A aliança teoria / prática na obra do sociólogo do trabalho Georges Friedmann
TEXTOS HISTÓRICOS
A aliança teoria / prática na obra do sociólogo do trabalho Georges Friedmann
(1922-1977).
Catherine Teiger
Groupe de recherche sur l'histoire du travail et de l'orientation (GRESHTO)
Centre de recherche sur le travail et le développement (CRTD), Conservatoire
National des Arts et Métiers 41 rue Gay-Lussac 70005 Paris France
moufcat@gmail.com
Comentário ao texto: Friedmann, G. (1954). Intervention au XIème Congrès
International de Psychotechnique (Psychologie appliquée), Section de
psychologie du travail, Paris, 1953. Le Travail Humain, 17, 1-2, 39-40.
Para que o tamanho deste comentário não exceda (demasiado!) o do texto de
Georges Friedmann (1902-1977) proposto neste número da Laboreal, irei apenas
situá-lo no seu contexto histórico pessoal, académico e societal, e levantar
uma das questões de fundo que ele colocou aos seus contemporâneos. Uma questão
epistemológica que se coloca ainda hoje, apesar de os contextos terem mudado
bastante. Ao fazê-lo, enquadro-me na reflexão do sociólogo belga Mateo Alaluf
(2001, p.102, tradução livre): “O regresso aos debates que se possam julgar
antigos continua a ser o melhor antídoto para nos salvar da amnésia que nos
ameaça incessantemente nas ciências sociais e que fragiliza tanto os nossos
resultados”. É por esta razão que os debates que marcaram o pós-guerra – esse
período de grandes transformações, que é também o da emergência da ergonomia e
de uma nova sociologia do trabalho nos anos cinquenta – permanecem tão atuais.
O texto – sem outro título que não o aqui indicado – foi retirado de Actes du
XIe Congrès international de Psychotechnique (Psychologie appliquée) – Section
de psychologie du Travail (Actas do XIº Congresso internacional de Psicotécnica
(Psicologia aplicada [1]) – Secção de psicologia do Trabalho) que teve lugar em
Paris em 1953. Trata-se da retranscrição da reação do “filósofo – psicólogo –
sociólogo”, Professor Georges Friedmann, às apresentações da sessão plenária
inaugural. A sua intervenção seguiu-se às dos ingleses C. B. Frisby (1954) [2]
(“Allocution inaugurale” - “Discurso Inaugural”) e L. S. Hearnshaw (1954) [3]
(“Le but et le domaine de la psychologie industrielle” - “O propósito e o
âmbito da psicologia industrial”), do francês Pierre Goguelin (1954) [4] (“Les
facteurs psychologiques susceptibles d'accroître la productivité en entreprise”
- “Os fatores psicológicos suscetíveis de aumentar a produtividade na empresa”)
e do Sueco Gunnar Westerlund (1954) [5] (“Cadre de références et problèmes liés
en psychologie industrielle” - “Quadro de referências e problemas relacionados
em Psicologia Industrial”). Todavia, a reacção de Georges Friedmann visa
sobretudo a intervenção de L. S. Hearnshaw, ou seja, a definição do âmbito da
psicologia do trabalho.
A este propósito, Georges Friedmann (G.F.) evoca, entre outros aspetos, as
relações entre teoria e prática, apoiando-se numa posição já antiga de Jean-
Maurice Lahy (1932) [6], sobre a qual me pronunciarei a seguir. Notemos que
G.F. não faz nenhuma referência direta a P. Goguelin, mas, ao citar a psicóloga
Suzanne Pacaud, colaboradora durante inúmeros anos de J.-M. Lahy, não deixou de
mencionar os riscos de falhanço de uma “política da produtividade” que não
tiver em conta as inter-relações entre todas as dimensões do trabalho e que
deste modo não mereceria “a colaboração de psicólogos industriais preocupados
em não comprometer a sua atividade ao serviço dos interesses particulares e de
a manter num terreno científico”. Na verdade, a política de produtividade
estava no seu auge no período pós-guerra, sob o impulso do plano Marshall de
ajuda dos EUA à reconstrução e à modernização dos países da Europa devastados
pela guerra e sob a influência das “missões de produtividade” que, então,
visitaram os EUA. Estas envolveram toda a comunidade profissional [7] (Kuisel,
1988), apesar da oposição dos círculos profissionais comunistas, que
denunciaram um “projeto de catequização da classe operária” (Brucy, 2001, p.
