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EuPTHUAp0872-34192012000200010

EuPTHUAp0872-34192012000200010

variedadeEu
ano2012
fonteScielo

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Peregrinação: possibilidades de compreensão crítica de uma experiência

Introdução A peregrinação conta-se entre o tipo de experiências que, aparentemente, se podem entender a partir delas mesmas, ou, talvez melhor, passando por elas. No limite, dir-se-ia que se alguém quer realmente saber o que é a peregrinação deveria pôr-se a caminho. Obviamente, este caráter impenetrável da experiência vem-lhe da sua forte dimensão subjetiva, a qual, precisamente, é posta em questão pela observação analítica e pela sua inscrição semântica: os sujeitos dificilmente se reveem nas descrições sociológicas e nas reflexões filosóficas e teológicas das experiências simbólicas por eles vividas em primeira mão. Mas a verdade é que estas experiências acabam por receber algum tipo de articulação expressiva, na qual confluem e, por assim dizer, recebem o seu acabamento. Quer dizer, é a própria experiência que começa por se descrever e interpretar a si mesma. Assim sendo, porque deveria ela ser imune à descrição controlada das ciências humanas, à interpretação metódica da filosofia ou à compreensão crítica à luz de um referente divino pela teologia? Não se a experiência da peregrinação e dos peregrinos (nas condições concretas que efetivam o próprio peregrinar) sob o horizonte de um sentido e de um destino a alcançar? Este estudo pretende inquirir sobre as várias possibilidades de compreensão crítica da experiência ' humana e religiosa ' da peregrinação. Trata-se, portanto, de uma reflexão aquém e além de uma pesquisa empírica em torno de uma peregrinação concreta, mas não extrínseca a ela. Pelo contrário, na medida em que se detém sobre as polaridades, ruturas e possibilidades de compreensão crítica da peregrinação, constitui-se naturalmente num novo impulso em ordem ao estudo ' empírico e reflexivo, quantitativo e qualitativo ' da mesma (e, por extensão, dos factos religiosos em geral). Por isso mesmo, é importante começar pela própria experiência da peregrinação.

1. A experiência da peregrinação A peregrinação consiste numa viagem, motivada pela devoção, a um lugar sagrado.

A devoção religiosa do peregrino parece continuar a ser o que permite distinguir a peregrinação de outro tipo de viagens, como, na atualidade, o assim chamado turismo religioso (Tomasi, 2002 e Tidball, 2004).

A peregrinação continua a ser um ato religioso, espontâneo e voluntário, que consiste em deixar a casa e os hábitos para cumprir uma promessa, pedir graças ou favores para si mesmo ou para outros, obter o perdão de faltas graves, esquecer o passado para viver uma vida nova ou ainda por qualquer outra razão pessoal ou coletiva (Chélini & Branthomme, 2004: 115-116).

Traços fundamentais da peregrinação são, pois, as motivações do peregrino, o percurso e o lugar sagrado de destino. Cada peregrinação comporta uma estrutura essencial: um peregrino que caminha pela estrada; um lugar de chegada escolhido em razão da sua situação em relação ao sagrado; uma motivação do peregrino que procura e espera um encontro com uma realidade misteriosa e invisível (Ries, 2012: 634). Na verdade, os motivos que levam à peregrinação podem ser os mais variados, como a ação de graças, a veneração e culto de uma potência sobrenatural ou de uma pessoa santa ou mesmo o regresso às origens da religião que se professa. Ao peregrinar a Meca, o crente muçulmano cumpre um dever religioso e um dos pilares do islamismo (Étienne, 1987 e Mahfoud, 2007).

O crente hindu, por sua vez, pode, com a peregrinação, chegar a libertar-se do ciclo dos nascimentos e das mortes (Scheuer, 2007). No budismo, é exigida a disciplina do corpo e do espírito e a peregrinação terá tanto mais valor se o crente se dispuser a receber instrução religiosa (Delahoutre, 1987). No cristianismo, a peregrinação é recomendada como praxisespiritual e penitencial (Chelini & Branthomme, 1982 e Delville, 2007).

