de muitos dos nossos atos. A institucionalização desta ideia, enquanto
norma, concretizou-se no desenvolvimento dos direitos civis e políticos em
torno do valor da liberdade.
Note-se que, naquele segundo plano, a mudança foi normativa as pessoas podem
e devem fazer escolhas individuais responsáveis sobre os seus destinos , não
necessariamente factual as pessoas fazem escolhas individuais responsáveis
da qual resultam os seus destinos , pelo menos com o mesmo alcance. A
possibilidade de alguém mobilizar recursos para transformar a sua condição de
indivíduo de jureem capacidade para agir como indivíduo de facto é variável,
dependendo, em boa parte, dos padrões e dinâmicas da desigualdade em cada
sociedade (Bauman, 2001: 58). Da eventual impossibilidade total ou parcial
daquela transformação, em especial quando imputável aos efeitos da
desigualdade, podem emergir tensões no plano da integração social. Porém,
convém não o esquecer, essas tensões só existem porque existe individualização
no plano normativo, porque existem indivíduos de jureindependentemente de
existirem restrições à sua efetividade como indivíduos de facto.
A segunda componente do processo de individualização, a singularidade, a ideia
de que cada ser humano é e deve ser, pelo menos em certos aspetos, diferente de
todos os outros, desenvolveu-se com base nos processos de diferenciação e de
autonomização individual. Através da diferenciação, aumentou a variedade de
posições e atividades sociais especializadas e, portanto, a probabilidade de
variedade social. Através da autonomização, aumentou a possibilidade de cada
indivíduo escolher diferentes combinações dessas posições e atividades e,
portanto, a probabilidade de a variedade individual, por combinações
diversificadas de papéis, ser superior à variedade social. A separação entre
pessoas e papéis foi o mecanismo que viabilizou aquela combinação e a
consequente maior variabilidade pessoal do que social.
As consequências da operação destes mecanismos podem começar por ser ilustradas
a contrario. Nem todos os papéis permitem uma separação geral entre as suas
propriedades e os atributos dos agentes que os desempenham. Em rigor, a
separação entre pessoas e papéis é variável. No limite, há papéis que, uma vez
ativados, requerem uma subordinação de quem os desempenha que impossibilita a
escolha de outros papéis. É o caso, por exemplo, da exigência de celibato aos
sacerdotes na igreja católica (ou, até à década de 1860, aos professores da
Universidade de Cambridge): em consequência, fica assim impossibilitada a
combinação entre o papel de sacerdote e boa parte dos papéis familiares,
impossibilidade que não caracteriza o desempenho da maioria dos papéis
ocupacionais.
O enfraquecimento da separação entre pessoas e papéis pode ainda ser ilustrado
pelo mecanismo clássico de discriminação das mulheres. Quando ao papel familiar
de mulher é atribuída primazia sobre a categoria de indivíduo, é fechado ou
limitado o acesso das mulheres a papéis não familiares. Em regra, o
enfraquecimento da separação entre pessoas e papéis caracteriza as várias
práticas de discriminação, tanto quando os marcadores da discriminação são
fenotípicos (sexo ou cor da pele, por exemplo), como quando são etnoculturais.
A essencialização da definição etnocultural pode ser usada, tal como os
marcadores fenotípicos, para fechar o acesso de categorias sociais de pessoas a
conjuntos específicos de papéis. Seja qual for o modo como aquele fechamento é
realizado, o resultado é sempre uma redução da amplitude da individualização e,
com frequência, um reforço das tendências para a comunitarização.
A oposição entre individualização e comunitarização constitui outro modo de
ilustrar os efeitos da separação ou sobreposição entre pessoas e papéis.
Comunitarização é todo o processo de constrangimento das relações entre papéis
em função da atribuição de primazia a um papel específico ao qual se faz
corresponder uma categoria de pessoas. Uma comunidade é, portanto, um conjunto
de pessoas, em regra de âmbito local, delimitado por um papel definido como
primordial porque distingue uma categoria de pessoas entre as quais existem
relações de interdependência mais fortes, isto é, mais frequentes, intensas e
personalizadas do que entre cada uma dessas pessoas e outras exteriores à
comunidade. Neste sentido, uma comunidade é sempre um sistema social com um
baixo grau de diferenciação, tanto funcional como estrutural. Por outras
palavras, enquanto nos processos de individualização o sistema de relações
pessoais é aberto por autorização de um elevado número de combinações de
papéis, nos processos de comunitarização o sistema de relações tende para o
fechamento por constrangimento da variedade possível da combinação de papéis.
Ora, é a variedade das combinações de papéis que concretiza a ideia de que
cada ser humano é e deve ser, pelo menos em certos aspectos, diferente de
todos os outros, isto é, que concretiza a possibilidade da singularidade
individual. Comunitarização e individualização tendem por isso a opor-se, só
sendo compatibilizáveis através da diferenciação estrutural dos seus níveis de
operação.
Se comunidade e indivíduo (embora não comunitarização e individualização) são
termos que remetem para realidades antagónicas, o mesmo não é verdade no que
respeita aos termos indivíduo e sociedade. Existem indivíduos porque existem
ordens sociais (sociedades) que favorecem a prática e a valorização da
autonomia e da singularidade, não porque existe menos sociedade (o que quer
que a expressão queira dizer). E existem sociedades de indivíduos porque a
prática individual generalizada da autonomia e a valorização coletiva da
singularidade sustentam a reprodução continuada daquelas ordens sociais.
Na sequência destas observações convém desfazer dois equívocos frequentes nos
debates sobre a individualização. São eles, o equívoco da erosão dos laços
coletivos nos processos de individualização e o equívoco da rarefação da
consciência coletiva nas sociedades de indivíduos.
