Ciganos e políticas sociais em Portugal
Introdução
A implementação do sistema democrático em abril de 1974 permitiu que pessoas e
famílias de origem cigana vissem reconhecida, de uma forma mais facilitada, a
igualdade perante os direitos de cidadania. No entanto, quarenta anos passados,
continua a verificar-se um profundo fosso entre as condições de vida de muitas
pessoas ciganas, quando comparadas com os restantes cidadãos portugueses. O
objetivo deste texto é apresentar, por um lado, uma recensão das principais
medidas e políticas sociais públicas que constituem um contributo para a
melhoria do quadro de vida dos cidadãos portugueses e, por outro, refletir
sobre os seus impactos nas pessoas e famílias ciganas.
Em Portugal, os ciganos não são institucionalmente reconhecidos nem como
minoria nacional, nem como minoria étnica, não existindo medidas de políticas
públicas dirigidas especificamente a pessoas ciganas. A postura das instâncias
oficiais tem oscilado sobretudo entre o desconhecimento (sobre os seus modos de
vida, a sua dimensão demográfica e o seu contributo social, cultural e
económico) e o não reconhecimento, pelo que urge realizar um diagnóstico social
profundo que permita delinear medidas ajustadas, de modo a gerar transformações
sociais.
Na verdade, a inexistência de reconhecimento dos ciganos ou até o seu incorreto
conhecimento refletem-se em imagens limitativas, deformadas, de inferiorização
e de desprezo, afetando e restringindo negativamente a vida destas pessoas, o
que se configura como mais uma forma de opressão (Taylor, 1998) sobre os
ciganos.
De forma recorrente, não só o senso comum, mas também as instituições oficiais,
continuam a classificá-los como nómadas, acusando-os de parasitismo social e
económico, atribuindo-lhes comportamentos destrutivos do edifício social
(Mendes, 2007; Lopez e Fresnillo, 1995). Por outro lado, são também entendidos
como atrasados em relação à sociedade envolvente e até mesmo entre diferentes
grupos de ciganos há essa acusação, usando elementos explicativos de maior ou
menor resistência à adaptação a novos tempos e aos novos desafios das
sociedades modernas (Lopes, 2008; Magano, 2010).
As pessoas ciganas são também muito frequentemente responsabilizadas pela
deterioração do clima social de convivência nos espaços em que residem
(Mendes, 2007), devido à associação enviesada que os liga ao tráfico de droga,
sendo as pessoas ciganas acusadas de usarem esquemas de vida pouco claros e
legais, o que facilmente se transforma em estereótipos generalizados.
De um modo geral, a cultura cigana continua a ser desconhecida e desvalorizada
na sociedade portuguesa, persistindo imagens marcadas pela estranheza e
diferença (Bochaca, 2003) ' os estranhos internos e também de grande
indiferença perante a perpetuação de situações de pobreza, exclusão social,
racismo e discriminação social, perdurando essas situações de desigualdade face
aos outros cidadãos portugueses (Parlamento Europeu, 2011). Os ciganos são um
grupo que gera uma espécie de indignação consensual (Boltanski, 1999).
Prolifera também muitas vezes a ideia de que os ciganos teimam (e até de que
preferem) viver isolados dos outros cidadãos portugueses, numa espécie de micro
sociedade à parte, regendo-se por regras e leis próprias (Lopez e Fresnillo,
1995). Ora, o que vários estudos têm vindo a demonstrar nos últimos anos é que
não existe homogeneidade cultural entre os diversos grupos ciganos portugueses
e mesmo a descrição de diferentes formas de inserção social, económica e
espacial (Mendes, 2007; Nicolau, 2010; Sousa, 2013). Ou seja, verifica-se a
existência de diferenciações entre quem vive a vida de cigano e outros que
vivem como os senhores2, havendo várias nuances em termos de estilos de vida
(Magano, 2010).
1. Políticas sociais e exclusão
Um dos aspetos que emerge da análise da situação dos ciganos em Portugal é a
falta de conhecimento sobre a população cigana, nomeadamente no que se refere à
sua dimensão (ver quadro1), inscrição geográfica e condições de vida. Em termos
académicos, apesar da produção de alguns estudos etnográficos3, a escassez de
estudos perdurou até meados da década de 1990.
