O desenvolvimento de competências na atividade coletiva de trabalho dos
enfermeiros
1. INTRODUÇÃO
O estudo que apresentamos foi realizado no Serviço de Cirurgia Geral de um
Hospital Público português e o seu objetivo inicial foi descrever o trabalho
real dos enfermeiros: as estratégias desenvolvidas para realizar as tarefas,
diversificadas e em constante interação, num contexto complexo e mutável.
Algumas tentativas para descrever as tarefas do enfermeiro haviam surgido em
1994 com o objetivo de estabelecer padrões de qualidade no trabalho de
enfermagem nas quais os enfermeiros não reviam a sua atividade. Tornou-se,
assim, evidente a dificuldade de avaliar a qualidade e a importância do estudo
da atividade do enfermeiro na sua interação com um contexto particular. O
estudo iniciou-se sem qualquer pedido por parte da Direção do Hospital mas ao
longo da sua realização fomos obtendo a colaboração dos enfermeiros, a sua
disponibilidade e o seu enorme entusiamo para comentar e explicar a atividade,
as dificuldades sentidas, os problemas encontrados e as soluções parciais para
os resolver, as propostas para melhorar a realização do trabalho, os
conhecimentos utilizados. Durante aproximadamente 2 anos permanecemos quase
diariamente no Hospital e participamos na experiência de trabalho dos
enfermeiros, observamos a realização da atividade e efetuamos pequenas
entrevistas durante a sua realização. Esta interação diária com os enfermeiros
foi fundamental na nossa reflexão teórica que partiu de questões de Psicologia
Cognitiva fundamentais para aprofundar duas características do trabalho do
enfermeiro: a complexidade e a dinâmica. O quadro teórico apoiou-se numa
abordagem cognitiva das competências, não dominante em Psicologia, defendida
por vários autores (Fischer & Bidell, 2006; Pinsky & Theureau, 1982;
Weill-Fassina, 1993): a competência é uma organização atual, uma ação
intencional e organizada num contexto específico favorecendo o desenvolvimento,
não linear e não determinado. Assim, é possível explicar porque é que o
trabalhador põe em prática diversos saberes e saberes-fazer na realização de
uma tarefa em diferentes contextos, manifestações da competência, assim como a
sua progressiva organização em níveis de concetualização mais abstratos.
Através da nossa abordagem empírica pretendemos ilustrar o quadro teórico de
que partimos, particularmente a hipótese desenvolvimental de uma continuidade e
complementaridade entre as perspetivas macro e microgenética sobre a formação
de competências. A articulação das duas perspetivas possibilitou uma primeira
abordagem do desenvolvimento do saber na e para a ação no contexto do trabalho
de enfermagem: como é que o conhecimento organizado por e para uma determinada
situação evolui ao longo da vida profissional? As experiências vividas
possibilitam o controlo da ação que se torna mais eficaz e ajustada às
situações? As experiências vividas proporcionam uma outra leitura da ação em
situação? O saber, organizado por e para uma situação concreta, torna-se mais
abstrato e menos dependente das situações concretas no decorrer da vida
profissional? a ação, mais ajustada às características da situação integra a
imprevisibilidade das situações? Como podemos caracterizar a gestão da
imprevisibilidade na planificação?
Foram estas interrogações teóricas que orientaram a segunda fase do nosso
estudo, após os dois anos iniciais, durante a qual realizamos registos áudio
visuais da passagem de turno utilizados posteriormente em situação de simulação
da passagem de turno. Esta metodologia possibilitou uma abordagem mais precisa
e sistemática da atividade do enfermeiro e uma primeira proposta de
formalização das estratégias de prestação de cuidados e registos de
funcionamento no planeamento das ações de prestação de cuidados. O estudo que
apresentamos é uma tentativa de descrever, de forma necessariamente sintética,
o trabalho de investigação realizado.
2. A TRANSFORMAÇÃO DA COMPETÊNCIA: ADAPTAÇÃO A UM CONTEXTO OU CONSTRUÇÃO DE
NOVAS COMPETÊNCIAS E CONTEXTOS?
A conceção da competência como estrutura supõe a formação e a transformação da
competência através da ação num processo de apropriação. Esta perspetiva, já
presente nos trabalhos de Piaget (1975), levanta questões fundamentais e gerais
sobre a interdependência da ação e do conhecimento: o conhecimento e o ato de
conhecer são separados? Os significados são construídos na atividade de
conhecer? Qual o papel do contexto na atividade de conhecer?
Na Psicologia do Trabalho estas questões são debatidas nomeadamente nos estudos
realizados no âmbito da Ergonomia da Atividade. Na discussão os autores
interrogam-se sobre a noção de competência: ação intencional e organizada num
contexto ou ação atualizada num contexto?
As duas abordagens distinguem-se na forma como concebem a cognição: a cognição
é o conhecimento? o conhecimento e a representação são distintos? O
conhecimento é independente da experiência do sujeito e a representação depende
da experiência? Ou o conhecimento e a representação coincidem e o sujeito
constrói os seus conhecimentos e representações através da sua experiência.
Neste último caso, o conhecimento e as atividades de conhecer não são separados
e existe, por isso, uma relação entre conhecimento e experiência, perspetiva
defendida por Weill-Fassina (1993). Para a autora o conhecimento e o ato de
conhecer é uma construção permanente do mundo conduzindo este debate a uma
outra interrogação: os significados, a intencionalidade é construída no
contexto da ação ou ela é predefinida e, sendo assim, a ação é pré organizada?
Pinsky e Theureau (1982) distinguiram o processo de construção de significados
em situação do processo de tratamento da informação propondo a noção cours
d'action para a análise da atividade. Os autores salientaram a importância das
relações que o trabalhador constrói, no decurso da atividade, entre ações,
comunicações e interpretações organizando permanentemente a sua ação. O
coletivo de trabalho e o contexto social são fundamentais na formação da
competência sendo o processo de formação da competência mais do que uma simples
adaptação ao meio social. O processo de formação é, também, a criação de um
novo contexto social e a criação de novos sentidos e novas relações nesse meio.
Strauss, Schatzman, Bucher, Ehrlich e Sabshin (1992) nos estudos que conduziram
em contexto hospitalar salientaram que no funcionamento de um hospital existe
um espaço de contingência negociado através de relações intersubjetivas que
evoluem no tempo. Para Clot (1995), este espaço de troca interpsíquica das
atividades estaria na origem de um trabalho intrapsíquico, e estas passagens do
coletivo ao individual seriam fundamentais para compreender como é que a
atividade pode ser desenvolvida e como é que novas competências se formam.
Inspirado na obra de Vygotsky (1934, 1996), Clot (1995) propôs a noção de
desenvolvimento potencial para explicar que na realização do trabalho existe um
espaço potencial de ação que é utilizado pelo trabalhador para atribuir novos
significados às atividades e construir, assim, novas competências.