A razão por que é errado confundir individualização com erosão dos laços
coletivos está bem estabelecida no teorema de Simmel sobre a interseção dos
círculos sociais de pertença. Segundo o teorema,
i) quando aumenta a diferenciação, aumenta o número possível de
pertenças coletivas de cada pessoa; ii) quando aumenta a liberdade de
cada pessoa para escolher as suas pertenças coletivas, aumenta a
probabilidade de essas pertenças se combinarem de modo variável de
indivíduo para indivíduo; iii)quando aumentam quer o número possível
de pertenças de cada pessoa quer a liberdade da sua combinação, a
relação entre círculos de pertença tende a ser de interseção, não de
sobreposição; iv) quando o número de pertenças de cada pessoa aumenta
e a relação entre círculos de pertença tende a ser de interseção,
aumenta a probabilidade de, para cada indivíduo, essa interseção ser
singular; v) quando aumenta a probabilidade de singularidade das
combinações de pertenças de cada pessoa, aumenta a probabilidade de
cada pessoa ser, pelo menos em certos aspetos, diferente de todas as
outras.
Em termos simmelianos, um indivíduo pode ser definido como uma interseção
singular de pertenças: quanto maior é o número de círculos a que uma pessoa
pertence, mais improvável é que outras pessoas apresentem a mesma combinação de
afiliações, que esses círculos tenham o mesmo tipo de intersecção' (numa
segunda pessoa) (Simmel, 1908: 140). Uma das componentes do processo de
individualização é, pois, a passagem de um sistema caracterizado por pertenças
sociais justapostas, concêntricas e em número reduzido, para um sistema em que
são possíveis as mais variadas interseções de pertença, em número
tendencialmente crescente. Ou seja, individualização é um processo
caracterizado não pela erosão das pertenças coletivas, mas pelo desenvolvimento
de novos tipos de pertenças coletivas, não pela ausência de pertenças mas pelo
modo de combinação dessas pertenças, a saber, a sua interseção singular em
lugar da sua justaposição comunitarista.
Passemos, agora, à discussão sobre o equívoco da rarefação da consciência
coletiva nas sociedades de indivíduos. O argumento clássico é o seguinte:
quando as pessoas são mais semelhantes entre si e menos autónomas, é mais
provável que partilhem as mesmas conceções cognitivas e morais sobre o mundo;
quando se tornam mais diferentes entre si e mais autónomas, é menos provável
que partilhem essas mesmas conceções. Resumindo, à semelhança de situações
tenderia a corresponder mais consciência coletiva, à heterogeneidade de
situações menos consciência coletiva. Existem dois erros neste raciocínio.
O primeiro erro deriva do pressuposto falacioso segundo o qual entre pessoas
diferentes é mais improvável a existência de conceções comuns. Falacioso porque
presume que essas conceções são necessariamente relativas apenas, ou sobretudo,
às situações concretas vividas por cada um e essas, de facto, tendem a ser
diferentes. Porém, os intelectuais não são as únicas pessoas capazes de
pensamento abstrato. A capacidade de aceder a conceções mais abstratas e
descontextualizadas é uma capacidade geral dos seres humanos (ainda que
desigual e variavelmente desenvolvida). Numa perspetiva histórica, os processos
de diferenciação, e portanto de crescimento da heterogeneidade social, foram,
quando bem-sucedidos, acompanhados por uma crescente abstratização, e portanto
generalização, dos sistemas simbólicos, seja no plano dos valores, seja no
plano normativo. Nas sociedades modernas, aquela abstratização/generalização
foi institucionalizada, em especial através da secularização e da construção de
sistemas legais autónomos ancorados no princípio do universalismo da norma.
Pode argumentar-se que um sistema simbólico suficientemente abstrato para dizer
algo a muitas pessoas diferentes entre si será tão geral que dirá pouco a cada
uma dessas pessoas. E, portanto, que a consciência coletiva suportada por um
tal sistema simbólico será rarefeita e pouco efetiva nos seus efeitos. Existem,
porém, três contra- argumentos importantes que sugerem conclusões diferentes.
Em primeiro lugar, convirá salientar que a maior abstração e generalidade dos
sistemas simbólicos permite o desenvolvimento de modalidades de consciência
coletiva espacialmente mais extensas e temporalmente mais duradoiras, isto é,
de âmbito mais macro. Mesmo que, eventualmente, menos efetivos no plano local,
sistemas simbólicos mais abstratos e gerais são mais efetivos no plano macro
porque acomodam acréscimos de heterogeneidade em geral, não apenas
interindividuais. Ou seja, são compatíveis com mais diferenças entre
indivíduos, entre locais e entre momentos em sequências de mudanças. São, por
isso, mais efetivos em extensividade do que sistemas simbólicos menos abstratos
e gerais, ampliando, por essa via, a escala da consciência coletiva que
sustentam, assim contribuindo para viabilizar sistemas sociais também mais
amplos.
Em segundo lugar, a efetividade dos sistemas simbólicos não depende apenas do
maior grau de especificação dos seus conteúdos semânticos, por relação com a
situação, mas também do tipo de adesão que esses conteúdos suscitam. Como
referido por vários autores, o processo modernizador de abstratização e
generalização dos sistemas simbólicos localizou-se antes de mais no plano dos
valores, categorias simbólicas que podemos definir como noções de forte carga
emocional sobre o que é desejável (Joas, 2005: 4). Sistemas simbólicos
ancorados em valores gerais, apesar da sua abstração, ganham efetividade pela
adesão emocional que suscitam. O mesmo mecanismo é, aliás, visível num outro
tipo particular de sistemas simbólicos modernos, os nacionalismos, os quais,
apesar da sua maior generalidade, quando comparados com as etnicidades locais,
suportaram alguns dos mais intensos processos de mobilização social e política
historicamente conhecidos. E isto porque os mitos, valores e memórias nacionais
são potentes geradores de emoções que, sustentando processos de autoidolatria
coletiva, manifestam, por isso mesmo, grande efetividade social mesmo em meios
sociais de elevada heterogeneidade.
Por fim, não se devem confundir os processos de abstratização e generalização
com a substituição de sistemas simbólicos mais específicos por sistemas
simbólicos mais abstratos e gerais. Estes últimos coexistem com sistemas mais
específicos, não os substituem. Claro que não coexistem, sobretudo, com os
sistemas simbólicos mais específicos que os antecederam, mas com novos sistemas
simbólicos que, embora específicos, tendem a ser compatíveis com os mais
abstratos e gerais.