A partir desta data e sobretudo desde 2006 registou-se um incremento da
produção científica em torno dos ciganos portugueses, sendo de realçar os
estudos e as teses de mestrado, mas sobretudo as teses de doutoramento (Costa,
2003; Mendes, 1997 e 2007; Blanes, 2006; Lopes, 2008; Magano, 1999 e 2010;
Sousa, 2010; Nicolau, 2010; Castro, 2004 e 2012; Casa-Nova, 2009). Contudo, a
maioria desses trabalhos são análises qualitativas e têm um caráter micro
localizado em bairros e áreas geográficas específicas, faltando estudos
longitudinais e dados estatísticos sobre as características e condições de vida
dos ciganos portugueses.
Em termos de iniciativas institucionais e perante o escasso conhecimento sobre
a real situação dos ciganos portugueses, é de salientar as audições públicas
realizadas pela Comissão Parlamentar de Ética, Sociedade e Cultura, através da
Subcomissão para a Igualdade de Oportunidades e Família, no âmbito do Ano
Europeu para o Diálogo Intercultural (2008), tendo originado o Relatório das
audições efectuadas sobrePortugueses Ciganos no âmbito do Ano Europeu para o
Diálogo Intercultural.
Os ciganos continuam a ser considerados o grupo étnico mais pobre, com piores
condições habitacionais, menos escolarizado e o principal alvo de racismo e de
discriminação nas sociedades modernas (Comissão Europeia, 2004; Mendes, 2007;
ERRC/Númena, 2007; Bastos, Correia e Rodrigues, 2007). As medidas e políticas
sociais públicas nacionais pautam-se pelo seu caráter universalista e geral,
muitas vezes pouco adequadas às características e necessidades básicas desta
população.
2. Políticas Sociais e Integração
Em Portugal, em 1995, é criado o ACIME - Alto Comissariado para a Imigração e
Minorias Étnicas (em dependência direta do Conselho de Ministros), que tinha
por objetivo promover a integração dos imigrantes e minorias étnicas na
sociedade portuguesa, assegurar a participação e a colaboração das associações
representativas dos imigrantes, parceiros sociais e instituições de
solidariedade social na definição das políticas de integração social e de
combate à exclusão, assim como acompanhar a aplicação dos instrumentos legais
de prevenção e proibição das discriminações no exercício de direitos por
motivos baseados na raça, cor, nacionalidade ou origem étnica. (Decreto-Lei
n.º 27/2005, de 4 fevereiro, Diário da República 1.ª Série ' A, n.º 25).
Mais tarde, em 2007, assiste-se à mudança de designação de ACIME para ACIDI -
Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (Decreto-Lei n.º167/
2007, de 3 de maio). Recentemente, em 2014, esta instituição passou a
denominar- se ACM - Alto Comissariado para as Migrações (Decreto-Lei n.º 31/
2014, de 27 de fevereiro). Neste processo de transformação, em 2007, o termo
minorias étnicas foi suprimido em detrimento da designação diálogo
intercultural que, por sua vez, desaparece também no último rearranjo,
convocando apenas o termo migrações. Esta última alteração procura responder
à necessidade de adequar a orgânica do ACIDI a uma política migratória
moderna. Essa nova orgânica deve aprofundar as políticas de integração dos
imigrantes atuais e futuros e dos respetivos descendentes, tenham ou não
adquirido nacionalidade portuguesa. Deve continuar a desenvolver iniciativas
que reforcem sentimentos e atitudes de consideração mútua, confiança e
cooperação na sociedade portuguesa. E deve ainda, em reforço, responder às
necessidades de uma estratégia de identificação, captação e fixação de perfis
migratórios nacionais e estrangeiros, sem descurar as responsabilidades de um
Estado de Direito em proteger incondicionalmente a segurança e dignidade humana
de qualquer migrante (Decreto- Lei n.º 31/2014, de 27 de fevereiro: 1656),
perdendo gradualmente a vertente dos grupos étnicos e da gestão da diversidade
étnico cultural.