Os estudos empíricos, realizados no domínio da Ergonomia da Atividade, sobre a
cooperação e a comunicação no trabalho, ilustraram como é que determinadas
práticas coletivas no trabalho favorecem a apropriação do real, o movimento do
trabalhador na sua zona de desenvolvimento potencial (Clot, 1995) e em
consequência a construção de novas competências. Por exemplo, Grusenemyer
(1996), Cahour e Salembier (1995), Falzon (1989), estudaram a cooperação
através da análise da comunicação no grupo de trabalho. Nesta perspetiva a
comunicação é considerada um ato de linguagem (Searle, 1979), um ato com uma
intencionalidade que supõe a transformação do locutor, a transformação do
interlocutor e das suas relações. Grusenemyer (1996) evidenciou os processos de
ajustamento e a construção de representações funcionais partilhadas através da
análise dos diálogos de trabalhadores durante a passagem de turno. Cahour e
Salembier (1995), Falzon (1989) salientaram, nos diálogos entre peritos e
principiantes, a construção de um modelo do interlocutor, os seus objetivos e
conhecimentos, e as dificuldades e os erros de diagnóstico que surgem quando
cada uma das partes não possui uma representação da outra.
Esta atividade de ajustamento e de cooperação é um processo de transformação
horizontal da estrutura dos conhecimentos para a ação, existe transformação da
competência no sentido da variabilidade. Este processo é acompanhado por um
outro através do qual ocorrem transformações, da estrutura dos conhecimentos,
no sentido da abstração.
3. O DESENVOLVIMENTO DE COMPETÊNCIAS: A PERSPETIVA MACROGENÉTICA E
MICROGENÉTICA
Se articularmos a abordagem apresentada sobre o conhecimento e a representação
e a sua construção através da ação intencional em situação, ilustrada através
de alguns estudos empíricos realizados no domínio da Ergonomia da Atividade,
com as questões sobre os processos de formação das competências, compreendemos
a transformação das competências não só na sua variabilidade mas também do
ponto de vista do seu desenvolvimento. A formação de competências ocorre
através da interdependência de dois processos: o processo microgenético e o
processo macrogenético (Weill-Fassina, 1993). Neste mesmo sentido e mais
recentemente, Pastré (2007) salientou duas dimensões da atividade - produtiva e
construtiva. Apesar de distintas, as duas dimensões são inseparáveis combinando
conhecimentos organizados e desenvolvidos ao longo da vida profissional
(dimensão produtiva) com conhecimentos sobre a atividade desempenhada pelo
trabalhador num momento e contexto especifico (dimensão construtiva). A
articulação das duas dimensões possibilita a reconstrução dos saberes
profissionais e das situações de trabalho.
Na explicação microgenética é fundamental a tese funcionalista da teoria de
Piaget (1975) sobre a transformação das estruturas cognitivas. O processo
microgenético revela como é que os conhecimentos e as representações se
transformam em períodos de tempo muito curtos e no decurso da atividade. Neste
processo salienta-se o papel ativo do trabalhador, o seu funcionamento
adaptativo em contextos muito específicos, instáveis e povoados de
acontecimentos inéditos (Pastré, 2011). Nestes contextos, o conhecimento torna-
se generalizado e diferenciado e, assim, temos uma contribuição importante para
esclarecer a aparente incongruência das duas características da competência: a
competência é particular a um contexto e simultaneamente pode ser aplicada em
situações diversas. Porque a transferência não se reduz a um processo de
generalização do qual resultam invariantes, a transferência implica processos
de descontextualização mas também de recontextualização das invariantes
(Roussel, 2011). Como consequência, a organização da ação é caracterizada por
uma maior distância relativamente às situações concretas e pela compreensão do
“porquê não se faz de outro modo” (Samurçay & Pastré, 1998, p. 108). Os
conhecimentos são organizados em classes de situações mais ricas que incorporam
a variabilidade das situações. A compreensão do “porquê não se faz de outro
modo” revela a diferenciação do conhecimento, o seu ajustamento nas situações
concretas. Compreende-se o que distingue as diversas situações, condições e
constrangimentos e, em consequência, utiliza-se o conhecimento mais ajustado à
especificidade de cada situação. Estas características são frequentemente
observadas na realização de tarefas por peritos. Por exemplo, estudos que
comparam os menos experientes com os mais experientes na realização de uma
tarefa mostram que, os trabalhadores menos experientes prestam pouca atenção à
especificidade das situações, às variações e aos imprevistos no trabalho
(Delgoulet, 2015). Nos menos experientes verifica-se, também, um acesso menos
rápido aos conhecimentos e os seus raciocínios são caracterizados por um baixo
nível de abstração, baseiam-se nos traços de superfície das situações e são
muito dependentes das condições de trabalho em que se encontram (Delgoulet,
2015). Segundo Weill-Fassina (2010), os mais experientes integram um número
cada vez maior de elementos da situação progressivamente menos confundidos e
dependentes da ação concreta.
O processo macrogenético descreve os vários patamares, estruturas, na formação
do conhecimento durante longos períodos de tempo, ao longo da vida
profissional. Trata-se de um processo de controlo da ação que implica a
conceptualização ao longo da vida profissional sendo fundamental o contexto. O
contexto de trabalho (regras, instrumentos, colegas, chefes, clientes)
estabelece objetivos a atingir, constrangimentos a contornar, regras a seguir,
proporciona a partilha de conhecimentos com os outros, etc. Neste processo, o
controlo da ação é um processo de ajustamento criativo ao contexto de trabalho,
um processo de confronto e compromisso entre decisões, ações e a observação dos
seus efeitos e, em consequência, é um processo de transformação das tarefas no
sentido da sua realização eficaz.
4. O TERRENO DO ESTUDO
4.1 Caracterização do Serviço de Cirurgia Geral
O Serviço de Cirurgia Geral está integrado num Hospital Público constituído por
17 Serviços: três Serviços de Cirurgia Geral e um Serviço de Especialidades
Cirúrgicas (os 4 Serviços pertencem ao Departamento de Cirurgia), três Serviços
de Medicina, dois Serviços de Ortopedia, um Serviço de Pediatria, um Serviço de
Neonatologia, um Serviço de Consulta Externa, um Serviço de Obstetrícia e
Ginecologia, Unidade de Cuidados Intensivos, Bloco Operatório, Urgência e
Esterilização. O Serviço de Cirurgia Geral assegura os cuidados e tratamentos
pós cirúrgicos a doentes submetidos a cirurgias gerais (tubo digestivo, mama,
tiroide e vascular venosa) programadas ou de urgência. Podem ainda ser
prestados cuidados e tratamentos necessários ao estabelecimento de um
diagnóstico médico, habitualmente designados de doentes para estudo. O período
de internamento dos doentes é, em média de 8,2 dias. A equipa de saúde é
constituída por um diretor de departamento, cinco médicos, um enfermeiro chefe,
21 enfermeiros, 8 auxiliares de ação médica e é apoiada por um secretário de
unidade (comum aos 4 serviços de cirurgia). O Serviço de Cirurgia Geral dispõe
de uma capacidade máxima de internamento de 34 doentes, as 34 camas estão
distribuídas por 10 enfermarias de 3 camas cada uma e quatro quartos
individuais (isolamentos)
4.2 A qualidade
No período em que decorreu o estudo, o processo de acreditação para a prestação
de cuidados com qualidade era um tema ainda embrionário no Serviço de Cirurgia
Geral em estudo. A preocupação com a qualidade na prestação dos cuidados
encontrava-se na prática diária dos enfermeiros, principalmente na forma como o
trabalho é organizado. Vários atores ligados à prestação de cuidados
(enfermeiros do serviço, enfermeiros professores orientadores dos estágios de
enfermagem no serviço, alunos de enfermagem) e responsáveis do Hospital
envolviam-se em discussões sobre a qualidade e a humanização dos cuidados de
enfermagem e de saúde. Esta preocupação tornou-se manifesta ao nível das
práticas a partir de 1994, período no qual se passou de uma prestação de
cuidados à tarefa para uma prestação de cuidados pelo método individual.