Esta última observação leva-nos à discussão do segundo erro presente no
raciocínio segundo o qual à semelhança de situações tenderia a corresponder
mais consciência coletiva, à heterogeneidade de situações menos consciência
coletiva. O raciocínio está errado porque ignora que os processos de
diferenciação também operam no plano simbólico, o que permite compatibilizar
diferentes níveis de abstratização e generalidade. Os subsistemas simbólicos
mais abstratos e mais gerais tendem a funcionar como reguladores de sistemas
mais específicos. No plano normativo, por exemplo, os subsistemas mais gerais
tendem a desenvolver-se como metarregras que moldam as possibilidades de
especificação de subsistemas normativos mais concretos e parcelares, bem como
as condições da sua compatibilidade (ainda que de forma sempre incompleta).
Assim, no plano jurídico, o subsistema das metarregras constitucionais
condiciona as possibilidades de especificação dos sistemas de regras mais
concretos e especializados como o direito económico, o direito político ou o
direito da família, bem como as condições da sua compatibilização mútua. Por
outras palavras, eventuais défices de consciência coletiva em sociedades mais
heterogéneas terão mais provavelmente origem em défices de especificação dos
subsistemas mais gerais e abstratos do que na não efetividade desses mesmos
sistemas por serem abstratos.
Aquela efetividade tende a ser diferenciada, e portanto especializada. Os
subsistemas simbólicos mais abstratos e gerais, embora menos efetivos em
intensividade enquanto suportes diretos da consciência coletiva em geral, são,
no entanto, de elevada efetividade enquanto suportes da compatibilização entre
os múltiplos subsistemas simbólicos mais concretos e especializados. Significa
isto que os subsistemas simbólicos mais abstratos e gerais são sobretudo
efetivos no plano das relações entre relações (integração sistémica), enquanto
os subsistemas simbólicos mais concretos e especializados, enquanto
especificações dos primeiros, são sobretudo efetivos no plano das relações
entre pessoas (integração social).
Note-se que o processo de especificação simbólica é possível e tem efeitos
integradores numa sociedade de indivíduos porque se concretiza por domínios
institucionais, não por categorias de pessoas. Esta dinâmica evidencia, uma vez
mais, a relação entre os processos de individualização e os de separação entre
pessoas e papéis. No que se refere à especificação dos sistemas simbólicos, a
relação é tripla.
Em primeiro lugar, a separação permite, e é reforçada por, uma crescente
abstratização na definição social de indivíduo, enquanto toda a pessoa humana
independentemente das suas características concretas (como o sexo, a cor da
pele, a crença religiosa ou a filiação política). A categoria de indivíduo,
como definida nos modernos sistemas normativos, exemplifica bem o tipo de
adequação que existe entre heterogeneidade social no plano da variação
interindividual e a abstratização integradora no plano simbólico.
Em segundo lugar, sendo o indivíduo definido em termos abstratos, a
especificação dos sistemas simbólicos e normativos tem como objeto não pessoas
concretas mas atividades concretas, ou melhor, papéis sociais,
independentemente de quem os desempenha. É porque a definição de indivíduo é
despersonalizada por abstratização que é possível separar pessoas de papéis. E
é porque essa separação se faz que é possível despersonalizar os papéis e
especificá-los como concretizações de princípios gerais abstratos num domínio
de ação específico.
Finalmente, categorias como as de indivíduo abstrato e papéis despersonalizados
facilitam a realização de combinações voluntárias e variáveis, por pessoas
concretas, de diferentes papéis específicos porque (i) o estatuto de indivíduo
não está associado a qualquer papel ou conjunto específico de papéis e (ii) a
especificação de um papel é a especificação de uma categoria de atividades, não
de uma categoria de pessoas.
Em resumo, os processos de abstratização simbólica que tendem a acompanhar os
acréscimos de heterogeneidade social decorrentes da individualização não
implicam redução da consciência coletiva. A combinação entre abstratização e
especificação, em especial no plano normativo, induz e permite, isso sim, a
coexistência de diferentes estratos de consciência coletiva. Por um lado, um
estrato mais geral e estável organizado em torno de um número necessariamente
reduzido de categorias muito gerais porque muito abstratas. Por outro, um
conjunto de estratos mais concretos e portanto mais particulares e contextuais,
organizados em torno dos atributos dos papéis desempenhados por pessoas
concretas que, quando se movem entre esses papéis, procuram no estrato mais
geral e estável os critérios da sua compatibilização.
Passemos, finalmente, à terceira componente da definição do processo histórico
de individualização: a exigência social de autoconsciência, pelos indivíduos,
da sua autonomia e singularidade. É fácil demonstrar que a exigência de
autoconsciência da autonomia pessoal constitui o outro lado da exigência de
responsabilização de indivíduos autónomos pelos efeitos dos seus atos sobre
terceiros. Neste plano, não há pois qualquer contradição lógica ou prática
entre os incrementos da autoconsciência individual e as dinâmicas de
integração. Pelo contrário, quer por via do autocontrolo moral, quer da
autocontenção por antecipação racional de eventuais sanções, as relações entre
autoconsciência da autonomia pessoal e responsabilidade individual tendem a ter
efeitos integradores.
Já são menos evidentes, embora não menos efetivas, as relações entre os
incrementos da autoconsciência individual da singularidade e as dinâmicas de
integração. Nas sociedades modernas, espera-se que os indivíduos tenham
consciência de que são, e devem ser, diferentes, pelo menos em parte, de todos
os outros. Porém, a constituição dessa diferença obriga a uma comparação
sistemática da pessoa com os outros, bem como à atribuição de singularidade ao
próprio e a esses outros. Isto é, Eu afirmo-me como diferente porque
comparando-me com outros comigo relacionados atribuo significado quer aos
atributos que me caracterizam como diferente desses outros quer aos atributos
que caracterizam esses outros como diferentes de mim. Por outras palavras, a
autoconsciência da singularidade pessoal é um processo interativo de
reconhecimento mútuo. E, desta forma, com efeitos integradores no plano
simbólico e comunicacional.
Estes processos integram as dinâmicas de constituição e desenvolvimento do
self, em geral. Nas sociedades modernas são, porém, mais generalizados e
radicalizados do que no passado, dado que os incrementos de variabilidade
social e individual alargam o campo das comparações possíveis e, portanto, a
maior probabilidade de efetiva singularização.
