Das categorias de pensamento às categorias de conhecimento
Com este texto propõe-se desenvolver uma modesta reflexão acerca dos processos
sociais de construção de categorias de pensamento sobre a realidade, construção
que é entendida em sentido lato, abarcando desde as atividades de investigação,
as de intervenção social (política, intelectual, etc.) e as de expressão
artística. Estas convertem-se em categorias de conhecimento, mais ou menos
elaboradas, mais ou menos destinadas a um uso ordinário ou extraordinário e
integram quadros de conhecimento estruturados.
1. A construção de categorias como um processo social
A construção de categorias de conhecimento, isto é, dos instrumentos que nos
permitem conhecer, constitui um processo social multidimensional e
historicamente contextualizado. Michel de Certeau faz referência ao que designa
por A escrita da história (1975), como um marco da história moderna ocidental
que teve na sua base a diferenciação entre o discurso e o corpo social. Com a
escrita constroem-se visões e perspetivas de análise histórica.
Com este ponto de partida, proponho uma reflexão em torno da construção de
categorias de conhecimento atendendo aos contextos específicos em que são
produzidas e à biografia de quem as produz. E como não há produção de
conhecimento neutra, isto é, destituída de pressupostos normativo-ideológicos,
incluo nesta reflexão as respetivas condições sociais de produção (Pinto e
Almeida, 1975).
Para alimentar esta reflexão, socorro-me de dois exemplos: o trabalho de
investigação sociológica desenvolvido por Pierre Bourdieu na Argélia e a
importância deste trabalho para a sua carreira como investigador e professor
universitário; e um recente projeto de investigação desenvolvido no México
sobre o património nacional. Se o primeiro exemplo pode ser lido como um
conhecimento produzido de fora, mas com impactos importantes num conhecimento
de dentro, sobre a sociedade francesa, o segundo é um conhecimento de
dentro com intenções de ser lido dentro e mostrado para fora.
Trata-se de uma reflexão restrita com a qual espero contribuir para uma
discussão crítica acerca da forma como conhecemos a realidade e as
consequências que os respetivos procedimentos e resultados têm nas nossas
práticas.
2. As categorias
A construção de categorias é um domínio de ação transversal às mais variadas
áreas de conhecimento e disciplinas e assume naturezas diversas. Para a sua
abordagem destaco aqui duas notas de reflexão.
A primeira nota é relativa às categorias que conduziram à diferenciação entre o
eu e o outro e que contribuíram para a criação deste outro (De Certeau,
1975). Refiro-me a categorias como as de etnia, selvagem, passado, povo, etc.,
elaboradas com base no argumento de que era necessário compreender o outro.
Ainda que todo um trabalho epistemológico tenha sido e continue a ser
realizado, prevalece como pertinente a reflexão de Michel de Certeau quando
refere, em 1975, que o saber dizer garante um trabalho interpretativo de uma
ciência e gera-se uma historiografia Ocidental que tem a especificidade de
separar um passado do presente. A prática da escrita constitui um marco de
diferenciação e uma capacidade de domínio do corpo social, passando a deter o
valor de modelo científico (De Certeau, 1975: 19). Fazer história é, assim,
uma prática (De Certeau, 1975: 95), social, acrescento eu, que tem um discurso
como resultado. O que é aqui referido no domínio da história aplica-se, com as
devidas especificidades, às outras ciências sociais. Na antropologia, por
exemplo, Pierre Bonte e Michel Izard, propõem, com o Dictionnaire de l'
Ethnologie et de l'Anthropologie de 1991, condensar uma multiplicidade de
perspetivas e de itinerários de leitura (1991:vi). A sua consulta levou-me,
por exemplo, ao termo etnia (Bonte e Izzard, 1991: 242-247), em cuja
problematização se refere que é um termo que foi objeto de um amplo debate e
que dominou durante muito tempo a antropologia numa lógica substantiva. Nesta
lógica, cada etnia era considerada uma entidade dotada de uma cultura, de uma
língua e de uma psicologia específicas. Pode ainda ler-se, na mesma fonte, que
o termo etnia começa a ser objeto de críticas e, neste sentido, a
problematizar-se o processo de etnificação, um processo contemporâneo dos
processos históricos de colonização. Uma etnia corresponde a um determinado
nível de organização social, não se justificando, segundo alguns autores, o seu
privilégio epistemológico e menos ainda a sua reificação (Bont e Izard, dir.,
1991: 243), pois transforma-se, frequentemente, numa categoria ideológica. Este
exemplo conduz-me a salientar como a construção de conceitos, a sua nomeação e
o respetivo registo constituem práticas integrantes dos processos de
conhecimento que, como veremos mais adiante, fazem história.