81, tradução livre). Recordemos que uma destas missões, em 1956 – “O projeto
335” ou “Adaptation du travail à l'homme” (“Adaptação do trabalho ao homem”) –
contribuiu para a emergência da ergonomia na Europa (AEP, 1959; Teiger &
Lacomblez, 2013). Encontramos também referências a uma “Missão psicotécnica” de
1952 (psicólogos e especialistas do trabaho, incluindo S. Pacaud e Jean-Marie
Faverge), nomeadamente, nos capítulos redigidos por J. M. Faverge (Teiger,
2015a) na obra “L'analyse du travail. Facteur d'économie humaine et de
productivité” (“A análise do trabalho. Fator de economia humana e de
produtividade”) (Ombredane & Faverge, 1955).
Mas quem foi Georges Friedmann (1902-1977)?
Alguns flashes biobibliográficos. [8]
Todos estão de acordo em caracterizar G.F. como uma das figuras de proa
emblemáticas dos intelectuais progressistas da pós-segunda guerra mundial
(1939-45), seduzidos pelo ideal comunista de justiça social e muitos deles
“compagnons de route” do Partido Comunista Francês (PCF), tendo posteriormente,
no final dos anos 50, abandonado e entrado em rutura definitiva. Pioneiro de
uma “sociologia humanista”, contribuiu de forma decisiva para a nova sociologia
francesa e, sobretudo, para a promoção da sociologia do trabalho. Ele
permaneceu engajado durante a sua vida, que consagrou à análise do trabalho
humano, e em função da evolução do mundo técnico ele próprio evoluiu através
das suas análises.
Nascido em 1902, ingressou em 1923 na École Normale Supérieure em Paris (ENS)
onde concluiu a agregação em filosofia. Depois, graças aos financiamentos
concedidos à ENS pela Fundação Rockefeller (Tournès, 2008), ele exercerá,
durante três anos, de 1932 a 1935, o cargo de assistente do “Centro de
documentação social” alojado na ENS [9], enquanto assistente para os estudantes
da Escola. Para compreender melhor o trabalho operário, ele seguiu, a meio-
tempo, entre 1931 e 1932, uma aprendizagem de afinador de máquinas na escola
profissional Denis Diderot, em Paris, mas nunca chegou a trabalhar como
operário numa fábrica.
Fez três viagens à URSS (em 1932, 1933 e 1936) e apoiar-se-á nas suas
observações (Friedmann, 1934) para realizar uma reflexão sobre o maquinismo no
âmbito da sua tese publicada em 1946: “Problèmes humains du machinisme
industriel” (“Problemas humanos do maquinismo industrial”) que introduziu, em
França, a nova sociologia do trabalho. Viajou também para os EUA.
Leccionou depois, de 1935 a 1939, na escola profissional Boulle, de onde foi
expulso, ao abrigo das leis anti-semitas do governo de Vichy vigente durante a
ocupação da França pela Alemanha nazi. Tendo entrado na Resistência na região
de Toulouse, viveu na clandestinidade. Não obstante, a 23 de junho de 1941
realizou-se a “Journée interdisciplinaire de psychologie et d'histoire du
travail et des techniques” (“Jornada interdisciplinar de psicologia e de
história do trabalho”), organizada por iniciativa do psicólogo Ignace Meyerson
(1888-1983) para a “Société d'études psychologiques de Toulouse” (“Sociedade de
estudos psicológicos de Toulouse”), criada, aliás, em maio de 1941. As Actas
deste encontro – “Le travail et la technique” (“O trabalho e a técnica”) – só
foram publicadas em 1948, tendo sido objeto de uma recensão elogiosa por parte
da revista “Annales” em 1951, e, em particular, pelo historiador Lucien Febvre,
ele mesmo um participante da Jornada [10]. Entre as intervenções analisadas
figura a de G. F. (“Esquisse d'une psycho-sociologie du travail à la chaîne”-
“Esboço de uma psicossociologia do trabalho em cadeia”) que L. Febvre apresenta
como “o nosso amigo”. Ora, nesta comunicação, G. F. formula uma primeira
teorização de “Problèmes humains du machinisme industriel” (“Problemas humanos
do maquinismo industrial”) (Friedmann, 1946), tema da sua tese, publicada em
1946, onde ele defende que o trabalho em cadeia representa “uma etapa histórica
do desenvolvimento da sociedade industrial” e que “os problemas do trabalho
humano são simultaneamente problemas técnicos, problemas psicológicos e
problemas sociais” (Friedmann, 1941/48, p.127, tradução livre). E L. Febvre
termina a sua recensão desta forma: “Vemos o interesse deste número (da revista
“Annales”), muito bem-sucedido. Este encontro presta homenagem àqueles que o
projetaram e este número permanecerá útil e vivo durante muito tempo” (1951,
p.243, tradução livre).