Após a aprovação da resolução de 9 de março de 2011, o Parlamento Europeu
convidou a Comissão Europeia e o Conselho Europeu a adotar uma estratégia
europeia para a integração dos ciganos. Neste contexto e a fim de garantir a
existência de políticas eficazes nos Estados-Membros, o Conselho Europeu propôs
a definição de estratégias nacionais de integração dos ciganos ou, no caso de
já existirem, a sua adaptação para atingir os objetivos da União Europeia (UE)
em matéria de integração dos ciganos. Estes objetivos da UE assentam em quatro
domínios fundamentais e que são também os eixos-chave que orientam a Estratégia
Nacional: o acesso à educação, ao emprego, aos cuidados de saúde e à habitação
(Resolução do Conselho de Ministros n.º 25/2013, Diário da República 1.ª Série,
n.º 75).
Embora não sendo diretamente o público-alvo de nenhuma medida de política
social específica, as pessoas ciganas foram sendo abrangidas por algumas delas.
Entre as diversas áreas das políticas sociais públicas serão aqui avançadas
pistas de análise que se centram apenas em alguns domínios, como sejam a
habitação, a segurança social, a educação e a formação. Nesta sequência
apresenta-se, de seguida, uma inventariação e uma reflexão crítica em torno de
alguns programas e medidas que, nestas áreas, parecem ter produzido efeitos
importantes na (re)configuração social e identitária das pessoas e famílias
ciganas em Portugal.
2.1. Habitação social
A habitação é uma das quatro áreas eleitas pela Estratégia Nacional como
fundamental para operar a integração dos ciganos. No eixo habitação, entre
outros objetivos, é reforçada a necessidade de se promover um acesso não
discriminatório à habitação, nomeadamente à habitação social. Nesta dimensão
importa, para além das questões inerentes à problemática da habitação social,
abordar também as necessidades específicas dos ciganos não sedentarizados (por
exemplo, conseguir acesso a locais de paragem adequados), nomeadamente devido à
persistência de nómadas forçados (Correia, 2012; Bastos, Correia e Rodrigues,
2007; Brazzabeni,2013), sem esquecer também que, em Portugal, ainda existem
pessoas ciganas que não tiveram acesso a uma habitação condigna, vivendo em
acampamentos ou habitações sem condições de salubridade e sem acesso aos
serviços públicos mais básicos (Nicolau, 2010; Comissão Parlamentar, 2008).
Desde 1993, através da implementação do Plano Especial de Realojamento (PER),
concebido como uma solução face às carências habitacionais, com a finalidade
última de proceder à erradicação das barracas e ao realojamento das respetivas
famílias (Decreto-Lei n.º 163/1993, de 7 de maio), muitas famílias ciganas
foram realojadas em bairros de habitação social, permitindo a sua
sedentarização e facilitando a convivência quotidiana em contextos
interculturais.
De acordo com a informação publicada em RAXEN National Focal Point- Housing
Conditions of Roma and Travellers, o PER contribuiu para a redução dos níveis
de segregação dos grupos imigrantes e étnicos (Dias, Farinha e Silva, 2009).
Contudo, há aspetos críticos associados a este programa e já exaustivamente
dilucidados (Guerra, 1994; Malheiros e Mendes, 2007; Pereira et al., 2011),
nomeadamente a forte concentração de ciganos em habitação social e as situações
de vulnerabilidade no pós- realojamento. Acresce ainda que os ciganos estão
também sobre representados em situações de precariedade habitacional. Estima-se
que entre 16% a 31% da população cigana viva em condições precárias, enquanto
os dados sobre o conjunto da população portuguesa apontam para 0,8% da
população a viver nessas condições (Neves, 2013; Comissão Parlamentar, 2008).4
Num inquérito realizado, em 2011, pela European Union Agency for Fundamental
Rights, em onze países-membros, 80% dos ciganos inquiridos pertenciam a
agregados familiares em risco de pobreza, sendo que os níveis mais elevados
foram registados em Portugal (quase 100%), Itália e França. Em particular, no
referente às condições de habitabilidade, nas habitações dos ciganos inquiridos
viviam, em média, mais de duas pessoas num quarto5 . Cerca de 45% dos
inquiridos viviam em habitações que não tinham pelo menos uma das seguintes
instalações básicas: cozinha, casa de banho, chuveiro ou banheira no interior
da habitação e eletricidade. Segundo a Obra Nacional da Pastoral dos Ciganos,
em Portugal, o número de ciganos a viver em barracas e tendas ronda os sete
mil, o que corresponde a 18% da população cigana, para um universo estimado de
cerca de quarenta mil pessoas (Comissão Parlamentar, 2008).6
Em 2011, o Comité Europeu dos Direitos Sociais condenou o Estado português,
tendo por base uma queixa apresentada baseada num trabalho exaustivo do Centro
Europeu para os Direitos dos Ciganos, no terreno entre 2005 e 2011, que
concluiu que a forma como o Governo encara a situação habitacional dos ciganos
é discriminatória. A condenação cita ainda casos particulares de segregação
social e espacial dos ciganos em Portugal (Falcão, 2013), como o do bairro das
Pedreiras em Beja, onde as autoridades locais emparedaram a comunidade cigana
(Neves, 2013: 170-171). Mais recentemente, a organização não-governamental
European Roma Rights Centre, através de uma carta pública, denunciou o despejo
de setenta pessoas ciganas na Vidigueira (European Roma Rights Center, 2014).