A segunda nota vai para as categorias que resultam, elas próprias, de processos
históricos que ultrapassam as fronteiras nacionais e que atravessam várias
sociedades. Exige equacionar uma lógica de pensamento mestiço, como propõe
Serge Gruzinski (1999), para uma análise da coexistência entre a cultura
europeia colonial e a cultura indígena, como é o caso do México. Também Jean
Loup Amselle, antropólogo, desconstrói o conceito de grupo étnico, a partir da
problematização do conceito de mestiçagem e propondo, alternativamente, a ideia
da existência de conexões (2010).
Estas duas notas orientam-se para a reflexão mais ampla sobre os processos de
colonização, os quais, tal como outros processos sociais, geraram, com
configurações distintas, transformações culturais, económicas, sociais e
políticas que marcam a história. Assim, encontra-se a diferentes escalas e ao
longo da história da humanidade o que hoje se tornou omnipresente (Gruzinski,
1999: 36).
3. As categorias de investigação
O vasto conjunto de investigações que Pierre Bourdieu3 desenvolveu ao longo da
sua vida teve início nos seus trabalhos inaugurais sobre algumas das regiões da
Argélia, regiões onde se localizava de forma marcada a guerrilha nacionalista.
Trata-se de um trabalho rigoroso e metódico de análise sobre a Argélia do qual
resultou a primeira formulação de um quadro conceptual de análise que foi
posteriormente utilizado e afinado pelo sociólogo na análise da sociedade
francesa e adotado por muitos investigadores em todo o mundo.
Pierre Bourdieu, filho de camponeses, foi destacado para a Argélia para cumprir
o serviço militar em 1955 e foi professor de filosofia na Universidade de Argel
até 1960. Desenvolveu um conjunto de trabalhos acerca das dinâmicas económicas,
culturais e de emprego de algumas das regiões da Argélia, destacando-se Cabila,
alguns dos quais realizou com o investigador de origem franco-argelina
Abdelmalek Sayad, que foi aluno de Pierre Bourdieu na Universidade de Argel.
Para esta reflexão destaco dois domínios de investigação do seu trabalho.
O primeiro é a sua análise sobre a sociedade Cabila (Bourdieu, 1972), na qual
realiza um trabalho etnográfico sobre, nomeadamente, os processos sociais da
honra, da organização da casa e das relações de parentesco. O autor frisa o
facto de a estas três dinâmicas sociais estarem subjacentes regras de
organização, de estruturação da sociedade e da economia e regras de interesses.
Refere, por exemplo, que as estruturas de parentesco preenchem uma função
política, à semelhança da religião ou da ideologia, e de reprodução social.
Sugere mesmo que se tenha em linha de conta a utilidade dos parentes
(Bourdieu, 1972). A divisão sexual do trabalho, o casamento e os processos de
negociação dos dotes, por exemplo, são alguns dos traços sociais que se
enquadram na estrutura económica da sociedade, constituindo as relações de
prestígio e honra o suporte simbólico desta estrutura. O capital simbólico é,
assim, convertido em capital económico.
Pierre Bourdieu virá a desenvolver, mais tarde, o seu trabalho sobre o poder e
o capital simbólicos, elementos evidenciados na sua análise da sociedade
francesa numa das suas obras de referência ' La distinction ' a propósito
dos processos sociais de distinção expressos nas atividades culturais,
destacando a importância da educação familiar e da educação escolar e
discutindo a produção social do gosto (Bourdieu, 1979). Por seu turno, o seu
último livro, publicado em 2002, é uma reflexão também enformada por esta
análise inaugural, focando a crise da sociedade camponesa (onde passou a sua
juventude), por força, nomeadamente, das mudanças ocorridas nas estratégias
matrimoniais.