Após o fim da guerra, G.F. é nomeado inspetor geral do ensino técnico (em
1945), professor de história do trabalho no Conservatoire national des arts et
métiers (CNAM, de 1946 a 1960), diretor de estudos na École pratique des hautes
études (EPHE, de 1949 a 1960) e diretor do Centre d'études sociologiques (CES)
do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS de 1949 a 1954). Funda em
1959, com outros, a revista Sociologie du travail. Por fim, no início dos anos
1960, explora um outro campo da cultura técnica: as comunicações e a cultura de
massa.
Em 1962, G.F. coordenará com Pierre Naville o importante Traité de sociologie
du travail [11] (“Tratado de sociologia do trabalho”) (Friedmann & Naville,
1962) a seguir à publicação em 1958 do Traité de sociologie (“Tratado de
sociologia”) coordenado por Georges Gurvitch, para o qual ele havia escrito com
Jean-Daniel Reynaud “Sociologie des techniques de production et du travail”
(“Sociologia das técnicas de produção e do trabalho”).
Em 1953-54, época que corresponde à sua intervenção no congresso que aqui nos
ocupa, G.F. é então, como já foi dito, professor de história do trabalho no
CNAM e diretor de estudos na ÉPHE, acumulação de funções frequente na época.
Ele é, então, uma autoridade no domínio das ciências do trabalho. Reorientou as
atividades do CES que até aí organizava sobretudo conferências. Com ele, o CES
tornou-se um laboratório de inquéritos. E, segundo Kuty (2008, p. 57), com
G.F., uma nova “fórmula de pesquisa” foi adoptada, com entrevistas e
observações (como nos EUA). Embora a prática de inquéritos coletivos existisse
em França já desde os anos trinta, altura da emergência de uma política de
promoção das ciências sociais [12] (Tournès, 2008), todavia o inquérito com
este novo formato ainda não ocupava um lugar de destaque [13].
O contexto dos anos cinquenta facilitou a evolução da sociologia acima
mencionada graças às oportunidades proporcionadas pela criação, em 1951 – por
iniciativa do Ministério do trabalho com vista à formação dos conselheiros do
trabalho – do Institut des sciences sociales du travail (ISST) ligado à
Universidade de Paris. A secção de investigação foi criada em 1954 com Yves
Delamotte [14], secretário-geral do novo Instituto no qual G.F. se tornou
diretor. O jurista Marcel David [15] sucedeu-lhe em 1959. Este último criou,
graças à sua vontade de ferro, nos mesmos anos (em 1955), o primeiro Instituto
do trabalho na Faculdade de direito da Universidade de Estrasburgo, tendo em
vista a formação superior dos sindicalistas chamados a participar e negociar
nas instâncias paritárias que tinham sido recentemente criadas (David, 1982).
Para sustentar tais formações superiores, cuja finalidade é concreta e não
académica, serão indispensáveis inquéritos empíricos atualizados. Tal
necessidade reforçou uma tendência emergente no contexto do pós-guerra. Com
efeito, G. F. tinha já lançado, a partir de 1949, através do CES, grandes
inquéritos na indústria: os de Alain Touraine e Etienne Verey nas fábricas
Renault (Touraine, 1955), de Viviane Isambert-Jamati na indústria relojoeira
(1955) e de Maurice Verry na siderurgia das Ardennes (1955). Tais realizações
serão facilitadas pelas significativas dotações financeiras disponibilizadas
pelo plano Marshall, a partir de 1954 ao ISST e a outras instituições [16].
Assim, as investigações iniciadas em seguida por G.F. sobre “as atitudes dos
operários da siderurgia face às mudanças técnicas” enquadrar-se-ão efetivamente
em projetos apoiados pelo plano Marshall (no quadro da Organização Europeia de
Cooperação Econômica/OECE), sendo conduzidos conjuntamente na Alemanha,
Bélgica, França, Grã-Bretanha e Itália.
