As greves e a austeridade em Portugal: Olhares, expressões e recomposições
Introdução
Ao cenário de austeridade que nos últimos anos se abateu sobre a periferia da
zona euro estão associados fenómenos como o desemprego, a precariedade, as
desigualdades, a pobreza ou a conflitualidade (Standing, 2011; Campos Lima e
Artiles, 2011; Costa, 2012a; Santos, 2012; Ferreira, 2012; Estanque, 2013;
Estanque, Costa e Soeiro, 2013). Tomando por referência o caso português,
procuramos neste texto situar o lugar do conflito, mais precisamente da greve,
em contexto de austeridade. É nossa convicção que o potencial de contestação é
significativo. Desde logo, porque são direitos laborais e sociais que estão a
ser postos em causa, os quais se projetam muito para além da esfera
socioprofissional, afetando as vidas das pessoas. Em todo o caso, e em aparente
contradição com o incremento das razões para contestar, vivem-se tempos
difíceis para mobilizar a arma da greve, tanto mais que a austeridade tem o
condão de levar muitos trabalhadores a recear que mais protesto possa
significar maior risco de perda de emprego. Por outro lado, a crescente
informalização e descontratualização das relações laborais, acentuada por
sucessivas medidas e reformas políticas, coloca desafios e dificuldades à
utilização deste instrumento.
No caso português, a austeridade resultante do Memorando de Entendimento
celebrado em maio de 2011 entre o governo português e a Troika ' constituída
pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Central Europeu (BCE) e a
Comissão Europeia (CE) ', bem como da atuação do governo português, refletiu-se
na legislação laboral em vigor em Portugal desde agosto de 2012 (Lei 23/2012).
De forma muito resumida, tais medidas traduzir-se-iam em pontos como:
atribuição de maiores concessões à empresa sobre quem escolhe despedir em caso
de extinção de posto de trabalho; despedimento por inadaptação mais abrangente;
corte nas horas extraordinárias; banco de horas por negociação individual:
redução nas indeminizações em caso de despedimento; redução de férias; corte
nos feriados; possibilidade de encerramento das empresas nas pontes; regime de
faltas alterado; redução de obrigações perante a inspeção do trabalho;
possibilidade de trabalhar durante seis horas consecutivas (Costa, 2012b; Leite
et al, 2013).
Estas reformas no mercado de trabalho parecem evidenciar que a austeridade está
a reforçar as assimetrias nas relações laborais e a penalizar fortemente o
fator trabalho. O que, de resto, se refletiu não só no aumento de formas de
emprego precário ' que representam cerca de 30% do emprego total, com
incidência particular entre o grupo etário dos 15 aos 34 anos, onde atinge
valores próximos dos 50% (Estanque e Costa, 2012) ', assim como nos números do
desemprego, que em junho de 2013 atingiu mesmo os 17,4% (sendo 12,1% na zona
euro e 10,9% na UE/27), não obstante que em dezembro de 2013 se tenha registado
uma descida para os 15,4% (sendo 12,% na zona euro e 10,9% na UE/28) (Eurostat,
2014).1
Mas além destes, outros sinais perturbadores para as relações laborais decorrem
das medidas de austeridade: perda de autonomia dos parceiros sociais, sobretudo
dos sindicatos, que veem a sua posição ainda mais subalternizada; maior tensão
nas relações entre os próprios atores das relações laborais (inclusive dentro
do campo sindical); reforço das assimetrias no mercado de trabalho,
designadamente entre classes de rendimentos elevados e classes de rendimentos
baixos, ou na relação entre setor público e setor privado; forte diminuição do
poder de compra das famílias; maior empobrecimento do setor produtivo; não
redução do défice de competitividade das empresas; menor controlo por parte da
Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT), uma vez que as empresas deixam
de ser obrigadas a enviar à ACT o mapa do horário de trabalho ou o acordo de
isenção de horário; etc. (Fernandes, 2012; Rebelo, 2012; Gomes, 2012; Costa,
2012b; Leite et al., 2013).
Qual é, neste contexto, o papel, a importância e as modalidades do exercício da
greve? Sendo verdade que a greve funciona como a principal expressão do
fenómeno da conflitualidade, os resultados das demandas sindicais (expressos em
greves, por exemplo) tendem a arrastar-se no tempo, sendo isso, desde logo,
mais evidente em contexto de crise e recessão (Hyman, 2012). De igual modo, a
frequência das greves e a participação dos trabalhadores nelas é mais uma
medida da conflitualidade de um sistema de relações industriais do que da força
sindical e só deve ser utilizada com reservas e em conjunto com a consideração
de outras variáveis como uma medida da capacidade de mobilização sindical
(Stoleroff, 2013: 231).
Não deixando de ter em conta estas advertências, este texto divide-se em três
partes. Na primeira suscitam-se alguns olhares sociológicos e cruzamentos
analíticos sobre a greve. Na segunda parte valoriza-se um recorte quantitativo
e procura-se apurar se o potencial teórico de conflitualidade se verifica em
termos concretos. Por fim, relata-se uma experiência de greve de trabalhadores
de um setor específico e precário ' os trabalhadores da Linha Saúde 24 ' que
permite avaliar em simultâneo os desafios que se colocam à ação sindical, bem
como refletir sobre novas formas de organização do conflito social.
1. Olhares sociológicos sobre a greve
Uma análise sociológica da greve em contexto de austeridade (mas não só) é
passível de incorporar vários olhares e, consequentemente, várias articulações.
a)Greve, democracia e regulação sociojurídica. Há mais de meio século, Lewis
Coser (1956), ao cruzar análise de conflitos e estrutura social, considerava
necessário distinguir os conflitos consoante estes ocorressem em sociedades
democráticas ou autoritárias. Se um conflito ocorresse numa sociedade
democrática tenderia a ser tolerado, o que no fundo permitia constatar que,
enquanto direito democrático, o direito de greve estava (e está) conotado com a
ideia de liberdade de associação (IUR, 2013: 2). Por sua vez, ao ter lugar
numa sociedade autoritária o conflito ou não seria permitido ou seria
severamente reprimido.