Em síntese, por individualização deve entender-se o processo social que, nas
sociedades modernas, conduziu à emergência e institucionalização:
a) de sistemas de normas e valores que promovem a autonomia e
singularidade das pessoas em geral, não apenas dos membros de uma
elite; b) da exigência social de autoconsciência, pelos indivíduos,
da sua autonomia e singularidade, através de processos interativos de
reconhecimento mútuo; c) de sistemas relacionais congruentes com a
maior e mais generalizada autonomia, singularidade e autoconsciência
individuais.
A individualização não constitui uma tendência desintegradora, mas implica
novos tipos e mecanismos de integração, tanto no plano relacional dos laços
coletivos como no plano simbólico da consciência coletiva. Mais concretamente:
d) no plano relacional, implica o desenvolvimento de sistemas de
interseção dos círculos sociais de pertença individual em função de
escolhas pessoais tendencialmente livres; e) no plano simbólico,
implica o desenvolvimento de sistemas de valores e normas mais
abstratos e gerais, bem como a sua especificação em subsistemas de
valores e normas mais concretos porque institucionalmente
especializados.
A individualização não implica pois, nem lógica nem empiricamente, o isolamento
pessoal, antes novos modos de organização das pertenças grupais e dos sistemas
simbólicos partilhados. Quando o desenvolvimento desses novos modos de
organização é bem-sucedido, tanto no plano relacional como no simbólico, é
possível a integração social e sistémica em sociedades mais diferenciadas e
individualizadas. Aos modos de integração assim estabelecidos estão, no
entanto, associadas tensões específicas, pelo que a sua reprodução constitui um
processo aberto, isto é, sem solução predefinida.
3. Integração social
Esclarecer o problema da integração é explicar como se combinam, de modo
ordenado, as partes constitutivas de uma sociedade e, portanto, como se
organizam as relações sociais que concretizam essas combinações, sejam as
relações entre atos de pessoas singulares ou coletivas, sejam as relações de
interdependência sistémica entre instituições e hierarquias, ou as suas
componentes. Usando a terminologia proposta por Lockwwod (1964), o problema da
integração pode ser decomposto no da integração social (das pessoas) e no da
integração sistémica (das partes).
O contrário de integração é, simplesmente, desintegração, ou seja, a separação
ou tendência para a separação entre as partes que compõem um qualquer todo
social. Integração e desintegração que raramente variam em termos holistas e
dicotómicos (integração total versusdesintegração total). A situação mais
frequente é que, numa mesma unidade social, coexistam ou se combinem diferentes
graus de integração nos vários planos relacionais.
Quando esta definição do conceito de integração e dos seus contrários está
menos presente, é frequente a emergência de equívocos, em particular a ideia de
que integração e consenso seriam a mesma coisa, bem como de que o contrário de
integração seria o conflito. Porém, nem o consenso é o único ou o mais corrente
fator de integração, nem o conflito é, necessariamente, causador de
desintegração. O consenso, enquanto acordo generalizado, é um resultado difícil
e moroso de construir pelas partes envolvidas, pelo que a vida social seria
improvável se dele dependesse, sobretudo em sociedades de maior escala,
compostas por indivíduos autónomos e singulares. Em regra, a integração social
requer, quando muito, algum consenso sobre valores fundamentais. Até porque a
ausência de consenso não conduz, necessariamente, ao conflito, apenas à
persistência de desacordos e divergências. A transformação desses desacordos e
divergências em conflito requer condições adicionais tanto no plano
organizacional como ideacional, bem como o entendimento de que os custos do
conflito superam os custos da ausência de consenso ou são por estes
justificados. Neste quadro, mais importante do que o consenso substantivo sobre
uma qualquer questão social, enquanto fator de integração, é a existência de
consenso sobre os procedimentos de regulação dos desacordos e divergências
sobre essa mesma questão.
No dia-a-dia, a integração social requer alguma consciência coletiva, isto é,
alguma partilha de orientações (normas, valores e outras ideias). Porém, essa
partilha não necessita de ser absoluta nem generalizada, isto é, não requer
consenso enquanto acordo generalizado. Com frequência, são as articulações
variáveis entre consenso e desacordo, ou mesmo conflito, que podem ser mais ou
menos integradoras ou desintegradoras, não o consenso e o desacordo, ou até o
conflito, em si mesmos. Alguns exemplos ajudarão a perceber o argumento. É
possível a existência de dinâmicas de integração social nos seguintes tipos de
articulação entre consenso e desacordo ou conflito:
consenso sobre fins, mas divergência ou conflito de interesses
sobre o modo de prosseguir esses fins; consenso sobre a norma
geral, mas desacordo ou conflito sobre a especificação da norma num
domínio específico; consenso sobre a norma específica, mas
divergência ou conflito sobre a interpretação dos seus efeitos.
Em todos estes exemplos, a possibilidade de compatibilizar consenso com
desacordo, ou mesmo com conflito, sem efeitos necessariamente desintegradores,
resulta da partilha de uma orientação de ordem mais geral, porque mais
abstrata, que não é colocada em causa por todos os desacordos, divergências e
conflitos em planos mais concretos. Ou seja, os processos de abstratização dos
sistemas simbólicos referidos na secção anterior permitem localizar as
exigências de consenso, viabilizando, assim, processos de integração social
alargados compatíveis com a persistência de áreas e situações de desacordo,
divergência e conflito.
A relação entre consenso e integração é ainda mais complexa, sendo possível
argumentar que os efeitos integradores de qualquer processo social, e portanto
também do consenso, não são lineares, formando antes uma curva em U
invertido. Esta ideia consta da teoria implícita sobre a integração social
apresentada por Durkheim no seu estudo sobre O Suicídio(1897). Na teoria, são
especificados dois mecanismos básicos de integração: a pertença a grupos e a
consciência coletiva. Porém, de acordo com a teoria, os efeitos desses
mecanismos apenas seriam integradores quando tivessem uma intensidade média.
Dito de outro modo, a pertença a grupos e a consciência coletiva teriam efeitos
desintegradores quer quando fracas quer quando muito intensas: no primeiro
caso, por défice de enquadramento do indivíduo; no segundo, por excesso de
pressão coletiva sobre o indivíduo.