Segundo os vários intervenientes, esta transformação na forma de organizar o
trabalho permitia criar relações de maior proximidade entre o enfermeiro e o
doente e o melhor aproveitamento dos recursos da instituição. Na realidade, as
transformações na organização do trabalho tiveram um impacto importante
principalmente ao nível da colaboração entre enfermeiros tornando a sua
atividade mais conceptual. Passou-se de situações de colaboração (Savoyant,
1984) nas quais são partilhadas tarefas prescritas para o mesmo doente, a
situações de cooperação distribuída (Rogalsky, 1994). Nesta nova fase, os
enfermeiros colaboram desempenhando individualmente tarefas de prestação de
cuidados ao mesmo doente, em turnos diferentes, e participam, deste modo, na
realização de uma tarefa com um objetivo comum mais global - a manutenção de um
padrão de saúde de um doente. Uma importante caraterística na nova forma de
colaboração é que múltiplas pessoas participam na realização de objetivos mais
globais e, por isso, a discussão sobre os cuidados a prestar ao mesmo doente,
nos diversos turnos, torna-se fundamental. Estas relações de cooperação
distribuída são apoiadas por práticas de trabalho reconhecidas, por exemplo a
passagem de turno. Neste contexto de valorização dos conhecimentos e da prática
de enfermagem, decorria, simultaneamente, no hospital um estudo sobre a
qualidade dos cuidados de enfermagem, sob a orientação da Direção Geral dos
Hospitais e integrado num programa de cooperação com a Organização Mundial de
Saúde. O estudo procurava implementar uma metodologia e um modelo para a
atividade do enfermeiro. A metodologia, o processo de enfermagem, propõe quatro
etapas lógicas sucessivas na prestação de cuidados com qualidade (identificação
de problemas de enfermagem, planeamento, execução e avaliação dos cuidados de
enfermagem), salientando-se a importância dos conhecimentos de enfermagem em
cada etapa (o modelo). Mas a metodologia e o modelo propostos encontravam
vários obstáculos para a sua implementação e as principais razões relacionavam-
se com a necessidade de redefinir os problemas de enfermagem, colocando
importantes questões ao nível dos conhecimentos de enfermagem aprendidos na
escola, reorganização das tarefas de enfermagem no hospital e da relação dos
enfermeiros com outros profissionais de saúde e com o coletivo mais amplo do
hospital. Salienta-se a importância da recolha de dados sobre os contextos da
atividade e é prevista uma forma lógica de lidar com os problemas humanos, no
entanto não é considerada a possibilidade de construção dos significados e do
sentido da atividade na interação com o contexto. Como vários enfermeiros o
afirmam “quando utilizamos o processo de enfermagem voltamos à escola” porque a
atividade do enfermeiro não se limita a um conjunto de etapas de raciocínio
aplicáveis a situações predefinidas, visíveis e lógicas. A atividade é uma
construção única que concilia o rigor dos conhecimentos e do raciocínio,
características do processo de enfermagem, com a pertinência do significado da
ação em situação. É esta construção que muitos enfermeiros pretendiam ver
desenvolvida na passagem de turno e noutras práticas de enfermagem através de
relações de cooperação distribuída mas que, por motivos ligados à escassez de
recursos (por exemplo, falta de pessoal) e reduzida influência da enfermagem no
funcionamento do hospital, acabam por ser pouco valorizadas e, em parte,
substituídas por práticas mais burocráticas na organização da prestação de
cuidados. São estas práticas na passagem de turno que procuramos descrever em
4.3.. Em síntese, as transformações na organização do trabalho tornaram a
atividade do enfermeiro mais conceptual e, simultaneamente, a implementação de
uma abordagem lógica, técnica e predefinida dos cuidados contribuiu para fechar
o enfermeiro num conjunto de receitas e procedimentos com pouco sentido para a
sua prática. Foi neste contexto que iniciamos o nosso estudo de descrição do
trabalho do enfermeiro, procurando salientar duas características: a
complexidade e a dinâmica.
4.3 O trabalho do enfermeiro: um trabalho complexo e dinâmico
O trabalho diário do enfermeiro tem duas fases distintas, a prestação de
cuidados e a passagem de turno. A prestação de cuidados obedece às normas
próprias do hospital e do serviço, às rotinas e protocolos. As rotinas, “o que
se faz todos os dias, com tempos marcados e atividades marcadas”, são mais
frequentes no turno da manhã que se inicia com a prestação de cuidados
especiais (avaliação de temperatura, glicemia, etc.) seguindo-se a prestação de
cuidados de higiene e administração da medicação, realização de pensos,
administração da medicação, posicionamentos e termina com o registo escrito de
alterações nos processos do doente. Os protocolos são criados pelos enfermeiros
e, nalguns casos, são negociados com a equipa médica, estabelecem os
procedimentos a seguir em determinadas situações, as condições para a sua
aplicação (quando e em que circunstâncias) e os limites de atuação dos
enfermeiros. O conhecimento dos protocolos é mobilizado nas situações de rotina
ou na procura de respostas e soluções para as situações inesperadas
relacionadas quer com o estado do doente quer com acontecimentos do serviço
(por exemplo, se o doente tem dor o enfermeiro pode administrar um analgésico).