As cinco greves gerais ocorridas em Portugal entre novembro de 2010 e junho de
2013 evidenciam, assim, que em contexto democrático o exercício da greve é
reconhecido como direito elementar e crescentemente integrado em formas de
regulação social. De resto, a ideia de institucionalização dos conflitos
(Dahrendorf, 1981) ou das válvulas de segurança (Coser, 1956) está de certo
modo corporizada na ideia do pré-aviso. Ou seja, num contexto democrático a
greve é regulada de forma positiva, de modo a ajustar as partes em confronto,
de modo a não comprometer irremediavelmente à partida a relação entre essas
partes. E, aliás, associada a essa ideia de regulação social positiva está uma
dupla rejeição: de que se podem encontrar soluções definitivas para os
conflitos; de que se resolvem conflitos com mais conflito/repressão. Daí os
pressupostos para controlar positivamente os conflitos: i) inevitabilidade dos
conflitos; ii) considerar que esta inevitabilidade não significa resignação;
iii) importância do reconhecimento das diferenças entre as partes envolvidas
(governo-sindicatos; sindicatos-patrões, etc.); iv) as organizações envolvidas
representam interesses efetivos dos seus membros; v) importância fundamental de
definir regras de procedimento que ajudem a diminuir as diferenças (Dahrendorf,
1981). No caso português, a definição de serviços mínimos, apesar de poder
não ser consensual e estar condicionada a decisões dos juízes dos colégios
arbitrais, parece igualmente caminhar no sentido de um compromisso regulado
para um grau mínimo de adaptação e integração das partes envolvidas (e da
sociedade no seu todo), designadamente de antecipação/preparação face à
ocorrência de uma greve, independentemente dos ganhos e perdas que dela possam
decorrer para os vários protagonistas envolvidos.
Constata-se hoje, porém, que as dinâmicas da austeridade, com a crescente
precarização das relações laborais, além de poderem paralisar, pelo medo, o
recurso à greve, fazem também com que o exercício desta ressurja como ato
selvagem e não reconhecido legalmente, como veremos no nosso estudo de caso.
Num contexto de desdemocratização da democracia (Rosas, 2012), multiplicam-se
as situações em que o exercício da greve é atirado para fora da regulação
social, dado que o próprio trabalho é crescentemente empurrado para fora do
contrato.
b)Ideologia(s), ação coletiva e consciência individual. Dir-se-á que a greve
não é neutra, no sentido em que é condicionada por orientações ideológicas das
organizações sindicais que a convocam. João Freire (2001), por exemplo, associa
a capacidade mobilizadora do sindicalismo a um conjunto de ideologias: a
reformista, também designada de trabalhista, nórdica, anglo-saxónica ou
democrática, caracterizada pela defesa dos interesses imediatos dos
trabalhadores e defendendo reformas na sociedade e no Estado no sentido de uma
maior abertura democrática, nomeadamente pela articulação com partidos da área
socialista; a sindicalista-revolucionária, caracterizada por ideias anarquistas
ou libertárias, negando o papel dos partidos e propondo o movimento sindical
como agente de uma transformação radical das sociedades capitalistas; e a
bolchevista, teorizada a partir da revolução russa de 1917, inaugurando um novo
modo de articulação da organização sindical ao partido político de vanguarda,
que ficou conhecida pela expressão correia de transmissão.
Ideologias convergentes ou próximas reúnem, assim, as condições para uma ação
coletiva consistente, ainda que as políticas de austeridade (também elas
ideologicamente orientadas) tenham tido o condão de aproximar, mesmo que por
vezes apenas conjunturalmente, organizações sindicais com ideologias distintas.
Isto é, a austeridade permitiu criar articulações em torno de interesses
concretos, criando momentos de unificação de diferentes ideologias e correntes
sindicais contra a ideologia do governo. Isso sucedeu, por exemplo, com a
realização de três greves gerais conjuntas entre Confederação Geral dos
Trabalhadores Portugueses (CGTP) e União Geral de Trabalhadores (UGT), como é
sabido duas organizações guiadas por orientações ideológicas conflituantes. Tal
sucedeu com as greves gerais de 24.11.2010 (contra os anunciados cortes entre
3,5% e 10%, a partir de janeiro de 2011, dos salários dos funcionários públicos
com rendimentos acima de 1500 euros), de 24.11.2011 (contra os cortes dos
subsídios de férias e natal aos funcionário públicos em 2012, assim como da
sobretaxa de 50% em sede de IRS do subsídio de Natal) e em 28.06.2013 (em
resultado dos cortes previstos no Documento de Estratégia Orçamental e,
portanto, das medidas associadas à reforma do Estado: reforma aos 66 anos;
prolongamento do horário da função pública das 35 para 40 horas semanais;
redução de férias; aumento das contribuições para a ADSE; redução de 30 000
funcionários públicos; regime de mobilidade especial, etc.). Ainda assim,
noutros momentos, a tensão entre centrais sindicais sobressaiu.2
Mas mesmo que a ação coletiva finte a ideologia, a decisão de fazer greve não
deixa de ser também individual. Embora a convocação de uma greve resulte de uma
decisão legitimada pelo coletivo, com base no consenso dado pelos associados de
uma determinada associação sindical e não apenas pelos órgãos de direção, a
decisão de fazer ou não fazer greve é, afinal, da responsabilidade de cada
cidadão/ã. Aliás, Mancur Olson (1998), ao reportar-se ao paradoxo da ação
coletiva, considerou que a mobilização dos atores individuais para a obtenção
de bens coletivos (por exemplo um bem em que todo o grupo está interessado e
cujo usufruto não se encontra vedado a qualquer membro do grupo) está sujeita à
intervenção da racionalidade (e do egoísmo) do ator individual. Assim, sempre
que alguém hesita fazer greve por ser incapaz de superar o desafio de vencer o
medo (Silva, 2012), porque afinal fazer greve significa perda de salário e
pode igualmente significar perda de emprego, não está necessariamente contra o
ato coletivo de fazer greve mas a ponderar interesses próprios. No caso que
analisaremos adiante, esta tensão emerge de forma evidente.