De facto, pelo menos nas sociedades modernas, enquanto sociedades de
indivíduos, a integração social seria impossível se requeresse um consenso
interindividual em todos os domínios. Enquanto propriedades da
individualização, a autonomia e singularidades individuais opõem-se, lógica e
empiricamente, à similitude de escolhas e atos que um tal requisito de consenso
implicaria. Porém, a integração, isto é, a combinação dos atos e relações entre
indivíduos autónomos e singulares requer um consenso mínimo sobre alguns
valores, normas e outras ideias de elevado grau de generalidade e abstração,
bem como sobre os procedimentos formais de regulação dos desacordos e
divergências resultantes da autonomia e da singularidade. Ou seja, numa
sociedade de indivíduos, a contribuição do consenso para a integração depende
não só da sua intensidade, mas também da sua especificidade.
Se o consenso não é, forçosamente, um requisito geral da integração, também o
conflito não é, necessariamente, causador de desintegração. Como argumentaram
Simmel (1908) e Coser (1956), os conflitos podem ter múltiplas consequências
integradoras. Em primeiro lugar, os conflitos facilitam a formação de grupos e,
por essa via, a constituição de um dos principais mecanismos de integração
social. Em segundo lugar, os conflitos podem reforçar, em cada uma das partes
em oposição, os sentimentos de pertença coletiva dos indivíduos, bem como a
procura e aceitação de mecanismos de cooperação e coordenação interindividual
constitutivos de processos de ação coletiva. Em terceiro lugar, os conflitos
permitem, com frequência, integrar diferentes grupos através de processos de
aliança, combinando, desta forma, não apenas relações entre pessoas como
relações entre relações entre pessoas, neste caso, os conjuntos de relações
interindividuais constitutivos dos grupos aliados. Finalmente, conflitos em
torno de regras, em particular de tipo normativo, podem levar à emergência de
novas regras de aceitação mais generalizada e, portanto, com uma escala de
integração mais ampla do que as preexistentes.
Tanto Simmel como Coser reconheciam, no entanto, que um grau muito elevado de
conflitualidade eliminava estas consequências integradoras. Quando o conflito
visa a eliminação do oponente tem por efeito a destruição em vez da criação de
grupos. Quando o conflito se radicaliza, tende a diminuir a tolerância à
dissensão no interior do grupo e, portanto, a aumentar a pressão coletiva sobre
o indivíduo, com a consequente redução da sua autonomia e singularidade. Nestes
dois casos, revelam-se, uma vez mais, as condições de equilíbrio já
identificadas por Durkheim no funcionamento dos mecanismos de integração.
Finalmente, quando não existem ou são frágeis os mecanismos de
institucionalização dos conflitos, mais difícil é a institucionalização dos
resultados destes e, portanto, mais reduzidos são os seus contributos para o
desenvolvimento de quadros normativos mais consensuais. Ou seja, e como foi já
atrás referido, os efeitos integradores do conflito presumem a existência de
articulações entre consenso e oposição operando a diferentes níveis da
organização social.
Em rigor, consenso e conflito têm uma relação indireta com a integração social.
Os mecanismos através dos quais aqueles processos têm efeitos sobre a
integração são a pertença a grupos e a partilha de um núcleo de normas, valores
e outras ideias (que produz a consciência coletiva de Durkheim, num sentido um
pouco mais restrito). Não são, sequer, os únicos processos com efeitos através
destes mecanismos. A organização das relações interindividuais requer, também,
aprendizagens sociais que, constituindo e alargando o fundo de conhecimentos
comuns dos membros de uma sociedade, suportem a interação social no plano
comunicacional, tornando possível a resolução de dilemas interpretativos e o
interreconhecimento mútuo naquele plano, bem como a fixação dos seus
resultados. Socialização, interpretação e tipificação são alguns dos principais
processos com efeitos integradores nestes domínios.
Por fim, a integração social é facilitada pela parametrização parcial das
relações entre pessoas, seja no plano instrumental, através da constituição de
rotinas relacionais, seja no plano comunicacional, através da constituição de
rituais de interação. Rotinas e rituais contribuem para ordenar as relações
entre pessoas porque facilitam a ordenação das representações que as pessoas
constroem sobre essas relações, dando-lhes a estabilidade de algo conhecido e
familiar. A integração das relações entre as partes é também a integração
mental que os indivíduos fazem das representações dessas relações. Rotinas e
rituais são, ainda, formas económicas de relacionamento social, porque reduzem
a necessidade de cálculo, interpretação e envolvimento emocional em cada
interação, o que tem, por sua vez, dois efeitos integradores. Por um lado, o
aumento do número de interações em que cada indivíduo se pode envolver, isto é,
do número de relações possíveis entre as partes. Por outro, a constituição,
pelos indivíduos, de reservas de tempo, energia motivacional e esforço para a
construção e o exercício da sua autonomia e singularidade, isto é, para
compatibilizar integração ou, mais rigorosamente, pertença coletiva, com
individualização.
Este último ponto remete para o cerne da questão colocada por Durkheim. Como se
viu na secção anterior, a individualização supõe integração, ou melhor, um tipo
particular de integração. Ora, muitos dos processos que promovem a integração,
pelos efeitos que têm quer no plano relacional da pertença a grupos quer no
plano simbólico do conhecimento comum (consciência coletiva), podem também
conduzir a reduções da autonomia e singularidade que suportam a integração. A
questão pode, pois, ser subdividida em duas:
como compatibilizar pertença grupal com autonomia individual?
como compatibilizar conhecimento comum (consciência coletiva) com
singularidade individual?
Em termos gerais, a resposta a estas duas perguntas já foi dada na secção
anterior. Compatibilizar pertença grupal com autonomia individual requer o
desenvolvimento de sistemas de interseção dos círculos sociais de pertença
individual. Compatibilizar conhecimento comum (consciência coletiva) com
singularidade individual requer o desenvolvimento de sistemas de valores e
normas mais abstratos e gerais, bem como a sua especificação por domínios de
especialização institucional.