Em relação à França, tratar-se-á da pesquisa sobre os operários da siderurgia,
realizada em Mont-Saint-Martin (1954-1957) por J.D. Reynaud, A. Touraine e seus
colaboradores, e também da investigação sobre os funcionários subalternos dos
“Chèques postaux” de Paris (Crozier, 1956). A pesquisa na siderurgia de Mont-
Saint-Martin foi realizada por jovens investigadores [17] que se autodesignaram
os “Gaston”. G. Rot e F. Vatin (2008) publicaram e analisaram mais tarde o
diário mantido pelos Gaston. Enriquecido com desenhos humorísticos, tal diário
reflete bem as perplexidades, as descobertas, as dificuldades das suas tarefas,
assim como as reações destes investigadores aprendizes perante a divisão do
trabalho intelectual que vivem - eles no terreno dia e noite e os “chefes” no
escritório em Paris à espera dos relatórios!
E, de facto, isto levanta a questão de fundo colocada neste texto por G.F.: a
da relação entre teoria / prática, ciências fundamentais / ciências aplicadas.
Teoria / prática; laboratório / terreno.
Porquê, onde e como fazer ciência e que ciência?
A questão central do pensamento de G.F., que realçarei no âmbito deste
comentário, é a da relação entre teoria e prática (ou teoria e empirismo) que,
atualmente, ainda afecta a maior parte das disciplinas das ciências humanas e
sociais que se interessam pelo trabalho humano, tais como a ergonomia, a
psicologia, a sociologia e a filosofia. Encontramos também um questionamento
semelhante nos epistemólogos-historiadores de ciências como a etologia
(Despret, 2011).
Teoria e prática: de que se trata?
É conhecido o aforismo humorístico atribuído ao físico Albert Einstein, pai da
teoria da relatividade: “A teoria é quando se sabe tudo e nada funciona. A
prática é quando tudo funciona e ninguém sabe porquê. Aqui, reunimos teoria e
prática: nada funciona e ninguém sabe porquê!”
A intervenção no XIº Congresso internacional de psicotécnica, em 1953, será a
oportunidade para G.F., titular durante 7 anos da cadeira de “História do
trabalho e relações industriais” do CNAM, fundamentar o seu ponto de vista
sobre a abordagem do trabalho. Em ligação com o desenvolvimento da tomada em
consideração do fator humano, G.F. destaca os limites de uma conceção que
separa teoria e prática. E recorda a posição de J.-M. Lahy (1932) que defendia
que a psicologia aplicada, ou psicotécnica, não é outra coisa que psicologia
científica geral, sustentando assim que ela não difere da psicologia teórica
mas que, nascida dela, ela supera-a, transforma-a e substitui-a como produto da
sua evolução necessária, como uma síntese da teoria com uma nova prática. Sendo
assim, talvez se pudesse conseguir que tudo funcione e que se saiba porquê! No
mesmo espírito, 70 anos de pois, o antropólogo Maurice Godelier [18] (2000,
p.15, tradução livre), afirmará: “As pesquisas em ciências sociais pertencem
desde o início à esfera da investigação fundamental (…) São como as ciências
duras, ciências fundamentais que podem ter aplicações. Porque não existe
realmente investigação aplicada mas existem, sim, aplicações da investigação”.
Este tema abrange pelo menos cinco aspetos que estão relacionados: 1) os locais
e os métodos privilegiados de produção de conhecimento; 2) o valor dos
conhecimentos produzidos, em função do local da sua produção; 3) a sua
utilidade social; 4) a sua formalização e sua difusão; 5) a evolução das
teorias. Menciono aqui só os aspetos que ainda estão na agenda da ergonomia. E
que são regularmente objeto de jornadas de estudos onde as questões advindas da
prática colocam questões teóricas que interrogam as disciplinas e contribuem
para o seu desenvolvimento (cf. por exemplo, Les Journées annuelles de
l'université de Bordeaux sobre a prática da ergonomia e, também, o Seminário
transversal do Institut National d'Etudes sur le Travail et l'Orientation
Professionnelle – Groupe de Recherches sur l'Histoire du Travail et de
l'Orientation em Paris, em 2013, sobre as relações terreno / laboratório, sobre
a intervenção, etc.).