Se excluirmos o caso do islamismo, ressalta como característica importante o ato e a decisão voluntária do crente por empreender uma peregrinação, assim como o fascínio dos lugares sagrados. A peregrinação através de meios de transportes é um fenómeno recente. Até fins do século XIX, o normal era que a peregrinação fosse feita a . Fortemente marcadas pela experiência individual, a peregrinação e as dificuldades que esta acarreta contribuem para que se uma mudança, por vezes radical, no indivíduo2 .

O termo experiência está sujeito, naturalmente, a mal entendidos, seja da parte da mentalidade técnico-científica, seja da parte das religiões. No primeiro caso, a experiência é entendida no âmbito da construção do saber sobre o real. Trata-se, portanto, de uma objetivaçãoda realidade. No caso das religiões, a experiência é invocada como confirmação da sua autenticidade, acentuando, por isso, o seu caráter subjetivo3 . mesmo uma espécie de mistificação da experiência religiosa, inacessível à ciência, por um lado, insubstituível para a religião, pelo outro.

O estudo psicológico de Antoine Vergote (1987) salta por cima da alternativa entre a objetividade requerida pela ciência (neste caso, a psicologia) e a subjetividade invocada pela religião, para considerar a experiência religiosa como uma dimensão pertencente à realidade psíquica e, pelo menos, linguisticamente articulável. A sua definição de experiência é de grande utilidade, pois não se limita a salvaguardar o caráter imediato do conhecimento que ela proporciona, nem a considerá-la apenas como uma projeção extrínseca de significado. Para Vergote, a experiência consiste na conjunção do contacto imediato e da significação apreendida pela coisa (Vergote, 1987: 112). Deste modo, a experiência cruza os objetos com a linguagem e o significado, podendo começar tanto pelos objetos, como pelas ideias que deles se possua. Vergote respeita assim plenamente a centralidade do sujeito na experiência e a superação da polaridade subjetividade-objetividade que se verifica no interior da experiência religiosa. Vergote pretende, ainda, desmistificar a experiência, aceitando antes a sua normalidade. Não se tratam de visões, revelações inauditas ou situações de transe, mas de uma possibilidade ligada à unidade, no ser humano, da afetividade, da linguagem e do sentido. Por isso, a experiência requer certas condições (psicológicas, culturais e religiosas) e quem a ela se dispõe a fará efetivamente (Vergote, 1987:163-167). Através da afetividade e da expressão do seu conhecimento em sintonia com as significações religiosas, o homem percebe sensivelmente a presença divina. Não raciocínio, nem dedutivo nem indutivo neste momento, mas experiência porque participação expressiva no que se mostra como sinal de uma presença (Vergote, 1987:154).

A experiência religiosa é tanto gratuita e inesperada quanto o ser humano a invoca sobre si, prepara, acolhe e nela se implica ativamente. O próprio Vergote dá-nos uma pista valiosa para entender o papel do rito na experiência religiosa ao afirmar que o rito é uma ação simbólica pelo corpo e sobre o corpo (Vergote, 1987: 287)4 . O rito cumpre, portanto, não com todos os requisitos para criar um contexto propício à experiência, como, por assim dizer, para a ampliar através da sua recriação. No peregrinar, temos também esta implicação corporal ativa (pelo corpo) e passiva (sobre o corpo) como possibilidade de perceção afetiva de uma presença.

A experiência básica da peregrinação é proporcionada e consiste em caminhar.

Assim, segundo Michel de Meslin, fazer uma peregrinação é antes de mais uma estrada. Seja qual for a maneira em que esta é feita, é sempre suportada. Ela torna-se para o peregrino a experiência dos seus próprios limites, do domínio sobre os seus sofrimentos, que ele aceitou voluntariamente desde o início (Meslin, 1988: 188). Outros autores referem-se ainda ao efeito libertador da caminhada ' a passo regular e firme ' sobre a consciência.

Esta libertação do pensamento coroa a obra da marcha, permitindo ao peregrino encontrar, prosseguir e realizar o seu grande projeto.

Nesta perspetiva, o passo torna-se a marcação decisiva que religa o espaço ao tempo, o indivíduo aos seus semelhantes e ao cosmos, o corpo ao espírito, num dinamismo e numa simbiose de vida que inspira e atrai o infinito (Chélini & Branthomme, 2004: 122).