Entre as várias intervenções habitacionais a nível nacional, algumas
iniciativas locais foram especificamente dirigidas a pessoas ciganas, como é o
caso do Centro de Estágio Habitacional de Coimbra, criado em 2004 e financiado
pela autarquia. Foi considerada como uma boa prática (Dias, Farinha e Silva,
2009), como solução transitória, de estágio, para a passagem a um
realojamento de longo prazo na cidade (Monteiro, 2009). Em Santo Tirso destaca-
se um projeto piloto para as famílias ciganas de acordo com as tradições '
realojamento étnico (Santos, 2009).
2.2. Segurança social: Rendimento Social de Inserção (RSI)
Desde a sua implementação em 1997, o então Rendimento Mínimo Garantido e atual
Rendimento Social de Inserção (RSI), enquanto medida política de combate à
pobreza, tinha por objetivo a redução da intensidade e da severidade da pobreza
em setores mais vulneráveis. Esta medida consiste numa prestação pecuniária
combinada com um programa de inserção social (Rodrigues, 2009).
Frequentemente os ciganos são acusados de serem subsídio-dependentes,
principalmente face ao RSI. Não há dados disponíveis a nível nacional sobre o
número de beneficiários ciganos, mas os que estão disponíveis não revelam
exatamente essa situação (Branco, 2003). Em 2008, o Instituto de Segurança
Social revelou que 3,9% de famílias ciganas eram beneficiárias (5 275 em 131
428) (Comissão Parlamentar, 2008), sendo de acrescentar que outras fontes
atestam que 35,9% dos ciganos em idade ativa recebem o RSI (Santos et al.,
2009).
Para alguns beneficiários, o RSI é considerado como um rendimento suplementar
cujo usufruto permite manter atividades económicas tradicionais, como o
comércio ambulante. Raramente é visto pelos próprios como uma oportunidade para
mudar o seu trajeto de vida, gerando-se frequentemente situações de
subsidiodependência, havendo casos em que não é possível acumular com qualquer
outra atividade (Santos, 2013).
Em 2012 verificaram-se mudanças na legislação que regula esta medida (Portaria
257/2012 de 27 de agosto, Diário da Republica, 1.ª Série, n.º 165), reforçando-
se o caráter transitório do contrato, constitutivo de direitos e obrigações,
emergindo uma nova perspetiva sobre os direitos, ao exigir-se a procura ativa
de emprego, a frequência de ações de formação profissional e de trabalho ao
serviço da comunidade, enquanto formas de integração socioprofissional.
Apesar de mais de uma década de implementação desta medida de política social,
no caso concreto dos beneficiários ciganos falta aprofundar e avaliar os seus
efeitos. Contudo, é desde já possível equacionar impactos substantivos nas
famílias e nas pessoas ciganas, na medida em que houve uma melhoria das
condições de vida, um prolongamento dos níveis de escolarização das mulheres e
dos seus filhos, um maior acesso dos adultos à educação de adultos e a ações de
formação profissional e um aumento do número de mulheres a solicitar o
enquadramento dos filhos em creches e jardins de infância.