A passagem de turno é um período de encontro entre os enfermeiros que terminam
o turno de trabalho e os enfermeiros que iniciam o novo turno. Tem uma duração
aproximada de trinta minutos e realiza-se três vezes por dia: passagem de turno
das 8h, passagem de turno das 16h e passagem de turno das 24h. O objetivo deste
período de trabalho é a transmissão e discussão das informações relativas aos
doentes, funcionamento do Serviço e Hospital. Estas informações são
apresentadas oralmente pelo enfermeiro que termina o turno de trabalho. No
entanto, devido principalmente à duração deste momento, trinta minutos para
transmitir informação relativa a trinta e quatro doentes, a passagem de turno
acaba por se reduzir, frequentemente, à transmissão de informação. Os cuidados
prestados e a prestar raramente são objeto de discussão e a transmissão de
informação tem uma função fundamental: coordenar as ações entre os vários
elementos da equipa de saúde que prestam cuidados nos diferentes turnos
assegurando-se a qualidade dos cuidados. A passagem de turno apoia-se em
diferentes informações:
— registos escritos que descrevem a evolução do estado do doente desde o inicio
do internamento – o processo do doente; o processo do doente inclui, entre
outros registos, as notas de enfermagem que, para alguns doentes, escolhidos
aleatoriamente pelos enfermeiros, são organizadas segundo o processo de
enfermagem;
— registos escritos que fornecem uma visão rápida, global e sintética do estado
do doente durante um turno, atualizada em todos os turnos (plano coletivo de
cuidados);
As notas de enfermagem são, em conjunto com o plano coletivo de cuidados, um
dos principais meios de comunicação dentro da equipa de enfermagem e com a
equipa de saúde (médicos e auxiliares de ação médica).
Durante o turno, os enfermeiros procuram seguir o plano que cada um estabelece
durante a passagem de turno mas esta organização pode ser posta em causa por
acontecimentos imprevistos que exigem um ajustamento constante da atividade à
evolução do estado do doente e às ações dos outros elementos da equipa de
saúde. Principalmente no turno da manhã numerosos imprevistos surgem e
perturbam o plano inicial sendo os mais frequentes as altas médicas não
previstas, as entradas não programadas para cirurgias, que implicam um conjunto
de tarefas administrativas e ocupam uma grande parte do tempo de trabalho
(preenchimento de papéis, contato com as famílias, informação do doente, etc.)
e a vigilância das alterações do estado do doente. Como refere uma enfermeira:
“Por vezes planeamos muitas coisas, às vezes planeamos e executamos ao mesmo
tempo e outras vezes fazemos planeamentos encadeados, estamos a pensar uma
coisa e surge outra para fazer, temos de estar sempre a fazer isto senão perde-
se muito tempo e não conseguimos fazer tudo”.
Por isso a atividade do enfermeiro é complexa e dinâmica (Hoc, 1996). Complexa
porque obriga num determinado momento a considerar múltiplos elementos, em
interação, para avaliar o estado do doente e agir. É assim que uma enfermeira
que regressa ao serviço depois de três folgas consecutivas, comenta, no fim da
passagem de turno, as atividades de prestação de cuidados que vai iniciar:
“Não conheço os doentes e os colegas não os apresentaram durante a passagem de
turno, por isso estou a ver os diagnósticos, os cuidados iniciais, o que foi
feito ontem, como se alimentaram para poder planear o que vou fazer e conhecer
melhor os meus doentes”.
Os dados que o enfermeiro dispõe para avaliar, estabelecer objetivos, realizar
intervenções, são inseridos num contexto institucional, na história passada e
atual do doente que raramente apresenta um único problema mas uma
multiplicidade de problemas que interagem e resultam num sinal, num sintoma
específico, numa queixa que, também, evolui no tempo, obrigando a um complicado
trabalho de articulação. A articulação com outros Serviços do Hospital não é
fácil, cada um tem as suas regras de funcionamento (horários, procedimentos,
registos de enfermagem, uma linguagem própria, etc.) obrigando a um complicado
trabalho de articulação. Uma enfermeira comenta do seguinte modo o problema de
um doente que acaba de entrar no Serviço, enviado pelo Serviço de Urgência:
“Eu conheço este doente, esteve internado em Setembro aqui e conheço os seus
problemas sociais. Sei que entrou com uma úlcera duodenal no Serviço de
Urgência e eu tenho de falar com o marido, vigiar as perdas hemáticas, ela tem
prescrição de entubação nasogástrica, mas não percebo nas notas de enfermagem
da urgência se esteve entubada e retirou, se não esteve entubada, não percebo o
que se passou, tenho de falar com os meus colegas (do serviço de urgência)”.
Por isso, a atividade também é dinâmica, o estado do doente evolui
continuamente em parte, de forma espontânea e, em parte, dependente das ações
de enfermagem, ou outras, que sobre ele são exercidas. O enfermeiro enfrenta,
assim, a imprevisibilidade dos efeitos das ações próprias e dos outros, da
evolução do estado do doente e da sua combinação.
Estas características da atividade justificam o estudo da planificação da ação,
realizada durante a passagem de turno, segundo a perspetiva macrogenética e
microgenética.
5. METODOLOGIA
5.1 Objetivos e caracterização dos participantes
No estudo da planificação durante a passagem de turno foram definidos três
objetivos específicos:
— Caracterizar a atividade de planificação das ações prescritas e não
prescritas, propondo uma grelha para a sua análise;
— Compreender o papel da antiguidade no Serviço e dos conhecimentos na
planificação da ação prescrita e não prescrita;
— Compreender o papel da antiguidade no Serviço e da incerteza na atividade de
planificação das ações não prescritas.
A escolha de um Serviço de Cirurgia Geral deveu-se à possibilidade de conciliar
a recolha de dados com os nossos objetivos; o que exigia, principalmente:
— a disponibilidade dos enfermeiros para participarem na recolha de dados - a
sua autorização para a realização de observações do trabalho em contexto real,
para a prestação de esclarecimentos e informações sobre a atividade observada e
para a realização de entrevistas sobre a passagem de turno;
— a autorização de todos os elementos da equipa de saúde do Serviço,
enfermeiros, médicos e auxiliares de ação médica, para a realização das
gravações audiovisuais da passagem de turno;
— a autorização do Hospital para a nossa permanência na instituição, para a
gravação audiovisual do trabalho de enfermagem em contexto real e para a
consulta de documentos e informações sobre os doentes.
No conjunto dos 21 enfermeiros do Serviço de Cirurgia Geral, participaram
voluntariamente na realização da simulação da passagem de turno e das
entrevistas nove enfermeiros. A escolha dos nove enfermeiros deveu-se,
simultaneamente, a dois critérios:
— a experiência profissional no serviço, de acordo com a antiguidade no
Serviço;
— a participação na respetiva passagem de turno real.
A antiguidade no Serviço
A antiguidade foi considerada constituindo-se três classes de antiguidade com
três enfermeiros cada:
A – experiência de trabalho no Serviço entre um ano e sete meses e quatro anos
e cinco meses, formação no nível do bacharelato e categoria profissional
enfermeiro
B – experiência de trabalho no Serviço entre cinco anos e seis meses e dez anos
e um mês, formação ao nível do bacharelato e na categoria profissional
enfermeiro.
C – experiência de trabalho no Serviço entre dez anos e dez meses e treze anos
e seis meses; no conjunto dos três enfermeiros pertencentes a esta classe de
antiguidade, dois têm uma formação ao nível do bacharelato e um enfermeiro
possui a licenciatura em enfermagem; os três situam-se na categoria
profissional de enfermeiro graduado.