As novas formas de concretização das peregrinações podem ser consideradas como reconstruções desta experiência básica, que acentuam a deslocação (viagem) e a visita (turismo). Também neste sentido as modernas peregrinações ' seculares ou religiosas ' são experiência (Jan Margry, 2008 e Post, Pieper & van Uden, 1998) e, tal como Tomasi faz notar, não nada de deplorável nisso, no entanto, porque cada época tem a sua própria maneira de se relacionar com o sagrado (Tomasi, 2002: 20). De facto, o referente fundamental de qualquer forma de peregrinação continuará a ser a caminhada inspirada e atraída pelo infinito, espacializado, quer dizer, imanentizado pela confluência, ao longo dos tempos, dos peregrinos no mesmo lugar sagrado de destino (Dupront, 1987: 365-415 e Ries, 2012: 639-640, o qual considera o simbolismo do centro essencial para compreender o universo da peregrinação e a sua universalidade).

2. Polaridades na compreensão da peregrinação Referindo-se à peregrinação como metáfora essencial do caminho que nos faz sentir a todos como peregrinos5, na busca da transcendência e na experiência do magnetismo do lugar sagrado, Natale Terrin afirma:

É necessário, de facto, tomar nota: as duas dimensões do verdadeiro e do imaginário coexistem de maneira excecional na peregrinação como talvez em nenhum outro fenómeno e confortam-se mutuamente de modo polar. Em definitiva, creio que não seria pensável este fenómeno sem uma consideração da imaginação ativa que reúne o fenómeno do desejo a uma vontade de visão do sagrado ( ) (Terrin, 1998: 179)6.

Mas esta não é a única polaridade presente na peregrinação e, segundo Wheeler, a peregrinação deve entender-se não como experiência antiestrutural da communitas, mas também da fratura e do conflito. Wheeler esboça, por isso, uma teoria da confluência. Esta teoria da confluência integra as duas qualidades de fratura e de corporação da peregrinação (Wheeler, 1999: 27). O conflito e a communitassão, de facto, constantemente negociados na peregrinação e desta interrelação é que surge a confluência.

( ) Uma das mais notáveis observações comuns sobre a prática moderna da peregrinação é que os peregrinos trazem consigo não as suas próprias crenças mas também as suas próprias definições de estatuto e de discurso dominante. As atuais discussões das políticas de identidade poderiam ensinar-nos que a communitase o conflito são constantemente negociados; é a sua contínua interrelação que eu denomino confluência (Wheeler, 1999: 28).

Esta confluência caracteriza os grupos e os indivíduos, definindo o espaço comum como espaço de encontro, movimento, crítica recíproca e comparticipação ritual.

Esta noção de espaço comum vai além das noções de ‘base comum' para integrar a dimensão de movimento; a confluência sugere não um lugar a ocupar mas também um caminho a andar. A confluência é uma forma de compreender o que é comum no espaço comum; ela honra tanto a divisão como a conexão entre os indivíduos e as suas comunidades mais amplas. A peregrinação é uma figura paradigmática e um processo de confluência corporal e espiritual (Wheeler, 1999:29).

Terrin e Wheeler reconhecem a presença de aspetos em tensão na peregrinação, sugerindo, ainda, a possibilidade da sua conjugação, mas enquanto as observações de Terrin se situam no terreno hermenêutico-fenomenológico, as propostas de Wheeler são claramente histórico-sociológicas. Poder-se-á elaborar uma teoria capaz de acolher este complexo jogo de diferenciações e de mediações, respeitando não as várias dimensões em que estas surgem, mas também as epistemologias (e metodologias) que as diagnosticam? O desafio consiste, na verdade, em superar uma mera justaposição ou anexação de visões e resultados diversos que manteria a heterogeneidade entre a antropologia e a ontologia, o arquetípico universal e os factos sociais particulares, entre a imaginação ativa e a confluência, mas não saberia, por assim dizer, devolver o objeto analisado à globalidade da experiência que este proporciona.