1. Os locais e métodos de produção de conhecimentos: duas aceções das relações
teoria / empirismo, terreno / laboratório
Se a legitimidade das pesquisas de terreno atualmente está já adquirida,
todavia ainda existem muitas questões por resolver. Ir para o terreno, mas para
azer o quê?
Ao examinar os argumentos avançados para legitimar a importancia atribuída aos
dados empíricos no processo intelectual de produção de conhecimentos sobre o
trabalho em particular (Teiger, 2015b), constata-se que a defesa de uma
abordagem no terreno reenvia-nos para dois argumentários diferentes. De um
lado, a ideia de um terreno subordinado à teoria: como uma extensão do
laboratório, onde se confirmam ou se infirmam as hipóteses que a teoria havia
estabelecido a priori, aportando um valor adicional de “validade ecológica”,
sem considerar os problemas próprios dos atores do terreno. Do outro lado, a
ideia de um terreno abordado com uma grande abertura às propostas e à atividade
real dos atores, bem como aos temas que eles espontaneamente trazem, sem o
enquadramento de teorias estruturadas a priori mas com o desejo de contribuir
para a resolução das questões que se colocam no terreno.
Se permanecermos no campo da sociologia, e tivermos em conta a oposição entre
estas duas compreensões do terreno, apreenderemos melhor o carácter inovador
dos sociólogos Friedmannianos. Com efeito, em França, até 1954, momento das
primeiras grandes pesquisas de terreno pedidas pelo Estado, a posição dominante
no campo dos métodos era ainda a da “sociologia filosófica [19] / teórica”.
Mas, a partir desse mesmo momento, os Friedmannianos inventam realmente a nova
“sociologia empírica” com, de acordo com M. Alaluf (2012, p.727, tradução
livre) “a preocupação metodológica (que) ocupará um lugar central, como
garantia de objetividade, no desenvolvimento desta nova sociologia”. Mas
segundo Olgierd Kuty (2008, p.58, tradução livre).), “este empirismo foi
denegrido. A sociologia enfrenta a indiferença, se não a hostilidade”. Citando
Johan Heilbron (1991, p.366-377, tradução livre), O. Kuty conclui assim: “Entre
os polos opostos do "engajamento" e da "perícia" (…), era-lhes extremamente
difícil encontrar o seu caminho. O sociólogo era colocado numa espécie de “no
man´s land” e, então, ou ficava paralisado pela angústia de ser demasiado
político (e, portanto, não suficientemente intelectual), ou angustiado por não
ser suficientemente político, isto é por não estar ao serviço da sociedade”.
Encontraremos problemáticas semelhantes a estas, por exemplo, aquando do
abandano do laboratório pelos ergónomos, uma dezena de anos mais tarde, na
década de sessenta, com vista a melhor compreender o trabalho e contribuir para
o transformar tendo em conta a “demanda social” da época (isto é, os efeitos
pouco visíveis do trabalho em cadeia sobre a saúde das operárias e operários na
produção em massa e nos transportes públicos). Alain Wisner (1985) destaca
neste processo um triplo efeito: a necessidade de inventar novos métodos para
estudar as situações de terreno no âmbito duma abordagem científica
deliberadamente associada à ação; a evolução conceitual que daí deriva e
transformará a definição e o próprio objetivo da disciplina ergonomia;
finalmente, e também aqui, o desprezo, se não a hostilidade, dos defensores do
método experimental em nome da dita neutralidade da ciência (Teiger, 2007,
2015b).
Em ergonomia e psicologia do trabalho, como exemplos dessa abordagem, refira-se
o aparecimento e posteiror desenvolvimento das investigações/intervenções ditas
participativas em França, no fim dos anos sessenta [20], e em Itália, nos anos
setenta, a formalização da “comunidade alargada de pesquisa” pela equipa de
Ivar Oddone e sua posteridade intelectual (Oddone et al., 1977; Muniz, et al.,
2013; Lacomblez et al., 2014).
2. O valor dos conhecimentos
Aqui encontramos a questão epistemológica do valor hierarquizado dos
conhecimentos, em função do local e dos métodos da sua produção, que a
epistemóloga-etóloga belga, Vinciane Despret (2011), coloca com humor no centro
da sua reflexão. A autora mostra como, em certos casos, os conhecimentos
“práticos” adquiridos pelos tratadores ou treinadores de animais, que são
cordialmente menosprezados pelos investigadores da área, permitem no entanto
obter resultados que as experiências “científicas” de laboratório muito
elaboradas não conseguem [21]: por exemplo, aprender um mainá desobediente a
falar!