2.3. Alguns programas e medidas nas áreas da Educação e Formação
A partir de 1974, a escolaridade obrigatória estabelecida era até ao 6.º ano,
posteriormente foi prolongada até ao 9.º e recentemente alargou-se ao 12.º ano
(Lei 82/2009 de 27 de agosto, Diário da República, 1ª Série, n.º 166). No
entanto, todos os dados disponíveis apontam para altos níveis de analfabetismo
e absentismo escolar dos ciganos portugueses, mesmo em relação aos seis anos de
escolaridade, o que faz supor tratar-se de uma tarefa difícil a concretização
dos doze anos de escolaridade (AA.VV, 2001a; Bastos, 1999).
Na década de 90 do século passado foi criada a Secretaria Coordenadora de
Educação Multicultural, na qual estava sediado o Secretariado Entreculturas,
que tinha por principal objetivo realizar formação sistemática em educação
intercultural. Neste âmbito foi produzida uma base de dados designada por
Entreculturas com a realização de inquéritos anuais sobre a demografia
multicultural nas escolas públicas, onde eram incluídos alguns dados sobre as
matrículas e frequências escolares de crianças e jovens de origem cigana nas
escolas públicas portuguesas (AA.VV, 2001a; Bastos, 1999). Ainda nesta década,
o Projeto de Educação Intercultural procurou introduzir módulos sobre a
educação intercultural no currículo e materiais educativos interculturais (com
publicações sobre cultura cigana) (AA.VV, 2001b; Equipa de Trabalho do
Entreculturas, s/d; Noronha, 2003).
Em 2007, no contexto do ACIDI é criado um grupo para as comunidades ciganas '
GACI - Gabinete de Apoio às Comunidades Ciganas ' onde foram incluídos seis
membros das comunidades ciganas. Mais recentemente, na sequência da Estratégia
Nacional, foi criado o Grupo Consultivo para a Integração das Comunidades
Ciganas (CONCIG).
Em 2009 foi implementado pelo GACI o Projeto Piloto Mediadores Municipais,
apoiado pelo Governo Português e já com várias edições de formação. Este
programa procura melhorar o acesso das pessoas ciganas aos serviços e
equipamentos locais, bem como promover a igualdade de oportunidades, o diálogo
intercultural e a coesão social, através da colocação de mediadores ciganos nas
câmaras municipais. Já em meados de 1990 tinha havido um Projeto de mediadores
culturais ' Departamento de Educação Básica do Ministério da Educação. No
entanto e de uma forma geral, o que se tem verificado em relação aos
mediadores, independentemente da área de trabalho de inserção, é que, a curto
prazo, acabam por se sentir desencorajados em virtude da falta de condições
estruturais e contratuais que garantam alguma continuidade em termos de
trabalho nas instituições (Pereira, 2008; Loureiro, 2012).
Outro dos objetivos da Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades
Ciganas (ACIDI e Governo de Portugal, 2013) é promover a conclusão da
escolaridade básica de 40% das crianças ciganas do sexo feminino e do sexo
masculino até 2016 e de 60% até 2020, considerando que alguns dados sugerem
que, em alguns Estados- Membros, apenas um número limitado de ciganos crianças
completam a educação básica. A European Agency for Fundamental Rights (EUFRA)
constatou que, apesar de haver uma multiplicidade de programas que procuram
incentivar a escolarização dos ciganos, estes continuam a estar sub-
representados no 1.º ciclo do Ensino Básico nos vários países europeus;
continuam a verificar-se elevados níveis de absentismo e de insucesso escolar,
assim como práticas de segregação e de separação dos alunos ciganos em turmas
específicas (IRS, 2008).
Os últimos dados publicados pelo Gabinete de Informação e Avaliação do Sistema
Educativo do Ministério de Educação em 2003/2004 (Comissão Parlamentar, 2008)
apontam que, no 1.º ciclo, se encontravam 7 216 ciganos, no 2.º ciclo, 857
ciganos, no 3.º ciclo, 217 ciganos e no Ensino Secundário, 34 ciganos . Com o
objetivo de termos uma informação atualizada sobre estes estudantes, foi
solicitada informação ao Ministério de Educação, mas não obtivemos qualquer
resposta.