3. Rutura epistemológica no estudo da peregrinação Duas obras recentes, publicadas em Portugal, sobre a peregrinação servirão para ilustrar as dificuldades que se fazem sentir a nível epistemológico, ou seja, no âmbito do discurso sobre o conhecimento crítico (das suas possibilidades e métodos de aquisição) dos factos religiosos. Na primeira obra estuda-se uma peregrinação concreta, numa modalidade específica ' a peregrinação a a Fátima ' desde o ponto de vista antropológico-cultural. A segunda obra tem um caráter meditativo e, embora considere alguns aspetos da experiência antropológica do peregrinar, desenvolve um discurso filosófico (ontológico) geral. O aspeto epistemológico aqui em questão consiste na ruturaque estas opções divergentes provocam no próprio objeto de estudo, pois, para além das exigências e características próprias de cada método (antropológico ou filosófico), é preciso salvaguardar a realidade em questão (a qual, naturalmente, é prévia ao método da sua análise). A exterioridade antropológica da peregrinação, por um lado, e a sua interioridade ontológica, pelo outro, não deveriam aparecer como dimensões estranhas uma à outra, mas sim convergir na compreensão crítica deste facto social que é também uma experiência religiosa e teológica7 .

a) Um_estudo_antropológico O estudo de Pedro Pereira (2003) situa-se no campo da antropologia e, em grande medida, assume como objetivo a comprovação das teses de Victor e Edith Turner sobre a peregrinação. Estes autores reconhecem nas peregrinações um tipo característico de liminaridade, com paralelo nos rituais de iniciação. O que caracteriza os fenómenos liminares é a presença da communitas, que se opõe à societas. Se esta representa a estrutura, a communitassurge como a antiestrutura. Nos ritos de iniciação, a passagem pela communitasé efémera mas revitalizadora, pois uma vez reintroduzido na sociedade, o indivíduo está reforçado pela experiência da communitas. O jogo a sublinhar é o que se entre a separação, isto é, a situação liminar que constitui a communitas, e a reintrodução na estrutura do grupo social. A peregrinação representa, precisamente, este sair para regressar, mas para regressar diferente, transformado (Turner & Turner, 1978, em particular, o primeiro capítulo: Pilgrimage as a Liminoid Phenomenon, 1-39, e ainda Turner, 1973 e 1974).

Tendo este fundo teórico em conta, Pedro Pereira, estuda a peregrinação a a Fátima desde o interior (metodologia da observação participante), mas fazendo emergir os seus aspetos externos, desde a organização dos grupos, a sua liderança, o dia a dia, a comunicação e a cooperação, até à chegada ao Santuário, com a qual a peregrinação se encerra. Para ele, os três traços fundamentais do fenómeno religioso peregrinação são: as motivações para encetar a viagem, o próprio percurso e o lugar sagrado (Pereira, 2003: 44). É de salientar que, na ordem das motivações, a peregrinação em causa é quase sempre a consequência de uma promessa feita anteriormente (Pereira, 2003: 85). Esta promessa é descrita como um contrato: é o promitente que escolhe a entidade sobrenatural e que estabelece as condições do contrato, e se o ser sobrenatural não cumprir a sua parte, o promitente também não cumpre a sua (Pereira, 2003: 88)8 .

A relativização da tese da communitasna peregrinação vem da constatação de que a formação de grupos de peregrinos se subordina ao caráter individual da peregrinação, imposto pela promessa. Dificilmente um peregrino ajuda outro, se essa ajuda puser em causa a sua chegada a Fátima (Pereira, 2003: 130). O grupo é um meio útil para atenuar as dificuldades. É mesmo paradoxal que o sofrimento seja a condição fundamental da promessa (e mesmo a experiência mais marcante da peregrinação9 ) e que a constituição de grupos se deva, apenas, à tentativa de atenuar esses sofrimentos.

b) Um_estudo_filosófico Se a descrição de Pedro Pereira atinge o coração da ideia de communitas, para Silva Lima (2007) é na imersão no coletivo comunitário que se joga a própria identidade do peregrino.

Se ao longo do caminho se vislumbram significados retalhados ou fragmentos de significação, o percurso adquire uma significação cabal e total a partir do fim, do cumprimento pleno, onde cada indivíduo toca as raízes de uma identidade, coroando os seus esforços na presença da comunidade; ( ) (Lima, 2007:14-15).

O aspeto comunitário é imediatamente lançado para o âmbito ontológico. Um tal coroamento adquire algum estatuto mediador, aparecendo como um outro nome da transcendência inominável e da sua radical diferença (Lima, 2007: 15). Para este autor, peregrinar pertence ao âmago do ser (Lima, 2007: 19)10 . A peregrinação torna-se assim um tema hermenêutico na compreensão da estrutura fundamental do ser humano: ser de visita e de visitação11 , ser de , caminhando em direção ao futuro, a .