A avaliação dos processos que têm vindo a ser discutidos, bem como de outros
com impactos sobre as dinâmicas da integração social, deve, pois, ser feita
questionando os efeitos sobre aqueles dois requisitos. Por exemplo, défices de
socialização poderão traduzir-se em défices de conhecimento comum com
consequências quer no plano simbólico, por não identificação do indivíduo com a
coletividade quer no plano relacional, por redução das competências individuais
de interação, com prejuízo para a multiplicação da sua inclusão grupal. A
sobressocialização individual, por seu lado, pode ser vivida como pressão
conformista redutora das expectativas de singularidade e autonomia, com
prejuízo para a integração se induzir, em resposta, tendências para a
desidentificação com a coletividade e o abandono do grupo.
É possível fazer um raciocínio semelhante sobre a relação entre ritualização e
integração. Défices de ritualização dificultam a multiplicação das filiações
grupais por requererem um enorme investimento, em cada encontro, de recursos
finitos como o tempo, o esforço e a energia emocional. Dificultam, também, o
acionamento dos dispositivos simbólicos adequados em cada domínio de atividade
por défice de sinalização do domínio e das suas fronteiras. Em contrapartida, a
sobrerritualização cria barreiras à entrada no plano das filiações grupais e
reforça as tendências à sobreposição em lugar da interseção dos círculos de
pertença. Envolvendo os rituais a fixação de um significado específico, a
sobrerritualização dificulta ainda o desenvolvimento de símbolos mais abstratos
e gerais.
Resumindo os argumentos e definições desta secção:
a1) por integração entende-se a combinação, de modo ordenado, entre
as partes constitutivas de uma sociedade (nomeadamente, pessoas,
grupos, instituições e hierarquias); a2) o contrário de integração é
desintegração, ou seja, a separação ou tendência para a separação
entre as partes que compõem um qualquer todo social; b1)por
integração social entende-se a constituição dos laços e símbolos de
pertença coletiva nas relações entre pessoas e conjuntos de pessoas;
b2)os principais mecanismos de integração social são a pertença a
grupos, no plano relacional, e o desenvolvimento de conhecimento
comum, no plano simbólico; c1) nas sociedades modernas, o problema da
integração social é o da compatibilização entre pertença coletiva,
por um lado, e autonomia e singularidade individuais, por outro; c2)
nas sociedades modernas, a integração social é mais provável quando a
pertença a grupos se faz por interseção dos círculos sociais de
pertença individual e o desenvolvimento do conhecimento comum por
abstratização simbólica e especificação institucional; d1) a
integração social é um estado de equilíbrio dinâmico entre pressões
opostas presentes no funcionamento de cada mecanismo e processo de
integração; d2) a integração social não requer nem o consenso nem a
ausência do conflito, mas não é compatível com a total ausência de
conhecimento comum nem com todo o tipo e grau de conflitualidade.
4. Integração sistémica
Clarificado o que se entende por integração social e refutados alguns dos
equívocos habitualmente associados ao conceito, examinemos, agora, o domínio da
integração sistémica. Na definição mais simples possível, integração sistémica
é o modo de combinação dos subsistemas sociais constitutivos de um mesmo
sistema social. Em rigor, porém, o problema da integração sistémica é
específico das sociedades mais diferenciadas, isto é, das sociedades em que a
divisão dos subsistemas que a constituem se faz predominantemente por
especialização, estrutural e funcional.
A diferença entre as manifestações do problema da integração nas sociedades
modernas e nos antigos impérios agrários exemplifica as consequências desta
especificidade. Naqueles impérios, a unificação passava pela integração de
unidades sociopolíticas que, em regra, tinham uma grande autonomia interna,
isto é, que se distinguiam entre si por segmentação, não por especialização.
Daqui resultavam duas consequências fundamentais. Em primeiro lugar, o problema
da integração sistémica estava centrado no problema do controlo político
central das subunidades, isto é, na sua dominação externa. Em segundo lugar, o
resultado da integração assim conseguido tinha um fraco grau de
sistematicidade. Na prática, era como se o sistema integrado, o império,
compreendesse como unidades constitutivas os centros de poder das subunidades
sociopolíticas, não as subunidades em si.
Nas sociedades modernas, o problema da integração das partes coloca-se tanto em
termos extensivos como intensivos. Nestas sociedades, as partes e os problemas
da sua integração têm uma dupla origem. Por um lado, o desenvolvimento do nível
sistémico da ordem social, por diferenciação estrutural. Por outro, a
multiplicação, a esse nível, de subsistemas institucionalmente especializados,
por diferenciação funcional. Tanto o desenvolvimento do nível sistémico como a
integração dos subsistemas institucionalmente especializados requerem mais do
que controlo político central. Requerem, antes de mais, desenvolvimentos de
sistematicidades, isto é, de interdependências ordenadas que constituam o nível
sistémico da ordem social e suportem a organização das suas partes (Buckley,
1967: 68-122).
Historicamente, aquelas sistematicidades foram conseguidas, em especial,
através do desenvolvimento e uso crescentemente generalizado de dispositivos
relacionais de descontextualização, isto é, de dispositivos com propriedades
mais abstratas do que as partes que permitem relacionar (e reencontramos, aqui,
a relação entre diferenciação e abstratização já tratada na secção anterior). A
escrita e o dinheiro foram dois dos dispositivos de descontextualização mais
importantes, sobretudo nas sociedades modernas. O seu desenvolvimento e uso
geraram, e geram, efeitos de sistematicidade, e portanto de integração das
partes, por várias razões.
Em primeiro lugar, porque permitem despersonalizar as relações sociais e,
assim, criar relações de interdependência para além das relações de interação,
isto é, criar relações sistémicas por diferenciação estrutural. Quando a
leitura de um texto influencia alguém, essa influência não é uma interação com
o autor do texto. Quando essa influência envolve relações entre o texto
referido e a influência de outros textos lidos anteriormente, essas relações
são lógicas, e eventualmente sistémicas, mas não são de interação. Em resumo, a
escrita permite potenciar as consequências dos atos para além do espaço e do
tempo em que estes ocorrem, bem como a emergência de relações despersonalizadas
entre essas consequências. Dito de outro modo, os principais conteúdos
simbólicos de uma cultura podem, com a escrita, ser corporizados de formas que
são independentes dos contextos concretos de interação (Parsons, 1966:48-9).