Escolhemos agrupar os enfermeiros em três classes de antiguidade com o objetivo
de caracterizar um momento intermédio do seu percurso profissional, durante o
qual podem ocorrer acontecimentos distintos dos que caraterizam o início e as
fases mais tardias deste percurso. Por outro lado, procuramos, no conjunto dos
vinte e um enfermeiros, incluir em cada classe de antiguidade, o mesmo numero
de enfermeiros com antiguidades no Serviço e na Instituição próximas e,
simultaneamente, mais distantes relativamente à(s) classe(s) de antiguidade
anterior(es) e seguinte(s). Considerando as características da antiguidade no
Serviço e na Instituição no conjunto dos enfermeiros do Serviço, este último
critério foi atingido apenas parcialmente.
A participação na passagem de turno real
Para a realização da passagem de turno simulada e entrevistas, escolhemos
enfermeiros que não participaram na passagem de turno real, correspondente. Uma
vez que pretendíamos comparar enfermeiros de acordo com a sua experiência
profissional no serviço, a informação deveria ser igual para todos os
enfermeiros que participaram na passagem de turno simulada e, por isso, estes
deveriam ser confrontados com a mesma situação de trabalho. Assim, as
informações orais e outras, recolhidas e retidas, relativas à atividade
realizada em turnos imediatamente anteriores à passagem de turno, fundamentais
na procura de informação, nas interpretações que realiza e nas decisões que o
enfermeiro toma durante a passagem de turno, deveriam ser controladas. Por
isso, para além dos casos dos doentes terem sido iguais para cada uma das
classes de antiguidade (o mesmo número de doentes, diagnósticos e os seus
estados no momento da passagem de turno) procuramos, também, que a informação
oral e retida sobre a atividade, nos turnos imediatamente anteriores e
posteriores à passagem de turno real, fosse igual para todos os enfermeiros.
Distanciamos, por isso, no tempo as passagens de turno reais e a sua simulação
(a passagem de turno simulada foi realizada um mês após a realização da
correspondente passagem de turno real) e escolhemos enfermeiros que não haviam
participado na passagem de turno real. Consideramos que, desta forma, os
enfermeiros dispunham da mesma informação escrita disponível, no momento da
passagem de turno simulada, e a informação não escrita, sobre aspetos
específicos dos doentes ou das situações de trabalho nos turnos imediatamente
anteriores ou posteriores à passagem de turno real, não seria recordada pelo
enfermeiro, durante a passagem de turno simulada, uma vez que este não havia
participado na passagem de turno real.
Para cada um dos enfermeiros a simulação realizou-se com base numa passagem de
turno real (manhã ou tarde ou noite) e a entrevista conceptual baseou-se na
apresentação de informação relativa, somente, a três casos de doentes
apresentados nessa passagem de turno real.
No quadro_1 apresentamos a distribuição dos enfermeiros das três classes de
antiguidade pelas três passagens de turno e pelos doentes apresentados.
Como podemos constatar através da observação do Quadro_1, cada uma das classes
de antiguidade, A, B ou C, é constituída por três enfermeiros. Um enfermeiro da
classe A, B e C (A1, B1 e C1, respetivamente) participou na simulação da
passagem de turno da manhã, um enfermeiro da classe A, B e C (A2, B2 e C2,
respetivamente) na passagem de turno da tarde e um terceiro enfermeiro da
classe A, B e C (A3, B3 e C3, respetivamente) na passagem de turno da noite.
Outro elemento a salientar é a distribuição dos enfermeiros, das três classes
de antiguidade, pelos casos dos doentes: um enfermeiro da classe A, um
enfermeiro da classe B e um enfermeiro da classe C realizaram a planificação da
atividade relativa aos mesmos três doentes. Como mencionamos, desta forma
procuramos controlar, mantendo iguais nas três classes de antiguidade,
possíveis efeitos relacionados com especificidade da patologia de cada doente e
do conteúdo do trabalho nos três turnos que, embora fundamentais na organização
da ação, não foram analisados neste estudo.
5.2 A simulação da passagem de turno e a entrevista conceptual
Os resultados que apresentamos no ponto 6 foram recolhidos num contexto que
procurou reproduzir uma passagem de turno real. Esta opção deveu-se ao fato de
não ser possível realizar entrevistas aos enfermeiros durante o período da uma
passagem de turno real. A simulação da passagem de turno e a entrevista
conceptual foram realizadas individualmente, numa sala de trabalho no hospital,
durante o tempo de trabalho.
Cada sessão de simulação teve uma duração média de quinze minutos e foi
constituída por três momentos:
— inicialmente o investigador pedia ao enfermeiro para se imaginar na passagem
de turno real sendo dadas as instruções “Imagine que vai iniciar o trabalho no
turno x (manhã ou tarde ou noite), vou transmitir-lhe informação relativas a 3
doentes que lhe estão atribuídos no plano coletivo de cuidados, agradecia que
procedesse como numa passagem de turno real”;
— num segundo momento o investigador apresentou, individualmente, a cada um dos
enfermeiros, toda a informação oral disponível na passagem de turno real (manhã
ou tarde ou noite), relativa a três doentes; em simultâneo, alguns enfermeiros
registavam a informação que consideravam útil, num bloco de notas, como o
faziam habitualmente durante a passagem de turno real;
— no final os enfermeiros registaram, no seu bloco de notas, os cuidados a
realizar com os seus doentes a partir das informações apresentadas no plano
coletivo de cuidados, como é habitual na situação real de passagem de turno.
Imediatamente após a simulação, foi realizada, individualmente, a entrevista
conceptual com uma duração média de noventa minutos. Nesta entrevista
apresentamos a informação que havia sido transmitida oralmente, durante a
simulação da passagem de turno, decomposta em enunciados (mais pequena unidade
de informação com sentido do ponto de vista da atividade do enfermeiro) e
sequências (conjunto de enunciados ligados por uma relação causal ou de
conteúdo). Para cada sequência pedimos ao enfermeiro para comentar o que iria
fazer com a informação no turno que iria iniciar, pedindo-se para indicar o
objetivo de cada uma das ações indicadas e para justificar porque faz aquilo
que faz. Sempre que considerasse necessário o enfermeiro podia consultar
informação adicional nos documentos disponíveis, devendo indicar as razões da
consulta. As questões colocadas foram do tipo:
— o que vai fazer com a informação, o que quer dizer com esta informação, o que
deduz com a informação:
— o que procura quando quer saber determinado valor? Quando vê x e diz que é y
como é que sabe isso? Existe ligação entre os dois? Como a explica? Como é que
x age sobre y?
As questões colocadas não procuraram estabelecer exaustivamente todas as
relações possíveis na informação disponível. As relações não foram procuradas
pelo investigador, elas surgiam à medida que o enfermeiro centrava a sua
atenção sobre um ou outro aspeto do doente, procurando-se a explicitação dos
saberes e do raciocínio que o enfermeiro realizava, espontaneamente, sobre os
dados do doente.