A par do seu trabalho sobre a sociedade Cabila, Pierre Bourdieu realiza um
trabalho extensivo de análise da sociedade argelina, a segunda abordagem que
gostaria de destacar. Desenvolve uma análise de algumas comunidades agrícolas
(Bourdieu, 1958; 1972; Bourdieu e Sayad, 1963) e do processo de desenraizamento
e fragmentação da sociedade agrária e respetiva adaptação forçada ao
capitalismo por via do processo de colonização e da guerra (Bourdieu e Sayad,
1964; Bourdieu, Darbel, Rivet e Selbel, 1963). Com Abdelmalek Sayad, critica a
lógica racional de mercado imposta à sociedade agrícola argelina e explicita os
fatores de ordem cultural, económica e social que explicam este processo. Um
dos aspetos que os autores focam é o facto de a reinstalação massiva destas
populações por parte do exército francês em zonas adjacentes às instalações do
exército, ter tido como objetivo controlar o acesso da população ao Exército de
Libertação Nacional. Trata-se de cerca de 3 milhões de pessoas, representando
50% da população rural do país. Como referem os autores, foi o processo de
deslocação mais brutal conhecido na história e que constituiu um processo sem
retorno, pois mudou a configuração da sociedade.
O processo de colonização teve como uma das suas vertentes o desenvolvimento da
agricultura por parte dos colonos europeus a quem foram afetas as melhores
terras (Bourdieu e Sayad, 2004). A par deste fator, a deslocação das populações
consolidou uma total desagregação da economia agrária na Argélia, gerou um
êxodo rural em massa e conduziu à pauperização e proletarização da população
agrícola (com a desapropriação dos solos e a rutura do princípio da indivisão
das terras), incluindo o abandono de tradições que enformavam a estrutura
económica e que eram, portanto, parte integrante dela. Pierre Bourdieu e
Abdelmalek Sayad referem que se manteve um tradicionalismo do desespero,
inseparável de uma economia de subsistência e uma sociedade desintegrada e
apropriada por suproletariados agarrados a um passado que sabem que está morto
e enterrado (Bourdieu e Sayad, 2004: 455). Trata-se de um exílio forçado e
determinado pela pobreza e um tradicionalismo que é transposto para o centro de
uma agricultura com um elevado grau de mecanização e racionalização. Para além
da violência física, foi exercida sobre os camponeses uma violência simbólica
que conduziu à desestruturação das suas bases culturais tradicionais.
A desagregação da sociedade argelina não resulta, assim, de um choque de
culturas, mas de uma ação francesa planeada que teve na sua base a destruição
das unidades tradicionais e a imposição de normas administrativas e jurídicas
idênticas às de França (Bourdieu, 1958: 106).
Veja-se, por exemplo, em meados do século XIX, um excerto de um membro do
exército francês:
O essencial é, sem dúvida, agrupar este povo, que está em todo o
lado e em lado nenhum. O essencial é pô-lo ao nosso alcance. Quando o
conseguirmos, então seremos capazes de fazer muitas coisas que nos
são, hoje, impossíveis e que talvez nos permitam apoderarmo-nos do
seu espírito depois de nos termos apoderado do seu corpo. Capitão
Charles Richard, Étude sur l'insurrection do Dahra (1845-1846). In
Bourdieu e Sayad, 2004:448-449.
A análise de um conjunto de dinâmicas sociais, económicas e culturais em curso
num mesmo país conduziram Pierre Bourdieu a problematizar a complexidade das
economias e a aparente contradição face à coexistência do ethos económico
importado pela colonização e os padrões herdados da tradição ancestral
(Bourdieu e Sayad, 2004:464).