c)Escalas, controvérsias e modalidades.A escala em que as greves são mais
frequentes é a nacional, por sinal onde salários, condições de trabalho e
regimes jurídicos são definidos e, portanto, passíveis de discordância e
contestação. É, aliás, uma escala que não está imune a controvérsias públicas:
geralmente entre os que questionam a oportunidade da greve e/ou duvidam da sua
eficácia e os que entendem que recusar hoje a luta é caucionar o retrocesso
imposto pelas políticas governamentais. Os focos de controvérsia têm até por
vezes o condão de recentrar e análise do conflito e fazer com que a discussão
do que está em jogo seja posta em causa quando (de parte a parte) há acusações
que referem que se está a desvirtuar o foco do conflito prejudicando terceiros
(nomeadamente a ideia de que uma greve dos professores aos exames/avaliações
prejudica os alunos que nada têm que ver com o assunto, ou a ideia de que uma
greve dos enfermeiros tem como principais vítimas os utentes). A situação
inversa também é equacionável quando o suposto prejuízo para uns pode
significar benefício para outros: por exemplo, uma greve de transportes
públicos pode ser penalizadora para utentes que deles se servem e ao mesmo
tempo ser benéfica para os taxistas que, assim, poderão ter mais clientes.
Sendo certo que o espaço público e o espaço mediático se estruturam ainda
dominantemente à escala nacional (desde logo pela questão da língua e da
identificação em torno de comunidades políticas nacionais), uma greve
transnacional (envolvendo vários países e estruturas sindicais) teria
certamente uma outra visibilidade e um outro impacto. Porém, no contexto
europeu e mundial, é raro falar-se em greve europeia/mundial (Costa, 2008;
2010).3 E embora o Tribunal de Justiça da União Europeia, a propósito dos casos
Vikinge Laval,4 tenha explicitamente reconhecido o direito à greve com um
direito fundamental protegido por legislação da UE e internacional (pelos
padrões da Organização Internacional do Trabalho), a interpretação sobre o modo
como esse direito poderia ser exercido no mercado interno da UE acabou por
conceder primazia às liberdades económicas fundamentais. Com efeito, o direito
à greve foi visto como uma restrição às liberdades económicas que apenas
poderia ser justificado em casos individuais e dentro de um enquadramento
interpretativo de estrita condicionalidade e proporcionalidade (Brunn, 2013: 8;
Giubboni e O'Brien, 2009: 9-10).
Por outro lado, além das escalas e das controvérsias e obstáculos
sociojurídicos que lhes estão associados ' e que apontam por vezes para uma
certa marginalização da greve (Giraud, 2005) ', importa situar as modalidades
da greve. Já aqui nos reportámos à ideia de greve geral, um tipo de greve que
é suposto agregar a indignação de toda a sociedade. Mas é importante mencionar
também as greves de âmbito setorial (como por exemplo greves no setor dos
transportes, muito diretamente afetado também por cortes salariais ou processos
de privatização) ou greves setoriais protagonizadas por categoriais
socioprofissionais afetadas pela austeridade (como o caso dos professores ou
dos enfermeiros). Muitas vezes, tais protestos setoriais e socioprofissionais
acabam por ter também um alcance nacional e extensível a todo o país ' como foi
por exemplo o caso da greve dos professores às avaliações e exames, em
resultado do aumento do horário de trabalho das 35 para as 40 horas no setor
público, ou do regime de mobilidade (requalificação) ' mesmo que também tenha
sido frequente em Portugal nos últimos três anos o recurso à modalidade de
greve parcial (muitas vezes coincidindo com momentos de hora de ponta), por
sinal uma modalidade que em parte se explicará como forma de não pesar tanto
sobre os bolsos de quem faz greve, tanto mais que não há em Portugal tradição
de fundos de greve5.
A relação entre setor público e setor privado perpassa também as modalidades de
greve. Sobretudo quando a greve se diz geral, é suposto que ela abarque tanto
o setor público como o privado. Dir-se-á que o ato de fazer greve envolve
tradicionalmente um maior sentimento de medo e insegurança entre os que
trabalham no setor privado do que os que o fazem no setor público, o que em
parte explica, de acordo com o estudo de Rebelo e Brites (2012: 74), também que
o peso maior (40,1%) de quem fez greve se encontra na administração pública. No
entanto, como os funcionários públicos têm sido severamente atingidos pelas
medidas da austeridade, não surpreende que o receio de perda de vínculo ao
Estado seja acompanhado por um receio por parte daqueles de participar em
greves.
d) Temporalidades e resultados.A greve cruza-se com a dimensão temporal não só
no antes, mas também no durante e no depois. O grau de definição dos
objetivos visados com a greve remete-nos para as razões que justificam a greve.
Retomando Lewis Coser (1956), estamos por vezes diante de uma tensão entre
objetivos alcançáveis e não alcançáveis e a expressão da greve (quer no
durante e no depois) é guiada por essa tensão. Segundo Coser, quando os
conflitos são realísticos, ou seja, assentes em resultados alcançáveis, isso
permite que se definam alternativas quanto aos meios para visar certos
objetivos. Por outro lado, quando o conflito se apoia em objetivos não
alcançáveis, então tende a radicalizar-se a relação entre os antagonistas e o
envolvimento emocional, traduzido em ataques entre os antagonistas, pode mesmo
despontar.