A entrevista foi gravada e transcrita para análise.
6. RESULTADOS
6.1 A grelha de análise da passagem de turno
A grelha de análise proposta constitui uma primeira proposta, por isso
exploratória, para o estudo dos saberes, segundo as duas abordagens seguidas
(macro e microgenética), devendo ser retrabalhada e melhorada por outras
análises, a realizar em estudos futuros.
De acordo com a perspetiva macrogenética, a planificação das ações durante a
passagem de turno é um modo de controlo da ação através da conceptualização ao
longo da vida profissional. O contexto de trabalho, os outros, as normas da
instituição, os protocolos e as prescrições são fundamentais no trabalho de
conceptualização. Assim, procuramos compreender o papel particular da
experiência (antiguidade no Serviço) e dos conhecimentos na planificação da
ação prescrita (regras institucionais, prescrições médicas, protocolos) e não
prescrita (ações autónomas do enfermeiro). Identificamos objetivos do
enfermeiro para o turno que vai iniciar, ações (regras de ação prescritas e não
prescritas) e as suas justificações (regras de compreensão).
O plano de ação é constituído por:
— objetivos, por exemplo “vigiar heparinização”;
— ações (regras de ação), por exemplo “se heparina vigiar o local da punção”;
— explicação das ações (regras de compreensão - justificações, explicações,
motivos, razões); na explicação da ação encontramos catorze tipos de
conhecimentos; por exemplo, a enfermeira explica porque é importante vigiar uma
doente com isquemia e verificar a fórmula leucocitária: “a doente pode ter uma
infeção e nesse caso estes valores estão todos alterados, vai haver libertação
de toxinas, começa a ficar naquele quadro de uma sepsis, a doente começa a
ficar desorientada e pode morrer”
De acordo com a perspetiva microgenética procuramos caracterizar a atividade de
planificação da ação nas situações prescritas e não prescritas. Estudamos esta
atividade identificando, para além dos objetivos, ações, e justificações (tal
como na perspetiva macrogenética), as fontes da informação e o tipo de
alternativas que o enfermeiro propõe. Procuramos, assim, abordar a
conceptualização da ação do ponto de vista da extensão dos saberes em termos
espaciais, temporais e dos possíveis (Piaget, 1978).
Na explicação da atividade de planificação, o enfermeiro centra-se em
determinados dados sobre o doente (sintomas físicos, reações psicológicas,
diagnósticos médicos, zonas anatómicas, ações e procedimentos realizados,
etc.), recolhidos junto de diferentes fontes de informação (documentos
escritos, transmitidos oralmente). As explicações são relações entre estes
dados explicitando diferentes tipos de saberes (condições fisiológicas – por
exemplo, a circulação nas artérias obstruídas; vigilância no tempo; comparações
com uma norma – por exemplo, um número, uma média aritmética ou uma relação
entre dois valores do tipo acima, abaixo, maior, menor, por exemplo a relação
sódio potássio) sob determinadas formas. As fontes de informação e a forma como
os saberes são explicitados são associados à incerteza. Assim, analisamos os
dados considerando a sua fonte: registados, nos documentos escritos disponíveis
durante a passagem de turno ou transmitidos oralmente; não registados em
qualquer documento escrito e não transmitidos oralmente. No primeiro caso, os
dados são constatados pelo enfermeiro enquanto que no segundo caso eles são,
apenas, representados mentalmente, existindo uma maior distância relativamente
aos dados concretos e uma maior incerteza relativamente à sua ocorrência –
extensão espacial.
Do ponto de vista da forma analisamos as relações estabelecidas entre os dados
do doente, os saberes, considerando a existência de alternativas e o tempo. No
que se refere às alternativas, os saberes podem ser explicitados sob a forma de
hipóteses e, neste caso, temos relações incertas; ou, pelo contrário, são
estabelecidas relações sob a forma de identificações e, neste caso, são
relações certas; o enfermeiro não exprime qualquer dúvida sobre a sua relação.
A distinção entre o estabelecimento de relações certas e incertas é marcada
pela possibilidade de coordenar simultaneamente diferentes perspetivas sobre a
situação. Se as relações são certas, identificações, não existem alternativas
na situação; se, pelo contrário, as relações são incertas, hipóteses, outras
alternativas podem existir na situação – extensão dos possíveis.
Estudamos, também, os saberes explicitados no estabelecimento das relações
entre os dados considerando-os do ponto de vista temporal. Os conhecimentos
podem supor uma relação temporal entre dados ou uma relação não temporal. No
primeiro caso existe vigilância, no tempo, da evolução da situação (comparação
de um sinal ao longo do tempo) ou uma previsão, no presente, de cenários
futuros (previsão causal); contrariamente ao que acontece nas relações
temporais, nas quais existe incerteza, nas relações não temporais a ação é
decidida imediatamente, sem incerteza relativamente à ação a realizar. Mas, nos
dois tipos de relações temporais, a incerteza não é da mesma natureza porque o
tempo tem um conteúdo com características distintas nas duas situações. Por
vezes, o tempo supõe uma atividade de vigilância da evolução da situação
(comparação de um sinal ao longo do tempo), noutras situações indica uma
atividade de representação da relação no tempo (previsão causal). A
representação da relação no tempo obriga o enfermeiro a inferir o efeito de uma
ação. Neste caso a relação temporal é, do ponto de vista cognitivo, distante
das situações concretas de trabalho apoiando-se num modelo simples de
pensamento causa-efeito. Mas quando comparada esta relação com as relações
temporais não causais, atividade de vigilância da evolução da situação, estas
últimas parecem-nos mais complexas uma vez que, e apesar de partirem da
observação direta das situações, implicam não só relações de causa efeito como
também observação da combinação de diferentes efeitos, a sua avaliação no tempo
e a sua integração com outros elementos da situação que podem, entretanto, ser
alterados. Neste último caso a incerteza parece aumentar.
Assim, consideramos que a explicação da ação com base em dados não registados
nos documentos do doente, sobre os quais são estabelecidas relações hipotéticas
e baseadas em conhecimentos temporais não causais traduzem uma maior abstração,
a sua extensão do ponto de vista espacial, temporal e dos possíveis e, em
consequência, a integração da incerteza na ação. A combinação das diferentes
possibilidades dos três critérios considerados origina doze formas de explicar
a ação caracterizadas por diferentes tipos e graus de incerteza. Obtivemos,
assim, uma escala com sete níveis de incerteza que caracterizam sete registos
na explicação da ação, sete registos de funcionamento, apresentados no quadro
2.
As características da explicação da ação analisadas com base nestes critérios
(extensão temporal, espacial e dos possíveis) traduzem, de acordo com a
proposta de Piaget (1978) e Vermesch (1978), a estabilidade das respostas, a
possibilidade de anular as perturbações integrando-as no esquema de ação, a
resistência às perturbações (Weill-Fassina, 2010), característica dos
trabalhadores mais experientes. Foi esta análise exploratória que efetuamos por
classe de antiguidade (6.3.).