Na sua obra Esquisse , de 1972, Pierre Bourdieu explicita, a partir dos
trabalhos de investigação realizados, a sua matriz teórica: uma teoria da
prática como condição para uma ciência das práticas. E a partir do seu trabalho
sobre a Argélia, reflete sobre temas vários como os mecanismos de reprodução
social, o capital simbólico, a dimensão simbólica da dominação económica ou as
estruturas sociais da economia (Bourdieu, Christin, Bonhedja e Givry, 1990)4 .
A sua crítica à ciência económica neoclássica, por exemplo, vai no sentido da
afirmação de que esta, ao favorecer uma análise centrada nos indivíduos e não
nas sociedades e nos seus processos históricos, gera um conhecimento
considerado científico que está, na realidade, profundamente arreigado a
conceções ideológicas de um determinado modelo de sociedade que se pretende
impor. À imprecisão de uma categoria chamada mercado, propõe analisar as
estruturas sociais da economia (2000) e o campo económico (1997).
Destaco dois pontos neste vasto trabalho de Pierre Bourdieu. O primeiro reside
no facto de o seu trabalho analítico sobre a sociedade argelina ter constituído
uma base central da construção de categorias de conhecimento (devedoras, claro,
dos trabalhos de autores como Jean-Paul Sartre, Marcel Mauss, Claude Lévy-
Strauss, Max Weber, Karl Marx, entre outros), posteriormente aplicadas na
análise da sociedade francesa. Assim, as categorias de conhecimento, tendo que
ser devidamente referenciadas em termos das suas condições sociais e históricas
de produção, potenciam uma análise de sociedades espacial e temporalmente
diferenciadas. O segundo ponto é relativo ao facto de todo o seu trabalho
sociológico constituir um corpusde conhecimentos que condensa instrumentos
analíticos de suporte à ação. Demonstrar o papel do sistema de ensino na
reprodução das desigualdades sociais, trabalho desenvolvido com Jean-Claude
Passeron (Bourdieu e Passeron, 1970), é um dos exemplos possíveis e também
devedor do trabalho que realizou sobre a estrutura social das regiões argelinas
que estudou. Termino, ainda, este ponto para referir os temas que são
desenvolvidos na revista que coordenou ' Actes de la Recherche en Sciences
Sociales ' os quais, como salienta um dos investigadores que acompanhou de
perto o seu trabalho, Loïq Wacquant (2002), refletem criticamente e de forma
cientificamente fundamentada, alguns acontecimentos que afetam a Humanidade.
Por exemplo, em 2010, o número 185 é dedicado às representações da colonização.
No presente ano de 2012 celebram-se os 50 anos da independência da Argélia e
passam 10 anos sobre a morte de Pierre Bourdieu: percursos cruzados que marcam
a história.
4. As categorias de preservação
O Consejo Nacional para la Cultura y las Artes mexicano encomendou à academia,
no âmbito das comemorações do segundo centenário do início da independência
(concretizada em 1821), em 2010, um trabalho de análise e documentação do
património histórico e cultural do México ' El património histórico y cultural
de México (1810-2010) ' que, nas palavras da Presidente do referido Conselho,
Consuelo Sáizar, dê conta da riqueza geográfica, cultural, artística e social
que constitui o património do México, bem como o seu respetivo processo de
formação (Gonzalbo, coord., 2011: 9). Mais adiante refere, ainda, que os
livros inventariarão os bens culturais e naturais do México e explicarão as
razões pelas quais são considerados símbolos do nosso ser cultural (Gonzalbo,
coord., 2011: 10).
Trata-se de uma obra que está a ser editada em vários volumes e na qual se
debruça sobre o património do país, em particular após a sua independência.
Esta obra permite refletir sobre os objetivos explícitos de criação de um
registo que ateste o património nacional e que estruture a categoria de
património em si.
Detenho-me sobre o segundo volume, editado em 2011 ' La idea de nuestro
património histórico y cultural.
O título da obra é, já de si, indicativo de que se pretende discutir a
categoria património e a existência de um património mexicano, alimentando uma
ideia de união, mas, a par, enfatizando a riqueza e diversidade patrimoniais.