A humanidade, na textura do seu desenvolvimento e evolução, reflete uma caminhada para fora na qual se realiza, processo que comporta uma dimensão de verticalidade. É de péque cada homem ou mulher caminha para mais, num projeto sempre novo que o vincula ao futuro (Lima, 2007: 55).

A leitura cruzada da descrição antropológica e da contemplação ontológica da peregrinação põe em questão o próprio facto religioso sobre o qual se reflete.

Não qualquer possibilidade de relação entre a ontologia do e as bolhas nos pés que cada peregrino tem que limpar cada dia, após a caminhada. Mas, desta forma, é a própria experiência que os peregrinos fazem da peregrinação, ao dar-lhe existência concreta, que se perde e se anula como objeto de investigação. Atrever-me-ia a dizer que nesta dialética é que se joga o destino dos estudos religiosos, na confluência do que é factual e possível de descrever analiticamente e do que é ideal, ontologicamente contemplável.

4. Outras possibilidades Para além da descrição sócio-antropológica e da meditação filosófico- ontológica, podemos considerar, ainda, uma aproximação de tipo psicoanalítico (a peregrinação como arquétipo) e uma outra de tipo literário (a peregrinação como narração).

a) Peregrinação_como_arquétipo Jean Dalby Clift e Wallace B. Clift consideram a peregrinação desde o ponto de vista da teoria dos arquétipos elaborada por Jung. Neste sentido, a peregrinação seria como que a reemergência desses depósitos das experiências constantemente repetidas da humanidade que são os arquétipos, verdadeiros tesouros que se transformam em fonte de vida, sentido e beleza (Clift & Clift, 1996: 10-11). Esta visão conjuga-se com uma compreensão do símbolo como participação na realidade para a qual aponta; donde que o rito atualizador do arquétipo se possa descrever como um comportamento simbólico, conscientemente representado (performed). De facto, no rito, cada movimento torna-se um símbolo-em-ação que faz aparecer o poder do mundo interior numa forma visível e física (Clift & Clift, 1996: 15). Os autores pretendem, assim, não elaborar um marco formal e conceptual adequado à experiência da peregrinação, na sua diversificada continuidade religiosa, social e cultural, mas também integrar a interioridade dessa experiência. É este o motivo pelo qual se socorrem da teoria dos arquétipos de Jung.

Com uma compreensão de como os símbolos e os ritos falam ao inconsciente, é possível uma nova valorização do fenómeno da peregrinação. Pode começar-se por discernir a sua profundidade arquetípica. Ao olhar para a peregrinação a tendência ' natural para a cultura ocidental ' é concretizara prática externa, mais do que deixá-la habilitar a ‘ver através' da exterioridade a realidade interna (Clift & Clift, 1996: 17).

Neste sentido, enquanto modelo estrutural, a peregrinação visa o crescimento interior e o desenvolvimento da pessoa, ampliando a personalidade e a visão do mundo e transformando a pessoa através do contato com algo que a transcende (Clift & Clift, 1996: 20)12 . O arquétipo da peregrinação encontra-se nas religiões, mas também noutros tipos de viagem. Num sentido amplo, a peregrinação é qualquer viagem cujos destinos sejam lugares reconhecidos pelo seu grande valor e capazes de o representar (Clift & Clift, 1996: 24). Os autores incluem, portanto, na sua análise, lugares puramente seculares e, para além da busca do sagrado, reconhecem muitos outros motivos pessoais para se fazer uma peregrinação. Mas o que distingue o peregrino do viajante e do turista é a sua capacidade para relacionar a experiência com um mais amplo marco de sentido (Clift & Clift, 1996: 75). Assim, da peregrinação faz parte a experiência do abandono(deixar algo para trás) e do dom(patente no levar algo consigo no regresso a casa), sob o sentido de uma presença(no lugar visitado) (Clift & Clift, 1996: 77, 81-2). A peregrinação caracteriza-se, ainda, pelas dificuldades de acessoque expressam, a nível do inconsciente, o crescimento envolvido em qualquer mudança na vida, a saída do lugar que se ocupa; por vestuário distintivoindicando a forma como lidamos connosco mesmos e com os outros; e por rituais, normalmente de purificação com água, que simbolizam frescura e renovação (Clift & Clift, 1996: 69-73). O sentido profundo da peregrinação liga-se, contudo, segundo os autores, à numinosidade emocional dos arquétipos, donde deriva o seu poder transformador, correspondente à necessidade humana básica de ligação (Clift & Clift, 1996: 151-2), à dimensão ritual, expressada no tocar das relíquias e das imagens, na circumambulação do templo; no chamar a atenção ' ou despertar ' dos deuses; na união simbólica e coletiva, e, finalmente, na narração da história do lugar (Clift & Clift, 1996: 158-9), à qual se une a imaginação e a experiência do próprio peregrino. Esta referência conduz-nos a outra possibilidade de abordagem.