Mas ir para o terreno não é suficiente! A quem, de que servirão os resultados
da investigação?
3. A utilidade e a responsabilidade: “a iluminação e a dívida”
Chegamos, assim, à questão ética da utilidade das pesquisas e dos conhecimentos
produzidos e dos seus destinatários; bem como à da responsabilidade dos
investigadores-intervenientes na sua relação com os locais de trabalho e com
aqueles que aí vivem.
Quem beneficiará dos conhecimentos produzidos [22]? A carreira dos
investigadores ou as empresas? E que atores das empresas? Ou também as
instituições? Vimos já que os Friedmannianos beneficiaram a partir de meados
dos anos cinquenta de um certo reconhecimento, pelo menos da parte dos poderes
públicos que consideraram os seus trabalhos úteis e os financiaram.
“A iluminação e a dívida”, expressão do sociólogo Michel Crozier (1922-2013),
teórico do ator no sistema, resume bem os dois lados da relação com o terreno e
com os atores do terreno com quem os investigadores-intervenientes trabalham
(Kuty, 2008). Por um lado, iluminação pelo sentimento de melhor compreensão da
realidade do trabalho e, por outro, dívida que inclui a responsabilidade
perante aqueles que trabalham, e com quem se trabalhou, e a quem se deve
“entregar” pelo menos alguma parte dos benefícios da compreensão adquirida
graças a eles. Segundo M. Alaluf (2012, p.729, tradução livre), na tradição de
Friedmann “os investigadores querem-se profissionais de uma ciência útil em
oposição à sociologia geral”. A teoria sociológica não é um fim em si mesma.
Ela deve ser útil, produzir um conhecimento prático, um conhecimento que possa
ser um instrumento de mudança, que permita aos interessados melhor compreender
a situação em que se encontram e, portanto, serem mais capazes de a mudar.
Perante isso, os ergónomos não podem senão concordar!
Voltamos assim à questão dos destinatários da utilidade das investigações,
questão sobre a qual haverá sempre divergências profundas, até com posições
extremas. Por seu lado, M. Godelier (2000, p. 15, tradução livre) sublinha a
utilidade social das ciências sociais: “Os que se envolvem (…) fazem-no crendo
que as suas pesquisas vão ser úteis para os outros para além deles mesmos”. E
continua: “O que abrange este desejo de ser útil? A questão é complexa e as
‘utilidades' são bastante diferentes consoante as disciplinas”. Contudo, alguns
autores recusam qualquer noção de utilidade. Gabrielle Varro e Anne-Sophie
Perriaux sublinham as posições tomadas pelos sociólogos C. Durand e A.
Touraine, nos anos setenta, notando que (1991, p.11, tradução livre): “No
importante, mas pouco divulgado, relatório de Durand e Touraine (1970) afirma-
se que não é o papel da investigação fazer propostas ou recomendações de ordem
administrativa; o seu objetivo é teórico e científico”.
Ora, a questão coloca-se de forma um pouco diferente para a ergonomia em França
que, após a sua fase “experimental”, até meados dos anos sessenta, assumirá
claramente o seu duplo objetivo de conhecimento e de ação sobre a situação de
trabalho.
4. Consequência ético-metodológica: formalização e divulgação dos conhecimentos
Nós defendemos, há bastante tempo, nos domínios da ergonomia e da psicologia do
trabalho, uma fórmula de investigação-intervenção que realça a co-elaboração da
investigação com os atores envolvidos no terreno, estruturada através de uma
formação recíproca à análise do trabalho a partir dos conhecimentos e dos
pontos de vista de cada um. Assim, cada um enriquece o seu campo e torna
possível uma ação comum. No entanto, uma condição parece-nos ser indispensável
para a ação comum nos diferentes domínios: a formalização e a divulgação de uma
forma acessível dos conhecimentos e dos diversos instrumentos de análise
produzidos durante as investigações/intervenções (Teiger & Lacomblez, 2013:
cf. os dossiers sindicais no DVD anexo). Do nosso ponto de vista, esta reflexão
faz parte e deve presidir a todas as operações no terreno a fim de facilitar a
apropriação do acervo pelos interessados. Uma das fórmulas interessantes é a de
escrever em conjunto (investigadores-intervenientes e atores do terreno em
questão) um documento acessível a todos que poderá depois servir de objeto de
debate e de instrumento de trabalho (Teiger & Leal Ferreira, 2015).