O uso do dinheiro tem efeitos do mesmo tipo. O dinheiro é um meio de troca
generalizada, independente do conteúdo do que é trocado e dos atributos de quem
troca. Permite combinar resultados de atos, por exemplo bens, sem qualquer
interação entre os autores desses atos, no caso, os produtores dos referidos
bens. Permite destacar uma propriedade geral de todos os objetos de troca
monetarizada, o preço, e combinar atos e resultados de atos apenas na base
dessa propriedade, abstrata porque independente da utilidade do que é trocado.
Se o valor económico dos objetos é constituído pela sua relação mútua de
troca, então o dinheiro é a expressão autónoma dessa relação. O dinheiro
representa o valor abstracto. A partir da relação económica, isto é, a troca de
objetos, o facto dessa relação é extraído e adquire, em contraste com os
objetos, uma existência conceptual referenciada por um símbolo visível. O
dinheiro é uma realização específica do que é comum aos objetos económicos
(Simmel, 1907: 120). Em resumo, a escrita e o dinheiro permitem estabelecer
relações despersonalizadas de textos com textos ou de bens com bens, isto é,
relações despersonalizadas entre resultados de atos para além das relações de
interação.
Em segundo lugar, escrita e dinheiro são dois dos dispositivos que sustentam a
constituição do nível macro da ordem social porque viabilizam o alongamento das
relações sociais, no espaço, no tempo e entre um maior número de indivíduos e
coletividades. A escrita, porque ao registar o resultado de um ato
comunicacional, permite potenciar as consequências desses atos para além do
espaço e do tempo da sua ocorrência. O registo, podendo ser lido por outros não
diretamente envolvidos no ato comunicacional inicial, prolonga no tempo e no
espaço os seus efeitos comunicacionais. O dinheiro começa por ser também um
registo, com efeitos comunicacionais descontextualizados no plano das trocas.
Através de cadeias de interação, permite ainda alargar o espaço de circulação
de bens e serviços e, assim, criar cadeias de relações entre mais indivíduos
num espaço mais vasto.
Em terceiro lugar, escrita e dinheiro, ligando o passado ao presente, são dois
dos dispositivos que sustentam o que podemos designar por efeitos de estrutura.
Comte identificava esses efeitos como uma das especificidades da ordem social
quando assinalava a influência recíproca dos indivíduos, singularmente
complicada na espécie humana pela influência de cada geração na geração
seguinte (Comte, 1830-42: 52, itálicos acrescentados). Efeitos de estrutura, e
não de interação, porque as interdependências emergentes do uso da escrita e do
dinheiro afetam as possibilidades da ação dos agentes antes mesmo de estes
começarem a agir, enquanto condições diretamente herdadas e transmitidas pelo
passado (Marx, 1852: 13).
O uso da escrita tem, ainda, efeitos de sistematicidade próprios. A escrita
permite fixar enunciados e relações entre enunciados com consistência lógica
superior à que seria possível obter com a combinação das memórias dos agentes
sociais, o que potencia os efeitos de ordenação dos atos por esses enunciados.
Também o uso do dinheiro tem efeitos específicos de sistematicidade, o mais
importante dos quais será o seu potencial para o estabelecimento de
equivalências estruturais. Isto é, o uso do dinheiro, sobretudo em sociedades
com economias de mercado desenvolvidas, permite definir propriedades gerais
comuns a recursos com utilidades diferentes e, portanto, gerar
interdependências entre diferentes domínios institucionais sempre que está
envolvida uma qualquer distribuição de recursos.
Os usos da escrita e do dinheiro, enquanto dispositivos relacionais de
descontextualização, sustentaram pois, e facilitaram, a construção de conjuntos
alargados de relações despersonalizadas no plano simbólico (a escrita) e no
plano da troca (o dinheiro), sobretudo em sociedades em que aqueles usos se
propagaram ao conjunto da população. Nas sociedades modernas, essa propagação
passou, em particular, pela escolarização de massas e pela mercadorização
generalizada da economia.
No plano simbólico, o uso da escrita permitiu e facilitou, em particular, o
desenvolvimento de conjuntos de relações entre normas de crescente complexidade
e com variados graus de abstração, pois permitiu e facilitou a codificação e
registo de atos de regulação prescritiva das atividades humanas. A esses
conjuntos de relações entre normas dá-se, habitualmente, o nome de estruturas
normativas pelos efeitos de ordenação que têm no plano da regulação, prática e
reflexiva, das relações entre pessoas individuais ou coletivas. Note-se que
constituem a estrutura normativa as relações entre normas, não as relações
entre pessoas reguladas por essas normas. Estas últimas são parte do domínio da
integração social. A distinção é analítica e empiricamente fundamental, pois as
relações entre normas envolvem problemas específicos de compatibilidade,
nomeadamente de coerência lógica, distintos dos problemas práticos da
integração social neste plano, como sejam os do conformismo ou da dissensão.
No plano instrumental das trocas, o uso do dinheiro, por seu lado, permitiu e
facilitou, em particular, o desenvolvimento de conjuntos de relações entre
distribuições de recursos, pois permitiu e facilitou o estabelecimento de
equivalências estruturais entre diferentes domínios da atividade humana. Esses
conjuntos de relações entre distribuições de recursos são, geralmente,
designados por estruturas distributivas pelos efeitos de ordenação que têm das
oportunidades sociais. Note-se que, também aqui, e pelas mesmas razões,
constituem a estrutura distributiva as relações entre distribuições de
recursos, não as relações entre pessoas condicionadas por essas distribuições.
As distribuições de recursos envolvem problemas específicos de compatibilidade,
nomeadamente de igualdade, independentemente do modo como igualdade ou
desigualdade são vividas pelas pessoas por elas afetadas, por exemplo,
pacificamente ou conflitualmente.