A duração da greve traduz greve a acontecer. Em Portugal são comuns jornadas de
luta de um dia (como tem sucedido com as greves gerais), ainda que as greves
possam prolongar-se por uma semana ou duas semanas, dependendo dos setores de
atividade. Não havendo, como se deu conta, tradição de fundo de greve em
Portugal, a sua maior duração poderá estar dependente da capacidade criativa
dos protagonistas para aguentar o conflito.6
Mas o pós-greve (o depois) é talvez o momento mais importante de uma
conceção da greve enquanto processo. E é-o no sentido em que aponta para
impactos, eficácia, resultados e, portanto, permite ponderar o grau de alcance
(ou não) dos objetivos visados pela greve. Na verdade, como essência do poder
sindical (IUR, 2013: 2), o exercício do direito de greve ao longo de muitas
décadas traduziu-se em múltiplas conquistas e avanços civilizacionais quer do
ponto de vista das condições de trabalho (redução de horários, articulação
trabalho/vida familiar, defesa dos postos de trabalho, proibição de
despedimento sem justa causa), quer do ponto de vistas das retribuições
pecuniárias (instituição de um salário mínimo nacional; aumentos salariais
substanciais; um mês de férias pagas com respetivo subsídio; 13.º e 14.º mês),
etc. No fundo, trata-se de agir contra a corrente, de agir para transformar
(Silva, 2002) com o intuito de obter benefícios e concessões (Dias, 2012:
114).
Não obstante reportarmo-nos, na secção seguinte, à expressão quantitativa das
greves, os resultados de uma greve estão longe de se medir apenas por um
critério quantitativo, assente na simples resposta à questão: qual foi a taxa
de adesão?. Sendo certo que a resposta a esta pergunta é essencial ' tanto
mais que se destina a medir o impacto imediato da greve ', não é menos verdade,
como se sabe, que tal medição é suscetível de vários enviesamentos e tensões
entre argumentos políticos e técnicos entre as partes em confronto. Assim
sendo, consideramos que a greve pode produzir resultados que vão além dos
impactos imediatos, até porque as próprias controvérsias em torno da eficácia
ou do carácter inócuo das greves não ficam resolvidas no dia seguinte
(Estanque, 2010).No fundo, os resultados das greves devem ser analisados à luz
do grau de alcance dos objetivos (de ambas as partes), o que pode suceder no
curto, médio ou longo prazo (Costa, 2011).
O facto de, em muitas situações, não transparecer para a opinião pública uma
ideia de objetivos/resultados cumpridos de modo imediato pode criar uma certa
descrença na greve enquanto arma de luta a médio/longo prazo. Voltando ao
estudo de Rebelo e Brites (2012: 75-77), constata-se o seguinte face à pergunta
Que resultados obteve da última vez que fez greve?: para 51,5% (dos 369
inquiridos) a resposta é nenhuns; para 32,5% foram alcançados resultados
parciais; apenas 6,5% se declararam inteiramente satisfeitos por terem
conseguido resultados totais. Esta visão pragmática e pouco otimista sobre a
eficácia das greves parece mesmo contagiar os discursos das lideranças
sindicais menos habituadas a colocar a greve à frente da negociação.7 O que
pode também ser visto não só como um recuperar do viés ideológico que perpassa
os discursos sindicais, bem como mais um reflexo dos efeitos perversos das
políticas de austeridade.
2. Expressão quantitativa das greves
Já se disse que a greve se inscreve no repertório histórico de ação coletiva do
sindicalismo. Por outro lado, também já se advertiu que a greve, por si só, não
constitui um indicador de força ou de capacidade de mobilização sindical. E,
aliás, a força sindical é determinada pela capacidade das organizações
sindicais(confederativas e sectoriais ou locais) em mobilizar vários tipos de
recursos e obter parcial ou inteiramente os seus objetivos. Assim, o conceito é
composto tanto por indicadores quantitativos como qualitativos e refere-se
inter aliaaos recursos organizacionais, nomeadamente a sindicalização, o
desenvolvimento da organização sindical, a influência dos sindicatos junto dos
partidos políticos e do Estado, os seus aliados, bem como às capacidades
mobilizadorasdos sindicalizados e demais trabalhadores, ao poder negocialdos
sindicatos e ao grau de institucionalizaçãoobtido pelos sindicatos num sistema
de regulação socioeconómico, de que a extensão/cobertura e efetividade da
contratação coletiva e a concertação social são dimensões importantes
(Stoleroff, 2013: 224).
Na base da força sindical está a sindicalização, ou seja, o número absoluto de
sócios de um sindicato, bem como a densidade sindical num dado setor
(coeficiente entre o número de sindicalizados e de trabalhadores assalariados
no mesmo setor). Estes constituem elementos centrais para aferir da
representatividade e da influência dos sindicatos no campo das relações
coletivas de trabalho, na sua relação com outros atores sociais e políticos,
mas igualmente na sociedade em geral (Pedersini, 2010). Mas mesmo não sendo a
sindicalização o único critério para aferir da influência social dos
sindicatos, ela é um dos seus recursos fundamentais (Sousa, 2011: 5), pois da
sua força organizacional dependerá a capacidade de envolver o maior número
possível de membros na atividade quotidiana da organização, de assumir tarefas
de representação nas mais diversas instâncias, bem como a prossecução dos seus
objetivos, através da mobilização e da conquista do apoio dos trabalhadores em
geral. E, naturalmente, as quotizações dos sócios constituem a principal fonte
de receita das organizações sindicais, das quais dependem os meios e recursos
necessários à sua atividade. Tal é ainda mais notório em países onde não existe
qualquer tipo de subvenção estatal aos sindicatos, como é o caso português.
Embora não exista uma relação de causalidade entre sindicalização e número de
greves, esta primeira é uma condição propiciadora de uma maior capacidade de
mobilização coletiva e, como tal, do potencial recurso à greve. É por isso que,
num primeiro momento, reconstituímos, com base na informação disponível, uma
série estatística longa das greves em Portugal mas também um indicador de força
sindical que é a densidade sindical. Posteriormente, concentra-se a análise
sobre o período mais recente, de 2007 em diante, tentando desde logo perceber
se se verificou um aumento do número de greves oficiais8, quais os setores que
mais se mobilizam, a sua agenda de reivindicações e a sua eficácia.