6.2 A antiguidade no serviço e os conhecimentos utilizados na explicação da
ação prescrita e não prescrita
O número de regras de ação prescritas explicadas (RAPE), regras de ação não
prescritas explicadas (RANPE), regras de ação prescritas não explicadas (RAPNE)
e regras de ação não prescritas não explicadas (RANPNE) nas três classes de
antiguidade é apresentado no gráfico_1.
Na observação do gráfico_1 constata-se que no total são formuladas 231 regras
de ação. Na atividade do enfermeiro, as RAP assumem um papel mais importante do
que as RANP, o que indica que a atividade é guiada com base em prescrições
médicas, protocolos e regras da instituição.
Relativamente às RAP, a comparação com uma norma, a comparação no tempo e a
explicação causal são os saberes mais utilizados em qualquer classe de
antiguidade, como podemos constatar no gráfico_2. De salientar que a comparação
no tempo é o conhecimento mais utilizado pelos enfermeiros mais antigos no
serviço e também aquele sobre o qual existe uma maior distinção entre, por um
lado, os enfermeiros mais novos e intermédios e, por outro lado, os enfermeiros
mais antigos. Estes dados parecem indicar que os enfermeiros mais antigos
planeiam vigiar, mais do que os outros, no tempo a evolução da situação do
doente. No caso dos enfermeiros da classe intermédia e os mais novos, a
comparação no tempo também é uma estratégia indicada para o turno mas estes
enfermeiros estabelecem, de igual modo, comparações de um valor com uma norma.
Na comparação de um valor com uma norma o enfermeiro evoca um número, uma média
aritmética ou uma relação entre variáveis específicas do doente para julgar,
numa situação, um valor acima, abaixo, normal, não normal, elevado, etc. (por
exemplo, a relação entre o sódio e o potássio), para agir. Neste caso coordena
conceptualmente os dados que são apresentados e julga-os de acordo com uma
norma para agir. Para estes enfermeiros, as regras de ação prescrita são
observadas no tempo e são também avaliadas. Para os enfermeiros mais antigos as
prescrições são, também, avaliadas mas são em maior número observadas durante o
turno.
Assim, e no que se refere à ação prescrita, salientamos uma evolução, com a
antiguidade no Serviço, das estratégias de ação no sentido da observação das
situações no tempo, o que pode traduzir um melhor conhecimento dos enfermeiros,
mais antigos, relativamente às observações a realizar no turno assim como a
importância que atribuem à adequação e ajustamento das suas práticas à evolução
das situações. Parece-nos que estamos perante um maior controlo da ação nos
mais antigos.
No que se refere às RANP, podemos observar no gráfico_3 que a comparação no
tempo é o conhecimento mais utilizado, na planificação da ação.
Nos enfermeiros mais novos no Serviço, o conhecimento mais utilizado é a
comparação no tempo. Nos enfermeiros intermédios são igualmente utilizados os
conhecimentos comparação de um valor com uma norma, comparação no tempo e
explicação causal. Este último tipo de conhecimento é, aliás, o que distingue
estes enfermeiros dos enfermeiros mais antigos e mais novos, já que os
intermédios são os únicos a utilizar a explicação causal na ação não prescrita.
Nos enfermeiros mais antigos no serviço, a comparação com uma norma é o
conhecimento mais utilizado, sendo de salientar que esta classe de antiguidade
é, também, a única que utiliza o conhecimento função para explicar a sua ação.
Na comparação de um sinal ao longo do tempo o enfermeiro planeia observar, no
turno, elementos relativos ao doente e ao Serviço. Principalmente nas ações não
prescritas, ações para as quais não existem indicações formalizadas devendo o
enfermeiro tomar as decisões de forma autónoma e agir, a planificação da ação
deveria traduzir-se por uma maior preparação destas ações de observação. Assim
sendo, a planificação da atividade incluiria um maior número de observações a
realizar junto do doente (comparação no tempo) se comparada com a ação
prescrita. Os resultados obtidos, relativos aos enfermeiros das três classes de
antiguidade, não indicam esta maior preparação da ação não prescrita e
consideramos, por isso, no caso da ação não prescrita, que a vigilância de um
sinal ao longo do tempo indica uma estratégia passiva no tempo “esperar para
ver”. Estes resultados estão de acordo com análises de atividades de serviços.
Degoulet (2015) salienta que os menos experientes dedicam pouco tempo à
preparação da ação futura, à antecipação de imprevistos e problemas que ocorrem
durante o trabalho. Nos enfermeiros mais antigos no Serviço, a ação
caracteriza-se pela coordenação de vários elementos da situação, para
estabelecer uma norma e agir (comp norma) como também se caracteriza pelo
pragmatismo (função), a ação é um meio de diagnóstico e intervenção. Por
exemplo, o doente está na cama e é não colaborante, o enfermeiro durante o
turno vai posicionar o doente para aliviar as zonas de pressão. Nos enfermeiros
da classe intermédia, a ação carateriza-se por uma estratégia compreensiva já
que existe uma avaliação causal, o estabelecimento de uma explicação causa-
efeito (A é a causa de B ocorrer), num determinado momento, para agir. Neste
caso, a coordenação conceptual entre elementos da situação refere-se a uma
relação simples de causa e efeito.
Propomos, assim, três tipos de estratégia para caracterizar a ação não
prescrita do enfermeiro: a estratégia passiva, a estratégia ativa e pragmática.
Os três tipos de estratégia sugerem que, com a experiência profissional, existe
transformação da ação não prescrita no sentido de um maior controlo das
situações.
A comparação das estratégias de ação prescrita e estratégias de ação não
prescrita sugere que a prescrição da ação não parece influenciar o
desenvolvimento da atividade ao longo da vida profissional. Nas três classes de
antiguidade, salientamos as características da ação não prescrita e prescrita
nos enfermeiros mais antigos. Ambas parecem traduzir um maior controlo das
situações, prescritas e não prescritas, por parte dos enfermeiros mais antigos.
6.3 A antiguidade no serviço e a incerteza na planificação da ação não
prescrita
Analisamos as regras de compreensão segundo critérios que consideramos
indicadores da sua extensão temporal, espacial e dos possíveis, conforme
6.1.Obtivemos frequências em seis dos sete registos possíveis, como podemos
constatar no gráfico_4.
Os registos de funcionamento mais frequentes em qualquer classe de antiguidade
são o registo C e o E, apresentando cada um três formas alternativas, como
podemos constatar no Quadro_2. Comparando as frequências dos dois registos,
verifica-se que o registo C é o mais frequente, em qualquer classe de
antiguidade.