b) Peregrinação_como_narração A peregrinação foi, ao longo dos tempos, não uma ocasião para narrações, como se pode conceber até como uma peculiar forma de escrita. A peregrinação pode ser vista, segundo Coleman (2003), desde o ponto de vista da interação entre pessoas, lugares e textos, nas tensões e complementaridades entre as narrações orais e escritas; e, ainda, na sua relação com a viagem, na ambiguidade entre relatos de peregrinação e de viagem.

Enquanto texto/narração, a peregrinação constitui, na verdade, um reconhecimento textual de uma espécie de imanência do sagrado e reside a sua capacidade atrativa, convidando novos viajantes/peregrinos a visitar os mesmos lugares. Quer dizer, é o mundo da palavra falada e escrita que constrói a ontologia do sagrado e a sua epistemologia como algo a ser aproximado e alcançado (Coleman, 2003: 4). Por outro lado, a própria narração da viagem/ peregrinação passa a pertencer ao regresso do peregrino ao seu ambiente quotidiano. Esta narração é seletiva e interpretativa, ajudando a construir a figura do peregrino. Este poder da narração da peregrinação pode originar tensões em relação à experiência que a origina. O relato desta experiência pode ser obrigado a assumir uma outra forma, muito diferente dos requisitos espirituais da peregrinação. De qualquer modo, uma vez que o evento teofânico originário é recontado, pode orientar as posteriores perceções dos peregrinos sobre um determinado lugar, assim como proporcionar muita da motivação para as suas viagens (Coleman, 2003: 6).

Outro aspeto prende-se com a leitura das escrituras sagradas. Nos lugares de peregrinação leem-se, normalmente, os passos referentes a esse mesmo local, o que lugar a uma justaposição entre o texto canónico e a experiência pessoal do peregrino. A peregrinação pode, portanto, criar um contexto novo para a apropriação e compreensão das escrituras sagradas por parte dos crentes peregrinos.

5. Avaliação à luz da questão da busca espiritual Uma avaliação das várias possibilidades de abordagem da peregrinação como experiência humana e religiosa, com a finalidade de reconciliar a experiência subjetiva do peregrino com a objetivação do pesquisador, não pode esquivar-se a um momento de avaliação à luz, precisamente, das transformações e recomposições do religioso na atualidade. O campo religioso caracteriza-se, hoje, pelo enfraquecimento institucional, por um lado, e pela busca do espiritual, pelo outro (Heelas & Woodhead, 2005). Mas não se pode identificar o instituticional com objetivo, nem o espiritual com subjetivo. Isso levaria ao descrédito da perspetiva de análise ' antropológica, sociológica ou teólogica ' escolhida. A busca espiritual dos Novos Movimentos Religiosos, mas presente, também, nas religiões históricas nas suas tentativas de recontextualização, também pode ser objetivada, isto é, submetida à explicação, do mesmo modo que os aspetos institucionais ' ritos, doutrinas e hierarquias ' das religiões sempre sofreram processos subjetivos de apropriação e de compreensão hermenêutica. A história das peregrinações religiosas comprova este segundo aspeto. Uma abordagem integral como a que propomos neste artigo deve, portanto, defender-se da rutura epistemológica em nome da complexidade da experiência ' subjetiva e objetiva ' da peregrinação. Para avaliar a pertinência desta proposta tendo em conta a questão das novas espiritualidades no quadro da modernidade e do individualismo contemporâneos, teremos em conta o estudo de Justine Digance e Carole M. Cusack (2001) sobre as peregrinações seculares.