Os problemas da integração sistémica começam, pois, por se manifestar enquanto
problemas de combinação das partes constitutivas das estruturas sociais. No
exemplo, as partes da estrutura normativa, as normas, ou as partes da estrutura
distributiva, as distribuições de recursos. Prolongam-se, ainda neste plano de
análise, nas relações entre estruturas. No exemplo, o modo como os equilíbrios
(ou desequilíbrios) nas distribuições de recursos são vividos pelas pessoas
depende, em grande medida, do modo como estas são normativamente reguladas (em
especial, em termos de justiça).
Estruturas normativas e distributivas não correspondem a subsistemas sociais
especializados, pois todo o subsistema tem componentes normativas e
distributivas. A especialização funcional cruza-se, pois, com a diferenciação
estrutural. Os problemas de integração sistémica dos resultados da
especialização são os problemas que resultam do caráter problemático da
combinação de subsistemas sociais funcionalmente especializados(e, portanto,
diferentes) de papéis, instituições, lugares e hierarquias. Para essa
integração contribuem dois mecanismos fundamentais. O primeiro é o das
dependências recíprocas que resultam das combinações repetidas das
consequências da ação num ambiente estruturalmente ordenado. A segunda é a das
interdependências reflexivamente induzidas pela combinação coordenada das
relações entre subsistemas, seja através da regulação dessas relações, seja
através da sua administração organizacional num ambiente regulado.
Nas sociedades modernas, estes problemas da integração sistémica manifestam- se
com particular incidência nas relações entre instituições, enquanto domínios
especializados de organização social. São problemáticas, por exemplo, as
compatibilizações entre as lógicas institucionais da igualdade democrática e da
desigualdade do mercado, da produtividade económica e da cooperação familiar,
ou da representatividade eletiva e da tecnocracia. Eventualmente, a
compatibilização entre algumas destas lógicas pode fazer-se por referência a um
plano mais abstrato de regras sociais. Esta solução, porém, tem limites, dado
que há situações de incomensurabilidade sem solução por via da abstratização,
como parece ser o caso, por exemplo, das incompatibilidades, nas sociedades
modernas, entre as lógicas da democracia e da tecnocracia (Burns e Flam, 1987:
348-65).
Em sociedades diferenciadas de grande porte, os problemas da integração
sistémica são endémicos. A diferenciação e o alongamento dos sistemas sociais
traduzem-se em incrementos constantes da variedade sistémica e, por isso, na
contínua emergência de problemas de integração. Para tal, contribui ainda o
facto de a resolução dos problemas de integração sistémica não decorrer dos
requisitos funcionais de reprodução da sociedade em que se manifestam. Não é
por a eventual não resolução de um problema específico de integração sistémica
numa determinada sociedade poder conduzir à desintegração dessa sociedade, e
portanto à sua não reprodução, que esse problema será resolvido.
Embora possa decorrer de reajustamentos ao nível sistémico por agregação de
microrreajustamentos não intencionais nos processos de interação, em regra, a
resolução dos problemas de integração sistémica passa, sobretudo nas sociedades
modernas, pela interpretação destes como dilemas por agentes com capacidade
para agir estrategicamente sobre eles. Ou seja, por agentes com as
competências, a informação e os recursos necessários à identificação e
resolução daqueles problemas. Com frequência, essa resolução implica confronto
de interesses, passando, então, por processos de negociação e conflito visando
a manutenção, adaptação ou transformação das relações sistémicas em causa. Em
qualquer caso, seja por erro de diagnóstico ou de desempenho, seja pela
impossibilidade de prever todas as consequência da ação, seja pelos
compromissos negociais efetuados, as soluções encontradas não só serão sempre
temporárias, como poderão contribuir para a emergência de novos problemas de
integração sistémica, em especial sempre que se traduzirem em incrementos da
variedade sistémica.
Esta articulação entre integração sistémica e ação estratégica pode ter vários
resultados: a persistência do problema e portanto das tensões que lhe estão
associadas, a sua resolução por reajustamento sistémico, a transformação da
ordem social ou, no limite, o colapso do sistema social em causa. Na história
das sociedades humanas encontramos exemplos de todas estas possibilidades. As
sociedades modernas têm, no entanto, características particulares. Em primeiro
lugar, são sociedades cuja dinâmica incorporou a mudança como mecanismo
corrente de reprodução, o que significa mais possibilidades de reajustamento
sistémico sem transformação global da ordem social. Em segundo lugar, são
sociedades mais reflexivamente organizadas do que as que a antecederam, e onde
portanto existem mais oportunidades e meios de identificação dos problemas de
integração e das suas consequências.
Resumindo os contributos desta secção:
a1) por integração sistémica entende-se a combinação das partes de um
mesmo sistema social através do desenvolvimento de sistematicidade,
isto é, de interdependências entre essas partes; a2) a multiplicação
das partes dos sistemas sociais faz-se quer no plano estrutural quer
no plano funcional; b1) os principais mecanismos de integração
sistémica no plano estrutural são os dispositivos relacionais de
descontextualização (como a escrita e o dinheiro, entre outros), cujo
uso permite criar e ampliar as relações de interdependência
estrutural para além das relações de interação; b2) os principais
mecanismos de integração sistémica no plano da especialização
funcional são a dependência recíproca entre resultados da ação num
ambiente estruturalmente ordenado e a coordenação das partes por
regulação normativa ou por administração organizacional; c1) os
problemas de integração sistémica são problemas de compatibilidade
entre as propriedades das partes estrutural e funcionalmente
diferenciadas; c2) em sociedades diferenciadas de grande porte, os
problemas da integração sistémica são endémicos; d1) a resolução dos
problemas de integração sistémica requer a interpretação destes como
dilemas por agentes com capacidade para agir estrategicamente sobre
eles; d2) a ação estratégica visando a resolução de problemas de
integração sistémica pode ter como resultados a persistência dos
problemas, a sua resolução por reajustamento sistémico, a
transformação da ordem social ou o colapso do sistema social em
causa.
A distinção entre os domínios social e sistémico da integração não é apenas
analítica. Existem sociedades porque existem relações entre pessoas, mas só
existem sociedades em que a maior parte das pessoas não tem entre si qualquer
relação de interação porque existem relações sistémicas para além da interação.
Relações sistémicas que, no entanto, só são reproduzidas ou transformadas
através das ações e relações de interação por elas reguladas e condicionadas.