Comparando as características das três alternativas do registo de funcionamento
C com as características das três alternativas do registo E Quadro_2, constata-
se que o registo E é ligado a uma maior incerteza sobre o que fazer e sobre os
dados do doente. O enfermeiro dirige mais a sua atenção para elementos não
constatados junto do doente, apenas representados mentalmente e, considerando a
situação do doente, ele interroga-se sobre outras alternativas. No entanto,
parece-nos que a incerteza se associa a uma maior prudência já que dadas as
características do trabalho do enfermeiro, ação exercida sobre o doente em
circunstâncias que evoluem continuamente e sobre as quais não existe um
completo controlo, esta forma de planear a sua ação integra a imprevisibilidade
da situação sendo por isso mais realista e, deste modo, talvez mais adaptada e
segura.
O registo de funcionamento E, apesar de menos frequente do que o registo C em
qualquer classe de antiguidade, é mais frequente nos mais antigos e nos
enfermeiros da classe intermédia, sugerindo que, com a experiência
profissional, há integração da imprevisibilidade da situação na atividade de
planificação.
6.4 As estratégias e a imprevisibilidade da ação
O conhecimento é organizado para a ação de acordo com diferentes conhecimentos
que correspondem a diferentes formas de planear a ação para o turno
relacionadas, obviamente, com as características dos doentes, do turno de
trabalho mas também com a experiência profissional do enfermeiro. Assim, a
comparação da planificação da ação nas três classes de antiguidade sugere que a
experiência do enfermeiro proporciona o confronto com situações de trabalho que
favorecem a ação mais adaptada a um contexto. A experiência profissional
parece, também, proporcionar uma maior “resistência às perturbações” uma vez
que o enfermeiro mais experiente integra, mais do que o menos experiente, a
imprevisibilidade das situações na atividade de planificação que realiza. Neste
sentido, a experiência de trabalho favorece o desenvolvimento de competências
de gestão da imprevisibilidade na prestação de cuidados.
7. CONCLUSÃO
A descrição do trabalho, o quadro teórico e a metodologia que orientaram a
nossa explicação da forma como o enfermeiro gere os múltiplos constrangimentos
da sua atividade (objetivos próprios, objetivos da organização, recursos
materiais, recursos humanos, regras) e desenvolve competências não pretende ter
o valor de prova, o seu principal contributo é abrir o debate sobre o trabalho
e propor a vários intervenientes, no mundo do trabalho, uma abordagem que
salienta os fatores humanos na sua realização. Esta tentativa exploratória de
aproximação à atividade do enfermeiro deve ser continuada pelo aprofundamento
de várias questões que deixamos em aberto e pela análise de outras situações de
trabalho.
A situação de trabalho escolhida para a análise foi definida como uma tarefa de
planificação, tendo sido identificados, pelos enfermeiros, objetivos e meios
para os atingir. Assim, foi possível ultrapassar uma análise técnica do
trabalho do enfermeiro complementando-a com uma análise psicológica. Esta
última permitiu identificar ações realmente praticadas, as estratégias
planeadas para o turno, os recursos utilizados, as relações que os enfermeiros
estabelecem entre diferentes elementos que caraterizam o seu ambiente de
trabalho, as prioridades que estabelecem. A análise psicológica do trabalho e o
quadro teórico no qual nos apoiamos também tornou possível uma primeira
proposta de registos de funcionamento, formas de lidar com a incerteza
característica do trabalho do enfermeiro.
Na análise do trabalho salientamos os seus aspetos sociais, a partilha de
recursos e a construção em comum, ao longo da vida profissional, de ações,
regras, linguagens, e a sua influência na conceptualização da prestação de
cuidados. Mas os aspetos do trabalho coletivo do enfermeiro são fundamentais, a
dependência relativamente aos enfermeiros de outros turnos e a outros
profissionais da equipa de saúde para serem atingidos objetivos comuns na
realização do trabalho. Assim, o nosso estudo deverá ser continuado no sentido
de um maior aprofundamento dos aspetos sociais e, principalmente, dos aspetos
coletivos insuficientemente abordados.
No plano coletivo parecem-nos importantes questões sobre como é que um mesmo
objetivo é atingido por vários enfermeiros? Que tipo de interação se estabelece
entre eles? Como é que ela se desenvolve ao longo da vida profissional? Como
favorecer esta cooperação? Como favorecer a cooperação entre serviços? Estes
aspetos, fundamentais no desenvolvimento das competências, são praticamente
inexistentes durante a passagem de turno e, por isso, a continuação do estudo
obriga a uma reformulação das condições e situações de recolha de dados.
No plano social, os aspetos sociais do trabalho foram reduzidos a uma análise
por classe de antiguidade supondo-se que a antiguidade no Serviço seria um
indicador da conceptualização, realizada ao longo da vida profissional, na
interação com o contexto social de trabalho. Assim, também consideramos
fundamental o aprofundamento das conclusões que retiramos por classe de
antiguidade. As análises individuais, estabelecendo comparações e distinções
entre enfermeiros, com características de formação e experiências diversas, em
substituição da análise por classes de antiguidade, são mais adequadas ao
estudo que iniciamos. Cada enfermeiro é um caso singular que pode ser situado
no conjunto de outros enfermeiros em função de características que, no nosso
estudo, se reduziram à experiência de trabalho no serviço. A retenção destes
indicadores é com certeza muito redutora da realidade, negligenciando, ainda
que de forma provisória, diferenças fundamentais na explicação da ação: a
formação específica do enfermeiro, as suas experiências, as características dos
doentes e dos turnos de trabalho. A ação analisada é a ação explicitável, a
ação também pode não ser explicada. Como Montmollin (1996) salienta existem
situações de trabalho nas quais a emoção e a empatia são mais importantes do
que os saberes na explicação da atividade e esta é, seguramente, uma dimensão
importante na atividade do enfermeiro que, em diversas situações tem,
simplesmente, como objetivo “fazer o doente sorrir”. O significado da atividade
não se reduz ao tratamento de informação, quer esta seja pré-determinada ou
construída em situação (Pinsky & Theureau, 1982; Weill-Fassina, 1993). Como
muitos estudos sobre a carga psíquica dos enfermeiros o demonstram (Benner,
1987; Malchaire, 1992), o significado é também a gestão de sentimentos e de
emoções fundamentais no controlo da ação. Assim, estudos futuros deverão
contemplar a dimensão experiencial da atividade (Schwartz, 2011), na qual é
fundamental considerar a articulação corpo-mente na ação humana, sobre os
objetos e sobre os outros, num determinado contexto. O conceito de corps-soi,
proposto por Schwartz (2011), é fundamental nesta análise.
Apesar da especificidade do nosso estudo e do seu carácter exploratório,
constatamos a variabilidade de estratégias e a sua transformação ao longo da
vida profissional o que sugere o interesse em alargar o estudo a outras
populações de enfermeiros na realização de outras tarefas noutros contextos de
trabalho em situação de cooperação. A continuação deste tipo de estudos
possibilitará, com certeza, a recolha de outros dados que permitirão
complementar e ampliar a nossa compreensão sobre a variabilidade e o
desenvolvimento de competências..