As autoras colocam os eventos a que chamam de peregrinações seculares no contexto de um processo de ressacralisação do mundo em que o religioso tende a ser substituído por equivalentes privados, individuais e não-regulados (Digance & Cusack, 2001: 217). Por isso, tanto o Druid Gorsedd (Ordem dos Druidas) como o Stargate Alignmentsão considerados como autênticas peregrinações. Na verdade, tocamos aqui os limites da própria abordagem: na pressa de encontrar símbolos subjetivamente equivalentes às instituições que as ciências humanas se habituaram a objetivar como religião, mas que agora devem enquadrar no mencionado processo de ressacralisação não religiosa e não institucional do mundo, as autoras oferecem-nos um verdadeiro paradoxo: pretendem analisar um substituto não-regulado de uma realidade religiosa projetando sobre ele categorias religiosas tradicionais. As autoras são conduzidas a isto por influência dos próprios sujeitos que falam de uma busca espiritual (Digance & Cusack, 2001: 222 e 225). As autoras apresentam, brevemente, o contexto histórico dos eventos, sem suspeitar de um processo de institucionalisação de um Novo Movimento Religioso, com as suas regras, rituais, doutrinas e sacerdotes (neste caso, a Ordem dos Druidas e a Earth Link Mission, respetivamente). Assim, os Novos Movimentos Religiosos são conotados com a busca espiritual, enquanto as religiões históricas, como o cristianismo, são conotadas com a cristalização institucional.

Este jogo de dicotomias (espiritual-institucional, subjetivo-objetivo) não permite ver a confluência, para retomar a noção de Wheeler, mas apenas acommunitas. De facto, as autoras assumem as perspetivas turnerianas, sem se darem conta daquilo que fica por explicar nos eventos descritos. Tanto o Druid Gorseddcomo o Stargate Alignmentparecem demonstrar a prevalência da communitase a presença do lúdico.

O Gorsedde os dois Stargate Alignments, que representaram um ‘ato de ' para os participantes, caracterizaram-se por outros elementos que seriam de se esperar na tradicional peregrinação religiosa. Mais importante, a communitasturneriana e um sentimento do lúdico tornaram-se evidentes nos eventos (Digance & Cusack, 2001: 219; cf. ainda 222 e 225).

O problema em relação à communitasé a dificuldade em perceber indícios de conflito e rutura, por exemplo no fato de a maior parte dos participantes serem first timers(Digance & Cusack, 2001: 226). O que aconteceu com as pessoas que participaram noutras peregrinações de busca espiritual? Uma peregrinação foi suficiente para as suas necessidades ou algo as fez renunciar à repetição da experiência? Como tudo é lido no fluxo sempre em movimento da recomposição religiosa segundo as necessidades individuais do momento, não se percebem os possíveis conflitos internos inerentes a um processo de institucionalização em curso. Todos os aspetos que não pertencem à communitassão remetidos para a categoria do lúdico ou simplesmente indicados como outras características: rituais mágicos, consagração do lugar, oferendas (comida, pão, flores), comensalidade (Digance & Cusack, 2001: 222-223 e 225). Particularmente relevantes, neste sentido, são as características que ligam estes eventos ao cósmico e ao natural, com evidentes pontos de contatos com a ecologia (Digance & Cusack, 2001: 224, onde as autoras reportam a ideia de que, com a sua meditação, os membros da Earth Link Mission estão a salvar a terra da destruição). A possibilidade de uma mediação lúdico-religiosa politicamente responsável em relação às preocupações ecológico-ambientais não é, sequer, levantada.

O nosso objetivo, com estas observações críticas, não é tanto evidenciar as carências do modelo turneriano, quanto a deformação causada pela contaminação das teorias da recomposição religiosa pela rutura epistemológica que está na origem das dicotomias espiritual versusinstitucional, subjetivo versusobjetivo, e, ainda, da homologação do institucional ao objetivo e do espiritual ao subjetivo. Desta forma, propostas analíticas como as de Digance e Cusack acabam por sucumbir à subjetividade da busca espiritual pós-moderna, apresentando-se, no entanto, como formas de objetividade sociológicas. As demais propostas apresentadas neste estudo expõem-se ao mesmo perigo. Isto sugere a necessidade da elaboração de um método integral, a partir de uma epistemologia do encontro e do diálogo de abordagens diferenciadas, de forma a cruzar e a interpenetrar constantemente a subjetividade religiosa com a objetividade científica ou, se preferirmos, a compreensão teológica com a explicação sócio- antropológica (Cardita, 2011).