Da análise do Quadro_19 pode constatar-se uma tendência longa de decréscimo,
quer dos indicadores de filiação e densidade sindical, quer das estatísticas da
greve, apesar da existência de alguns períodos de inflexão ou abrandamento
dessa tendência.
O período de maior capacidade de mobilização e ação coletiva, sob a influência
de um discurso classista que advogava a superação do capitalismo, ocorre na
segunda metade da década de 1970, quando na Europa a concertação social
tripartida era já a regra (Santos, 2004: 161-162). O número de sindicalizados e
a densidade sindical atingem os valores mais elevados (60,8% em 1978), uma
herança parcial da sindicalização obrigatória do Estado Novo, mas também um
elevado número de greves (367 em 1976). Em meados dos anos 80, inicia-se um
processo paulatino de decréscimo da sindicalização enquanto a atividade
grevista atinge níveis elevados (756 greves em 1981). Até ao início dos anos 80
foram desenvolvidas lutas para o estabelecimento da contratação coletiva,
processo esse que continuou no início da década de 80 e que manteve a
conflitualidade, mas com uma intensidade menor. Desde o início dos anos 80 até
1985, as greves expressaram lutas para defender as conquistas de Abril e
desestabilizar os governos da direita e do bloco central (Stoleroff, 2013:
231).
No que diz respeito à sindicalização, após um decréscimo acentuado na década de
80 (de 54,8% em 1980 para 32% em 1989), essa quebra persiste na década de 90,
embora de forma menos acentuada. Neste processo verificou-se uma alteração da
composição sociológica da sindicalização. À diminuição dos setores da indústria
correspondeu um aumento do peso de empregados no setor dos serviços,
nomeadamente da Administração Central e Local (MTSS, 2006: 68), contingente
esse que impediu uma quebra mais acentuada dos níveis de sindicalização.
A data de entrada na Comunidade Económica Europeia, que coincide grosso modo
com a institucionalização da concertação social com a participação dos
sindicatos, marca uma tendência forte de decréscimo do número de greves (apenas
invertida em 1989, com 307 greves e 296 000 grevistas), até atingir um mínimo
histórico de 99 greves em 2007, envolvendo cerca de 29 200 trabalhadores.
Neste contexto, uma hipótese a explorar prende-se com a possibilidade de esta
tendência decrescente se ter invertido no período mais recente, mesmo que de
forma temporária, como expressão ' não a única, mas sem dúvida relevante ' do
conflito sociolaboral em torno das medidas implementadas nos sucessivos pacotes
de austeridade. A ausência de dados disponíveis para 2008 e 2009 impede a
possibilidade de acompanhar a evolução ao longo de todo o período recente,
quando a crise financeira internacional começava já a produzir efeitos de
contágio nas dívidas soberanas, e as medidas de restrição orçamental e de
transformação da regulação laboral se começaram a fazer sentir em países como
Portugal.
Deste modo, se tivermos em consideração a informação disponível para os anos de
2010, 2011 e 2012, verifica-se de facto uma inversão do valor mínimo registado,
quer em número de greves, quer em número de trabalhadores em greve. Assim, em
2010, o número de trabalhadores em greve aumenta, em relação a 2007, para cerca
de 72 300; em 2011 desce para valores próximos de 59 000; mas regista uma
grande subida em 2012, ano em que foram contabilizados cerca de 93 100, valor
mais elevado desde 1994.
Em primeiro lugar, é de assinalar que houve neste período (2010-2012) quatro
greves gerais convocadas pela CGTP, duas delas em conjunto com a UGT, com pré-
avisos de greve que cobriram todos os setores de atividade económica. Em
segundo lugar, e conforme se pode observar no Quadro_210, os setores que mais
se destacam em termos de atividade grevista são, em números absolutos e por
ordem crescente, as atividades de saúde humana e apoio social (2010 ' 6949;
2011 ' 6822; 2012 ' 14 342), Indústrias transformadoras (2010 ' 22 802; 2011 '
14 781; 2012 ' 21 875) e Transportes e armazenagem (2010 ' 26 189; 2011 ' 21
193; 2012 ' 35 519). Se se considerar o critério da taxa de trabalhadores em
greve por 1000 trabalhadores por conta de outrem (TCO), os transportes e a
armazenagem assumem uma posição de indiscutível destaque, com 204,2 em 2010,
168 em 2011 e 281 em 2012.
Por fim, convém enfatizar que a informação disponível sobre as greves, a partir
de 1986, compreende apenas o setor privado. Assim, e tendo em conta a alteração
da composição sociológica da sindicalização acima referenciada, e a elevada
conflitualidade laboral (recente) no setor da Administração Pública, Central e
Local, pode-se afirmar que as estatísticas das greves se encontram amplamente
subavaliadas (Gall, 2012). Embora não exista uma série estatística para as
greves no setor público, a informação parcelar disponibilizada pela Direção
Geral da Administração e do Emprego Público11 para o período de 2007-2012
permite corroborar essa afirmação.
Tomando o ano de 2007 como exemplo (Quadro_3), da qual existem registos de
quatro greves abrangendo trabalhadores da administração direta e indireta do
Estado, vulgo Administração Central, contabilizam-se 128 578 grevistas, mais do
quádruplo do número para o mesmo ano de todo o setor privado. O mesmo exercício
poderá ser feito para o período posterior de 2010-2012. Mais uma vez, se nos
ativermos à informação disponível no Quadro_3 constatamos que o contingente de
funcionários públicos da Administração Central é extremamente significativo, em
comparação com o número de trabalhadores em greve da totalidade dos setores
privados de atividade económica.
O aumento do número de greves e de trabalhadores em greve não corresponde, no
entanto, a uma maior eficácia na obtenção de resultados. No Quadro_4, que
compila informação das reivindicações por resultado alcançado, pode-se observar
que a esmagadora maioria das reivindicações que deram origem a greves e
plasmadas nos seus pré-avisos foram recusadas. O ano de 2012 é particularmente
emblemático, pois apesar do aumento significativo do número de greves e
trabalhadores em greve, acima identificado, apenas 4,6% das reivindicações
foram aceites, 8,6% parcialmente aceites e 86,7% recusadas. O que, de resto,
parece corroborar a visão expressa por quem faz greve e a que anteriormente
aludimos com base no estudo de Rebelo e Brites (2012).