De uma forma geral, o que nos indicam os estudos disponíveis em Portugal é que
as pessoas ciganas apresentam níveis de escolaridade obrigatória baixos
(enquanto a taxa de abandono é alta) (Bastos, Correia e Rodrigues, 2007;
Mendes, 2007). Em estudos mais recentes confirmam-se algumas destas
observações. Por exemplo, no concelho de Bragança (Trás-os-Montes), o total de
alunos ciganos a frequentar o 1.º ciclo em 2005/2006 era de 53, com elevadas
taxas de insucesso (45%) e de abandono escolar (15%) (Nicolau, 2010). As
mulheres ciganas têm um nível de escolaridade ainda mais baixo do que os homens
sendo raros os casos em que ultrapassam o ensino básico (1.º ciclo). A mesma
situação verifica-se entre ciganos integrados (sob o ponto de vista do
exercício de uma profissão por conta de outrem e sem fazerem modo de vida
cigano), em que as mulheres têm menos anos de escolaridade do que os homens
ciganos (Magano, 2010). Ora, se já era difícil a etapa dos nove anos de
escolaridade obrigatória, com a mudança para os doze anos, em 2009, antevê-se
ainda mais dificuldade em atingir essa etapa, em ambos os géneros. A reprodução
de formas de desigualdade de género em que as meninas ciganas abandonam a
escola geralmente entre os 11 e os 14 anos continua a verificar-se. Os meninos
deixam a escola um pouco mais tarde, em torno dos 16 e dos 18 anos (Mendes,
2012).
2.3.1 Programa Territórios Educativos de Intervenção Prioritária
Este Programa vai já na sua terceira edição, vigente desde 2012, tendo a
primeira e a segunda edições vigorado, respetivamente, a partir dos anos de
1996 e 2006. A partir do Relatório de Avaliação do TEIP 2009-2010 constatam-se
progressos animadores: menos alunos desistiram e mais jovens obtiveram sucesso
no final do ano letivo (Abrantes, Mauritti e Roldão, 2011), verificando-se
ainda um aumento de professores e de técnicos não docentes contratados em que
se incluem mediadores socioculturais, muitos deles ciganos.
O segundo Programa de Territorialização de Políticas Educativas de Intervenção
Prioritária (TEIP) (Despacho de 26 de setembro de 2006) surgiu na sequência de
outras medidas de apoio às populações mais carenciadas e como resposta às
necessidades e expectativas dos alunos mais carenciados, passando de 35 para
105 agrupamentos. Esta segunda fase do programa TEIP teve como objetivo
melhorar a qualidade da aprendizagem do sucesso educativo dos alunos e combater
o absentismo e o abandono escolar precoce. A maioria da população escolar do
programa TEIP enquadra-se no ensino básico, com uma forte incidência no 1.º
ciclo, correspondendo a 36,8% e nos 2.º e 3.º ciclos a 20% e 19,6%,
respetivamente. No Ensino Secundário são integrados apenas 5,5% dos alunos,
enquanto o Pré-Escolar abrange 11,9%. Entre estes estudantes, mais de 10% são
ciganos. Em doze dos programas TEIP há mais de cem alunos ciganos.
Outro dado importante apontado é que metade das famílias dos alunos que
frequentam estas escolas é beneficiária do RSI, sendo que uma percentagem
semelhante diz respeito a alunos que são acompanhados pela Comissão de Proteção
das Crianças e Jovens em Risco (Abrantes, Mauritti e Roldão, 2011).
2.3.2 Programa Integrado de Educação e Formação
Criado em 1999, o Programa Integrado de Educação e Formação (PIEF) é uma
iniciativa conjunta do Ministério da Educação e do Ministério do Trabalho e da
Solidariedade Social e destina-se a menores em situação de abandono escolar ou
de exploração laboral, que estão sob forte risco de exclusão social. O objetivo
é proporcionar a estas crianças uma nova oportunidade para completarem a
escolaridade obrigatória e obterem uma certificação escolar e profissional
(Diário da República, 1.ª Série, n.º 171, 4 de setembro de 2012). Em 2012 o
programa foi alterado, passando a designar-se Programa de Apoio e Qualificação
da Medida PIEF - Programa Integrado de Educação e Formação (PAQPIEF), tendo
como finalidade promover a inclusão social de crianças e jovens mediante a
criação de respostas integradas, designadamente socioeducativas e formativas,
de prevenção e combate ao abandono e ao insucesso escolares, favorecendo o
cumprimento da escolaridade obrigatória e a certificação escolar e profissional
dos jovens (Diário da República, 1.ª série, n.º 171, 4 de setembro de 2012).