Contudo, a elaboração e posterior publicação de um tal documento,
necessariamente muito demoradas, não têm qualquer valor académico nem
profissional; a sua realização está, portanto, dependente da disponibilidade e
da boa vontade dos autores-atores. Merece outro apoio e outro reconhecimento.
5. Uma evolução teórica alimentada pelos conhecimentos vindos da prática do
terreno
Um último efeito importante do contacto de G.F. com o terreno traduziu-se na
evolução da sua teorização sobre o trabalho em cadeia, o seu tema de
investigação. Forma emblemática da racionalização do trabalho e etapa histórica
do desenvolvimento da sociedade industrial, este trabalho em cadeia representa
inicialmente para G.F. um “mal necessário”, enquanto não se realizarem os
esperados benefícios da automatização que será sempre libertadora. Ora este
ponto de vista, que é o aspeto mais conhecido do pensamento de G.F., vai
evoluir (Rot & Vatin, 2004) em função dos resultados empíricos dos estudos
e investigações levados a cabo em diferentes terrenos pelos seus colegas e
discípulos, e, também, em função das suas experiências diretas em situações
industriais em diferentes contextos nacionais contrastantes (França, URSS,
EUA).
Lendo os primeiros textos de G.F., e em particular a sua comunicação de 1941,
só publicada em 1948, somos confrontados com uma ambivalência: admiração, até
fascínio, pela proeza técnica que representa o trabalho em cadeia, símbolo
mesmo do maquinismo e da racionalização do trabalho industrial; mas, ao mesmo
tempo, deceção e rejeição de uma forma nefasta de exploração da pessoa humana
perante a qual ele não pode ficar insensível. No inicio, G.F. toma uma posição
contra “o concerto de maldições e lamentos” que tende a explicar a crise do
mundo moderno pelo reinado desumanizante da máquina, tentando demostrar que o
drama social evidenciado pela “grande crise” não se deve à técnica mas sim ao
capitalismo. Posteriormente, ele adoptará novos argumentos técnicos, em
particular após os trabalhos de A. Touraine [23], e reconfigurará a sua
análise, enriquecendo-a com os seus “inquéritos” realizados na Rússia, nos EUA
e em França (Alaluf, 2012). Em seguida, no seu importante artigo, “La grande
aventure” (“A grande aventura”), editado em 1962, G.F. confirmará essa
reorientação teórica e relegará o radicalismo dos seus primeiros trabalhos.
Passa, então, a defender a tese da convergência dos sistemas capitalista e
socialista, expressões gémeas da mesma “civilização técnica”, enquanto antes a
sua análise pretendia distinguir o “bom” maquinismo (socialista) do “mau”
(capitalista). Que importa o quadro político quando se está “preso” à linha de
montagem: “E cinquenta horas por semana de trabalho na linha de montagem de
motores numa fábrica de tratores ou de automóveis, são elas mais “atraentes” em
Gorki do que em Detroit?” (Rot & Vatin, 2004: nota 69, tradução livre).
Podemos constatar um processo de evolução análogo, em ergonomia, com A. Wisner.
Com efeito, este começará por realizar pesquisas experimentais, mas sem nunca
se comprometer na utilização dos seus resultados, tendo depois adoptado uma
nova postura implicando o estudo direto no terreno. Mesmo se tal perspetiva era
então considerada pelo meio científico como “literatura”, não digna, pois, de
publicação nas revistas científicas. Porém, A. Wisner descobre que os “dois
primeiros estudos realizados com os sindicalistas colocaram ao nosso
laboratório questões totalmente novas: metodologias, ciências necessárias ao
nosso progresso e relações com a vida social. Trata-se de uma verdadeira
reviravolta!”. Mas “ir para o terreno não significa renunciar a estabelecer
factos científicos novos. Para retomar as palavras do psicólogo inglês Tom
Singleton: “Eu preocupo-me com psicologia fundamental, por isso é que vou aos
locais de trabalho” (Wisner, 1985, p. 30, tradução livre).
Esta será a minha palavra final!