3. O caso da Saúde 24: uma greve ousada em contexto de austeridade reforçada12
Na década de 2000, um conjunto de mobilizações improváveis de trabalhadores
precários, entre as quais greves em sectores da restauração em França
(McDonalds e Pizza Hut) ou em cal centers italianos (como o Atesia, em Roma,
com milhares de trabalhadores), suscitaram reflexões importantes sobre a
renovação do repertório sindical clássico (Abdelnour et al., 2009; Boumaza e
Pierru, 2007; Choi e Mattoni, 2010; Collovald e Mathieu, 2009; Perrin, 2007).
Também em Portugal emergiram, a partir de 2002, um conjunto de organizações que
se propuseram representar segmentos de trabalhadores precários e cimentar em
torno da precariedade identidades de luta e experiências de mobilização
(Andrade, 2011; Estanque e Costa, 2012; Soeiro, 2009; 2012). A experiência da
greve da Linha Saúde 24 pode ser lida como um exemplo do recurso à arma da
greve no contexto deste tipo de mobilizações, que procuram reinventar o
repertório de luta num quadro de descoletivização, informalização,
individualização e remercantilização do trabalho e numa conjuntura marcada
pelas políticas de austeridade. A partir deste caso concreto, é possível
problematizar as estratégias sindicais e das organizações de precários e o
papel que nelas joga o recurso à greve.
3.1. A Linha Saúde 24: o que é?
Criada em 2006, a Linha Saúde 24 é uma linha telefónica que tem como objetivo a
triagem, o aconselhamento e o encaminhamento em situação de doença. É um
serviço da responsabilidade do Ministério da Saúde para responder às
necessidades manifestadas pelos cidadãos em matéria de saúde, contribuindo para
ampliar e melhorar a acessibilidade aos serviços e racionalizar a utilização
dos recursos existentes,13 esclarecendo dúvidas e encaminhando os utentes para
o Serviço Nacional de Saúde, quando necessário. A Linha funciona todos os dias
do ano, 24 horas por dia e emprega cerca de 400 profissionais, a esmagadora
maioria dos quais enfermeiros, que fazem o atendimento telefónico divididos em
dois call centers localizados em Lisboa e no Porto, com aproximadamente a mesma
dimensão. O vínculo que estes trabalhadores têm com a empresa estabelece-se
através de recibo verde, sendo considerados pela entidade empregadora como
prestadores de serviços, ainda que cumpram horários determinados pela chefia,
tenham supervisores e trabalhem nas instalações da empresa.
A importância da experiência e do conhecimento aprofundado sobre o Serviço
Nacional de Saúde leva a que o recrutamento valorize a ligação dos
profissionais com instituições do SNS, estando a maioria dos enfermeiros-
comunicadores a trabalhar, para além das suas funções na Linha, em hospitais
públicos, sendo que o seu trabalho na Linha constitui um complemento ao seu
salário. Em média, cada enfermeiro trabalha cerca de 18 horas por semana, em
turnos. Mas há também quem faça horários completos e tenha ali a sua única
fonte de rendimento. O retrato sociográfico revela um grupo tendencialmente
jovem, feminizado e qualificado (a formação requerida para a função exige no
mínimo uma licenciatura). A grande maioria tem outros empregos para além do que
ali exercem com vínculo precário. A pertença sindical é muito reduzida, bem
como o é a experiência de ação coletiva no campo laboral.
Por opção governamental, a gestão desta Linha foi entregue a uma entidade
privada, através do modelo da parceria público-privada. Assim, os enfermeiros
são contratados pela Linha Cuidados de Saúde, SA (LCS), uma empresa pertencente
ao Grupo Caixa Seguros e Saúde, SGPS, SA. O contrato de parceria dura até hoje,
apesar de em 2011, aquando do seu término, ter havido um novo concurso público,
ganho por um consórcio encabeçado pela PT, mas cujo resultado acabaria por ser
anulado pelo Tribunal de Contas, que considerou não ter sido garantida a
escolha da melhor proposta (acórdão n.º 1/ 2013 de 8 de janeiro). O novo
concurso público viria a ser ganho por um outro consórcio, envolvendo novamente
a LCS, a Optimus e a Teleperformance. O critério prevalecente na adjudicação
foi o preço mais baixo, tendo este consórcio apresentado uma proposta que
reduzia para quase metade o valor pago por chamada (de 16 para 7). Foi este o
motivo invocado pela empresa para avançar, no início de dezembro de 2013, com
uma proposta de redução salarial significativa do valor pago aos enfermeiros
comunicadores, entre 20% a 50%, e foi em torno dessa decisão que o conflito
laboral se desencadeou levando os trabalhadores a recorrer por duas vezes, no
prazo de menos de um mês, à greve.
3.2. As duas vias do processo de luta
Podemos situar o primeiro período da mobilização dos enfermeiros da Linha Saúde
24 entre o momento em que os trabalhadores tomam conhecimento da proposta da
empresa relativa ao corte nos vencimentos (no início de dezembro de 2013) e a
primeira greve, que acontece a 4 de janeiro de 2014. Neste período, há uma fase
inicial de constituição e estruturação de coletivos de trabalhadores, que os
leva de um grupo secreto do Facebook ' Enfermeiros contra os 7 euros à hora14
' à eleição, em plenários realizados no Porto e em Lisboa, de duas comissões
informais de trabalhadores. A partir daí, parece haver uma estratégia que segue
duas vias paralelas.