Esta medida tem obtido algum sucesso, principalmente ao nível da inserção e
retorno de adolescentes ciganas ao sistema educativo.
2.3.3 Programa Novas Oportunidades
O RSI envolve medidas de educação e de formação, como contrapartida do
benefício da medida. Neste quadro, medidas do Sistema Nacional de
Qualificações7 permitiram a adaptação dos currículos, assim como o
desenvolvimento de estratégias de ensino e modelos para alunos adultos e, em
particular, para contextos específicos das comunidades ciganas (Gomes, 2013).
Destacam-se entre estas medidas de promoção da inclusão social e do
desenvolvimento (Formação para a Inclusão ' Eixo POPH 6), políticas mais
recentes dirigidas à qualificação de adultos (desde 2001), que permitiram a
inclusão dos grupos sociais mais desfavorecidos ' o que pode ser visto como um
movimento inclusivo (Gomes, 2013) ' e o Programa Novas Oportunidades, que visa
o desenvolvimento de outras formas de reinserção no sistema de ensino, pondo em
prática programas adequados. Este programa foi, em 2014, substituído pela Rede
de Centros para a Qualificação e Ensino Profissional (CQEP).
Contudo, continuam por avaliar os efetivos efeitos destas políticas de
educação, nomeadamente no prolongamento dos trajetos escolares das pessoas
ciganas. Seria muito interessante verificar a relação entre a implementação e
receção do RSI, o sucesso destas medidas de política educativa e a elevação dos
níveis de escolaridade das pessoas ciganas.
2.3.4 Programas Escolhas
Este é essencialmente um programa público de âmbito nacional vocacionado para a
promoção da inclusão social de crianças e jovens oriundas dos contextos
socioeconómicos mais vulneráveis (Calado, 2014: 60). A primeira fase de
implementação do Programa Escolhas durou até dezembro de 2003 e teve início em
2001, por via da Resolução do Conselho de Ministros n.º 4/2001. Os seus
objetivos iniciais consistiram na prevenção e inserção de jovens dos bairros
mais vulneráveis ao crime nos distritos de Lisboa, Porto e Setúbal.
O Programa Escolhas de segunda geração foi criado pela Resolução do Conselho de
Ministros n.º 60/2004. Nesta fase foram financiados e acompanhados 87 projetos
a nível nacional, enquadrados nas zonas Norte (33 projetos), Centro (29
projetos) e Sul e Ilhas (25 projetos), tendo abrangido como público-alvo
prioritário crianças e jovens com idades compreendidas entre os 6 e os 18 anos,
provenientes de contextos socioeconómicos mais vulneráveis, particularmente
dos descendentes de imigrantes e minorias étnicas, tendo em vista a igualdade
de oportunidades e o reforço da coesão social (Resolução do Conselho de
Ministros n.º 68/2012).
A terceira fase do Programa Escolhas para o período de 2007 a 2009 (Resolução
do Conselho de Ministros n.º 80/2006) abrangeu 121 novos projetos. Em 2007, o
Programa Escolhas passa a estar integrado no ACIDI.
O Programa Escolhas de quarta geração decorreu entre 2010-2012, com a
implementação de 130 novos projetos e 10 projetos experimentais. No relatório
de avaliação do programa Escolhas de quarta geração apurou-se que 16% dos
jovens abrangidos são ciganos portugueses, 22% são descendentes de imigrantes e
que a maioria (62%) é composta por outros jovens portugueses. Os ciganos são
envolvidos em 69 projetos (53,9% do total), o que corresponde a 1 956 crianças
e jovens. Em termos relativos, há mais projetos no Norte e no Centro de
Portugal, os quais têm como beneficiários famílias ciganas (70,8% contra uma
média de 65,1%) (Saint-Maurice, Costa e Guerra, 2011).