Enrique Florescano, coordenador do projeto, salienta o objetivo de carácter
científico de realizar um estudo que explique como é que as diversas
disciplinas contribuíram para criar a dimensão geográfica, histórica,
antropológica, literária, musical, artística e cultural do património nacional
(Gonzalbo, coord., 2011: 11). Assim, ao objetivo político acima enunciado, vem
juntar-se um objetivo científico, enfatizando o papel das disciplinas e do
conhecimento produzido na estruturação de um património e na criação, nos
últimos dois séculos, de uma ideia de diversidade cultural: categorias de
conhecimento traduzidas em categorias de preservação.
Destaco nesta obra dois aspetos: a discussão do que se entende por este
património e o tipo de patrimónios que são apresentados.
Comecemos pelo primeiro. Pablo Escalante Gonzalbo (Gonzalo, 2011) enuncia
criticamente um trabalho sobre a ideia de património, afirmando que é conferida
uma ênfase excessiva ao património pré-hispânico ou pré-columbiano. Para tal,
reporta-se a
um debate, não exclusivo da realidade mexicana, acerca do que deve ser ou não
preservado. A referência que desenvolve é sobre o Templo Mayor Tenochtitlan na
Cidade do México, relativamente ao qual foi tomada a decisão de favorecer a
escavação, valorizando o passado pré-hispânico, o que implicou alterar a traça
urbana, interromper a circulação pedonal e obstruir as linhas visuais de um
conjunto de ruas. Gonzalbo refere, criticamente, que se alimenta, com estas
opções, um discurso nacionalista que faz depender deste último a identidade
mexicana. A par, sublinha como os mexicanos não reconhecem valor religioso às
ruínas pré-hispânicas. Questiona, ainda, se a atitude de alguma reverência
perante o património pré-hispânico favorece a sua preservação. E considera que
o endeusamento do património pré-hispânico retarda o aparecimento de atitudes
de cidadania face a ele e dificulta a sua análise racional com recurso a
categorias históricas e a uma reflexão crítica relativamente ao que deve ser
considerado património e a forma como deve ser abordado. Importa, assim,
segundo o autor, valorizar o passado pré-hispânico, mas também o que se
constituiu posteriormente.
O segundo aspeto é relativo aos patrimónios. O livro colige um conjunto vasto
de reflexões sobre casos e facetas distintas do património, umas mais críticas,
outras mais arreigadas aos valores nacionais. São exemplos os trabalhos sobre
as igrejas, as catedrais e os conventos ou sobre o cinema ou ainda sobre a
lotaria nacional e a popular.
Para ilustrar a discussão, proponho o caso do petróleo, em que se discute a
ideia de este poder ser considerado património nacional do México. O petróleo
tem sido promovido, não como uma mercadoria, mas como um bem que define a
identidade nacional mexicana, condensada no símbolo da empresa Pemex,
Pretróleos Mexicanos. O petróleo e a Pemex constituem, assim, bens
distintivamente nacionais (Graillet, 2011: 91 inGonzalbo, 2011). O que é que
está na base deste processo histórico? O caso do petróleo associa-se ao peso
simbólico que adquiriu a empresa Pemex com a transformação ' na década de 30 do
século XX, por via de um processo de expropriação - do petróleo num bem
nacional. Trata-se de um longo e complexo processo que tem subjacente a
valorização do subsolo mexicano como um meio de afirmação da soberania mexicana
que se impõe preservar.
O México constitui um caso interessante, entre outros, de afirmação de uma
identidade nacional assente num determinado passado, estrategicamente recortado
em função das condições sociais vigentes, diferenciando o passado do presente
(De Certeau, 1975). Mas é também um caso interessante de mestiçagem
(Gruzinski, 1999) a vários níveis, não apenas pela coexistência de
patrimónios, mas também pela sua interpenetração. O enaltecimento que se
pretende dar à cultura pré-colombiana, com alusão, por exemplo, às pirâmides de
Teoithuacan, coexiste com as pinturas efetuadas por indígenas em conventos,
mostrando que, durante o século XVI e nos séculos seguintes, o mundo ocidental
e o mundo ameríndio coexistem e interagem. A ocidentalização é, assim,
indissociável da mestiçagem.