Por um lado, existe a via da negociação com a empresa. Ela inicia-se com uma
tomada de posição comum dos enfermeiros-comunicadores e com a consequente
marcação de uma reunião com elementos da administração, processo no qual se
estabelecem os primeiros contactos com o Sindicato dos Enfermeiros Portugueses,
que está presente nessa reunião. Manifestam-se aí também as tensões entre as
comissões informais e a estrutura sindical, em virtude de visões diferentes
sobre o problema, de culturas de intervenção distintas e sobre o tipo de
atitude a adotar. A posição sobre a legitimidade e a pertinência do recurso à
greve estará no centro desse debate, com o sindicato a desaprovar a paralisação
decidida pelos trabalhadores, dado o vínculo os impossibilitar de o fazer de
forma legal e os colocar numa situação de redobrada fragilidade.
Por outro lado, desenvolve-se a via de uma intensa intervenção no espaço
exterior à empresa, tentando mobilizar recursos externos capazes de compensar
uma relação de forças que, no espaço interno, é totalmente desfavorável aos
trabalhadores, dado que estes não têm os mecanismos tradicionais que lhes
poderiam conferir capacidade negocial no quadro da empresa, desde logo
contratos de trabalho ou algum mecanismo de representação coletiva formal. É
neste quadro que pode ser entendido o recurso à Autoridade para as Condições de
Trabalho, as conferências de imprensa, os pedidos de reunião à Direção-Geral de
Saúde, aos Grupos Parlamentares, ao Ministério da Saúde e à Ordem dos
Enfermeiros, contactos que vão sendo efetuados entre meados de dezembro de 2013
até ao fim do mês de janeiro de 2014, ou seja, entrando já pela segunda fase
do processo de luta. Esta segunda linha de intervenção teve nos Precários
Inflexíveis um aliado determinante.
A segunda fase deste processo de luta pode então situar-se no momento em que a
administração da empresa reage, dispensando os serviços de dezasseis
enfermeiros, numa tentativa de assim decapitar o movimento de contestação
entretanto despoletado. Neste período, a causa dos trabalhadores da Linha Saúde
24 assume uma visibilidade pública e mediática maior e extravasa claramente
para o campo político, motivando debates parlamentares (no dia 24 de janeiro,
projetos de resolução sobre o assunto são votados no Parlamento), uma segunda
paralisação (entre 24 e 27 de janeiro), tomadas de posição públicas da Ordem
dos Enfermeiros e da CGTP (ambas nesse dia 27), uma carta de solidariedade com
os trabalhadores subscrita por várias personalidades e esclarecimentos da
administração publicados nos jornais (a 28 do mesmo mês).
3.3. Das redes sociais às comissões informais de trabalhadores
No início do mês de dezembro, a empresa concessionária da Linha Saúde 24
começou a entregar aos trabalhadores uma adenda ao contrato de prestação de
serviços que previa a redução salarial a partir de janeiro de 2014, alterando o
valor auferido de 8,75/hora para 7/hora, e modificando também as regras
remuneratórias das horas de qualidade e do horário noturno, cuja bonificação
podia ir de 25% a 100%. Apesar de no início alguns trabalhadores terem assinado
a adenda, um grupo de enfermeiros apercebeu-se da dimensão do corte e começou a
contestar a proposta. Vários trabalhadores começaram então a recusar assinar a
adenda e foi nessa altura que uma das enfermeiras resolve criar um grupo
secreto no Facebook, cujos conteúdos podem apenas ser visualizados pelos
membros desse grupo, não sendo de acesso público. Para esse grupo, intitulado
Enfermeiros contra os 7 euros à hora, vai convidando os colegas, que o vão
transformando na primeira plataforma de comunicação entre os trabalhadores dos
dois call centers, de Lisboa e do Porto. A tabela que dá conta do valor real da
redução salarial em causa é aí partilhada, faz-se o apelo a que as adendas não
sejam assinadas e planeiam-se aí as primeiras ações e os primeiros plenários
que viriam a acontecer passados alguns dias. Superando a distância territorial
que separava os dois call centers, a resistência contra os cortes começa por
ser organizada no espaço virtual. É no Facebook que começam a afirmar-se as
lideranças do coletivo e é aí também que é identificada a necessidade de
reuniões presenciais.
A primeira destas reuniões acontece em Lisboa, logo no dia 11 de dezembro, numa
sala alugada pelo grupo de enfermeiros nuns escritórios em Telheiras e conta
com cerca de meia centena de trabalhadores que, de acordo com uma enfermeira,
não cabiam dentro da sala. É dessa reunião que sai a decisão de negociar com
a empresa o valor/hora. É também nesse primeiro plenário que se elege, em
Lisboa, a comissão informal de trabalhadores, composta por quatro elementos.
Decide-se, ainda, reforçar os laços com os trabalhadores do Porto, aproveitando
o facto de uma das enfermeiras do call center lisboeta já ter trabalhado ali, o
que lhe permitia ir adicionando os colegas do norte ao grupo do Facebook e
fazer a ponte com aqueles. O grupo de enfermeiros reunidos resolve, para além
da ação junto da administração da empresa, a quem solicitam uma reunião, entrar
em contacto com o grupo Precários Inflexíveis, nomeadamente pelo reconhecimento
da intervenção pública desta organização no âmbito dos chamados falsos recibos
verdes. O apoio dos Precários Inflexíveis permitirá, como se verá adiante,
diversificar as modalidades de ação e sobretudo desenvolver uma estratégia de
conquista da opinião pública, mediatizando o problema, tentando ganhar a
simpatia dos utentes e projetando o conflito laboral dos enfermeiros com a LCS
para fora do espaço da empresa, disputando-o simultaneamente no debate público,
no terreno jurídico e no campo político.