Atualmente encontra-se em curso a quinta geração do Programa Escolhas 2013-2015
(Resolução do Conselho de Ministros n.º 68/2012), com a aprovação de 113
projetos, sendo que cerca de 85 abrangem crianças e jovens ciganos. Entre as
ações a desenvolver destaca-se, pelo seu impacto junto dos jovens e das
famílias ciganos a promoção da inclusão escolar e da educação não formal,
nomeadamente como um dos cinco eixos prioritários do Programa Escolhas (Calado,
2014: 73).
Notas finais
Por esta breve incursão pelas medidas e políticas públicas sociais verificámos
que não existem medidas específicas dirigidas a ciganos. No entanto, há
diversas medidas gerais que abrangem pessoas ciganas, mas que apresentam
resultados pouco concretos, constatando-se alguma incapacidade política para
fomentar medidas dirigidas às necessidades das pessoas ciganas. O universalismo
das políticas sociais (que visa a dignidade para todos os cidadãos) não tem
surtido os efeitos desejados na redução dos níveis de pobreza, exclusão,
discriminação e racismo face aos ciganos.
Um aspeto que surge como relevante é a pouca formação de pessoas ciganas, sendo
que a aposta na formação de mediadores de origem cigana poderia ser uma via
para envolver as escolas e instituições públicas e as famílias ciganas. Apesar
das várias formações de mediadores há ainda por resolver a questão do estatuto
da carreira profissional, o que bloqueia a possibilidade de inserção
profissional.
Embora sejam desconhecidos dados concretos sobre o impacto das políticas
públicas são percetíveis os efeitos positivos de medidas como o RSI ao nível do
retorno e retenção de crianças, jovens e até de adultos no sistema escolar,
pesem embora as limitações ainda existentes. A relação entre políticas sociais
e políticas de qualificação de adultos pode ser perspetivada como um
instrumento poderoso no combate à pobreza e exclusão social (Gomes, 2013).
As mudanças (in)visíveis e subjacentes a processos plurais de reconfiguração
social têm implicações em várias dimensões das vidas das pessoas ciganas. Hoje
em dia há mais mulheres ciganas que continuam a sua trajetória escolar, no
ensino regular ou através de programas de educação alternativa (ainda que de
forma discreta). É importante conhecer em profundidade os percursos de vida
dessas mulheres e como é que elas conciliam essa estratégia emancipatória com
os seus contextos familiares e conjugais, e qual a influência nos modos de
vida. Interessa-nos aprofundar o conhecimento do impacto das políticas sociais
na integração dos ciganos e a transformação dos papéis sociais e das relações
de género nas famílias ciganas, a partir do ponto de vista dos próprios
protagonistas.
Notas
1 Este texto resulta de uma comunicação oral apresentada no Painel 56 ' Ciganos
e políticas públicas em Portugal, Espanha e Brasil ', coordenado pelas autoras
e que decorreu no V Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia, entre 8
e 11 de setembro 2013, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, e tem
por base alguns dos resultados preliminares derivados da pesquisa que está em
curso no âmbito do projeto Fatores-Chave para o sucesso e continuidade dos
percursos escolares: indivíduos, famílias e políticas públicas, financiado pela
Fundação para a Ciência e a Tecnologia, referência PTDC/IVC-PEC/4909/2012 e
desenvolvido em parceria entre o CEMRI-Uab e o CIES-IUL.
2 Expressão usada por ciganos para se referirem a não ciganos.
3 Adolfo Coelho (1995 (1892)), Leite de Vasconcelos (1958) e Nunes (1996
(1981)).
4 Tais valores aproximam-se dos aventados num estudo do Centro de Estudos
Territoriais do ISCTE-IUL, em que se estima que existam 6 516 ciganos a viverem
em condições precárias de habitação, sejam estas fixas ou móveis (CET/ISCTE
(2009).
5 Em Lisboa, por exemplo, nos bairros municipais (habitação de caráter social)
viviam 760 famílias, 3 296 pessoas, sendo que 29% (1/4) das famílias ciganas
viviam em sobreocupação (CET/ ISCTE, 2009).
6 Comissão Parlamentar de Ética, Sociedade e Cultura (2008), Subcomissão para a
Igualdade de Oportunidades e Família, Relatório das audições efetuadas sobre
Portugueses Ciganos no âmbito do Ano Europeu para o Diálogo Intercultural.
7 RVCC, Cursos EFA, Formação Modular de Programas de formação certificada em
Competências Básicas.