5. Os compromissos, cientificamente enformados, de construção de categorias de
conhecimento
A reflexão sobre as condições sociais de produção de categorias de investigação
e de preservação não pode ser desligada dos seus processos sociais.
No caso do trabalho de Pierre Bourdieu, os objetivos de investigação são
acompanhados pela crítica ao que apelida de erro objetivista.
Simultaneamente, assume um papel ativo na crítica à guerra na Argélia e
denuncia, com o seu trabalho, a desestruturação da sociedade agrícola,
manifestamente marcada pelo processo de colonização e pela guerra. Intelectual
francês, crítico do peso da intervenção colonial, vem afirmar a necessidade de
uma intervenção num país que não pode mais aspirar a restituir a sociedade
tradicional. Sendo um sociólogo que eu apelidaria de (des)comprometido, ancora
o seu compromisso num conhecimento rigoroso e científico da realidade. Trata-se
de um ofício militante (Bourdieu, 1980), nas palavras do autor. A versão
americana da sua primeira obra, Sociologie d'Algérie, traduzida por The
Algerians (1959) tem na capa a bandeira do país independente antes da
declaração da independência. Refiro ainda como em Esquisse , Bourdieu propõe
uma reflexão que o acompanhará ao longo de toda a sua vida sobre o seu papel
como sociólogo ou como criador de categorias de conhecimento.
No caso das abordagens do património mexicano, prevalece uma discussão em torno
do que se entende por património, as práticas sociais de patrimonialização e o
acento colocado atualmente no património pré-hispânico para justificar a
unidade de um Estado-nação federado. Por sua vez, os resultados destes
trabalhos, legitimados, porque realizados por um conjunto de investigadores da
academia, poderão ser objeto de usos e de manipulações políticas aos quais
importa estar atento. A ação política é, aqui, explicitamente direcionada para
a discussão e preservação do património, promovendo, direta e indiretamente, um
sentimento de identidade nacional. A obra a que fiz referência, coordenada por
Pablo Escalante Gonzalbo, condensa um conjunto de textos críticos deste tipo de
abordagem, potenciando uma reflexão sobre os processos sociais de construção de
categorias de conhecimento.
Conclusão
Para terminar e para deixar em aberto este debate, proponho avançar um passo
mais na reflexão sobre formas de pensar, de conhecer e de agir apresentando o
ponto de vista do artista britânico Steve Macqueen e o seu trabalho Caribs'
Leap/ Western Deep, de 2002 (Basualdo, 2002).
É um trabalho artístico com registo fílmico que cruza, precisamente, tempos
históricos, relações sociais, culturas e espaços, propondo, por um lado, um
trabalho sobre a exploração mineira de ouro na África do Sul cuja execução
cabe, quase exclusivamente, a mineiros negros (sendo a cor da pele confundida
intencionalmente com a escuridão que caracteriza as minas) e, por outro, a
exibição de uma paisagem das Caraíbas, luminosa e contrastante com a escuridão
das minas, que é, numa imagem paralela, completada com corpos que caem. Estes
corpos representam um protesto de um conjunto de habitantes da ilha que, quando
foram colonizados pelos franceses em 1652, optaram por se suicidar a serem
capturados.
Notas
1 O presente texto constitui uma versão sintetizada de uma comunicação
apresentada no Observatório de África e da América Latina, que teve lugar no
dia 15 de Novembro de 2011 na Fundação Calouste Gulbenkian.
2 Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de
Lisboa (CIES-IUL) (Lisboa, Portugal). Instituto de Sociologia da Faculdade de
Letras da Universidade do Porto (ISFLUP) (Porto, Portugal). E-mail:
luisa.veloso@iscte.pt
3 Diversos autores refletiram sobre a obra de Bourdieu neste domínio. V., por
exemplo, os textos de Calhoun (2006) ou de Garcia-Parpet (2006).
4 Um ensaio de aplicação do conceito de campo económico ao caso português pode
encontrar-se em Veloso (2010).