Conclusão A diversidade de perspetivas e métodos de análise dos factos religiosos não é uma fatalidade. Pelo contrário, a consciência desta diversidade pode ajudar a percebê- los melhor e a afinar a nossa própria compreensão dos mesmos. O que não se pode fazer é tentar ignorar essa diversidade ou, ainda pior, ocultá-la sob a capa da cientificidade ou da autenticidade da . A tentativa de conciliação dos vários métodos não implica qualquer deficiência nos mesmos, nem respeita, diretamente, à sua aplicação, mas quando o mesmo (ou análogo) objeto de estudo é desfigurado pela sua diferenciação, então torna-se necessário rever os seus pressupostos. A peregrinação da antropologia é muito diferente da peregrinação da filosofia; a peregrinação como arquétipo supõe uma metodologia e uma epistemologia diversa da peregrinação como narração. O problema é que, radicalizando esta diferença epistemológica, perde-se a própria experiência da peregrinação como tal. Qualquer aproximação é, por natureza, incompleta, devendo, por isso, abrir-se a outras possibilidades a partir do reconhecimento do caráter originário (anterior a qualquer objetivação) da experiência religiosa.

Notas 1 Faculté de Théologie et de Sciences Religieuses, Université Laval (Quebec, Canadá). E-mail angelo.cardita.1@ulaval.ca e angelocardita@gmail.com 2 Esta é uma das características que faz com que Danielle Hervieu-Léger (1999) interprete o sujeito religioso pós-moderno sob a figura do convertido e do peregrino.

3 O que é paradoxal neste uso moderno da experiência na religião é que, acentuando a subjetividade como prova de autenticidade, assume-se, ao mesmo tempo, o modelo objetivo da experiência.

4 Tenha-se presente, ainda, que, segundo o autor, o rito é uma ação que tem por intenção transformar o sinal em presença operante do significado do sinal (Vergote, 1987: 283).

5 Filorano fala, por sua vez, numa metamorfose metafórica que transforma a peregrinação numa viagem interior (Filorano, 2004: 250) e, para Meslin, a peregrinação é antes de mais uma peregrinação de interioridade (Meslin, 1988: 189).

6 Giovanni Filorano reconhece também dois aspetos complementares na peregrinação que ele refere como a sua peculiar lógica sacral e os seus condicionalismos externos (Filorano, 2004: 256).

7 A peregrinação é o símbolo do regresso a Deus que criou o universo (Étienne, 1987: 377). Escapa a este artigo a elaboração explícita de um esquema hermenêutico de entendimento e de prática da interdisciplinaridade entre as ciências humanas e a teologia. Para uma reflexão inicial sobre esta problemática ver Cardita, 2011.

8 O autor explica: Quando questionava os promitentes do meu grupo e outros, sobre a entidade à qual fizeram a promessa, todos referiam que pediram à Nossa Senhora de Fátima para lhes conceder uma graçae nunca mencionaram que seria para Esta interceder junto de Deus; mais do que isso, a própria peregrinação a a Fátima é a forma de agradecer a Esta a graçaque Ela realizou (Pereira, 2003: 88).

9 A peregrinação a permite a boa parte dos peregrinos sentirem os seus limites, quer físicos, quer psicológicos. Mas é essencialmente o sofrimento do corpo que deixa uma impressão mais duradoura nos peregrinos (Pereira, 2003: 147).

10 A peregrinação devolve a lição de que ainda não se é tudo e que alguma plenitude alcançada não é ponto final (Lima, 2007: 37).

11 A visita de que (cada ser humano) é alvo e que o faz ser, tornando- o visitante também, supõe o visitantedas origens (Lima, 2007: 64).

12 O arquétipo tem uma forma (shape) que conduz a um sentido profundo, mas tem também uma zona sombria, onde reside a possibilidade de perversão (motivando as críticas, entre outros, de Lutero e dos reformadores, à luz do ideal da peregrinação espiritual). Preconceitos religiosos, nacionais, étnicos, mas também idolatria, comércio, fetichismo (relíquias) são, portanto, alguns dos aspetos negativos que o reconhecimento de uma intenção de entrar em contacto com o transcendente não pode ocultar.


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