3.4. Do recurso à ACT à reunião com a administração
A primeira ação pública dos trabalhadores foi a entrega de uma queixa à
Autoridade para as Condições de Trabalho, para que se realizasse uma ação
inspetiva que verificasse a legalidade do vínculo estabelecido entre a LCS e os
enfermeiros. O reconhecimento da relação laboral tornava-se decisivo, dado que
só nesse quadro os enfermeiros poderiam acionar as proteções, algumas
modalidades de ação coletiva e o tipo de negociação previsto entre
trabalhadores subordinados e entidade empregadora. Paralelamente, a
administração foi confrontada com uma tomada de posição comum dos
trabalhadores, através de um abaixo-assinado que contestava o conteúdo da
adenda proposta e que propunha à empresa o início de um processo de negociação
sobre o valor pago aos enfermeiros. É na sequência desse documento, subscrito
por cerca de 300 trabalhadores, que acontece a primeira reunião com o porta-voz
da administração.
De acordo com as enfermeiras entrevistadas, nenhum dos membros das comissões
informais de Trabalhadores tinha experiência sindical prévia. O contacto com o
Sindicato dos Enfermeiros Portugueses é feito, sobretudo, pelo grupo do Porto.
A salvaguarda da autonomia na direção do processo de luta é enfatizada,
nomeadamente a propósito dessa reunião. Nas palavras de uma das trabalhadoras:
Ficou patente desde o início que quem iria negociar seriamos nós, até
porque ele [dirigente sindical] disse que não nos podia representar
mesmo que estivéssemos sindicalizados por causa do vínculo laboral
[ ].
A reunião com o administrador não produz os efeitos desejados pelos
enfermeiros. Na verdade, a direção da empresa recusar-se-á, a partir daí, a
receber os elementos das comissões informais de trabalhadores. Pelo contrário,
valorizará o diálogo com o Sindicato.
A administração não aceita reunir connosco, só com o sindicato, que
acha bem porque assim evitávamos represálias. Foi quando eu quis
criar representantes do sindicato dentro da linha, mas o sindicato
não aceitou porque nós éramos recibos verdes.
Na sequência da tentativa de abrir um processo negocial com a empresa, segue-se
uma fase de multiplicação de contactos, por parte das comissões, com entidades
exteriores à empresa, em busca de apoio e de mediatização da causa dos
enfermeiros. Dois dias depois da reunião com a administração, reúnem com a
Direção Geral de Saúde e tentam implicar a Ordem dos Enfermeiros no conflito
laboral em curso. Em ambos os casos, contudo, o entendimento de que o problema
era de ordem interna à empresa é o que predomina nas instituições
contactadas. O insucesso relativo destas reuniões não significou, para os
trabalhadores, o abandono da estratégia de visibilização do conflito. A
perceção de que era também na opinião pública que podiam ganhar força estava
consolidada entre o núcleo dirigente. A greve que é então convocada para o
início de janeiro resulta do impasse destas primeiras abordagens. Nesta
paralisação, a mediatização e o recurso a formas de resistência que passam por
inundar a linha de chamadas são duas características importantes.
3.5. As duas paralisações e as tensões com o sindicato
A questão do recurso à greve entre trabalhadores sem contrato não é nova. Na
verdade, já em diferentes greves gerais, grupos de trabalhadores a falso recibo
verde tinham problematizado o exercício deste direito no caso dos falsos
prestadores de serviços. Se é verdade que o direito à greve é reconhecido
pela Constituição, que a lei o considera irrenunciável e que está
inclusivamente prevista a possibilidade de ela ser decretada por assembleias de
trabalhadores da empresa e não apenas pelos sindicatos, não é menos verdade
que, do ponto de vista legal, um trabalhador cujo vínculo é considerado
independente está limitado no reconhecimento formal desse direito. No caso
dos enfermeiros da Linha Saúde 24, o recurso à paralisação ' termo recorrente
nas entrevistas realizadas ' foi ponderado e decidido pelas reuniões informais
de trabalhadores como resposta à situação de inflexibilidade da administração e
como ato de solidariedade com os colegas despedidos. Nas palavras de uma
trabalhadora:
a 4 de janeiro havia os supostos contratos que terminavam em janeiro,
às pessoas que não assinaram foram-lhes retirados os turnos todos, e
foi a partir daí que se decidiu essa primeira paralisação como forma
de protesto em relação a esses primeiros despedimentos.
A greve foi o grande momento de visibilidade pública do conflito, dada a
atenção mediática que lhe foi conferida. Foi o momento em que a luta dos
enfermeiros transbordou claramente para o espaço público, obrigando também os
responsáveis da LCS a responder publicamente à ação dos trabalhadores.
Desde o início do processo, a relação com o Sindicato não foi isenta de
tensões. Parece faltar um entendimento comum sobre a natureza do vínculo, o que
conduzirá à ideia de que, trabalhando aqueles enfermeiros a recibo verde,
algumas modalidades de luta lhes estão vedadas ' a greve, por exemplo ', a qual
o sindicato não pode legalmente decretar. De acordo com um dos trabalhadores:
O sindicato era contra [ ] porque dizem que como nós somos recibos
verdes a greve não se aplica a nós, eles não podem decretar a greve.
Num hospital eles podem decretar greve, connosco não.
Outra trabalhadora afirma:
[ ] Parámos a linha à revelia do sindicato [ ] Mas essa paralisação
teve muita visibilidade, comunicação social no Porto, comunicação
social em Lisboa, não se falou noutra coisa nesse dia. E então o
sindicato queria visibilidade, já esteve no final do dia a falar na
televisão.
A primeira paralisação tem uma adesão massiva, cerca de 70%, considerando os
dois call centers, sendo mais forte no Porto. É na sequência dessa greve que a
empresa reage, dispensando 16 trabalhadores, entre os quais os que haviam
dirigido a luta. É também em protesto contra os despedimentos que a segunda
greve acontece, no dia em que o Parlamento rejeita dois projetos de resolução
que incidiam sobre a regularização contratual da situação dos enfermeiros da
Linha e sobre a gestão pública do serviço. Mais uma vez, o recurso à greve não
mereceu a concordância do sindicato.
Estas tensões serão exploradas pela própria direção da empresa, que recusará
reunir com as comissões informais de trabalhadores, que são quem conduz o
processo de luta, mas receberá por várias vezes o sindicato, com quem tentará
negociar diferentes acordos. No esclarecimento publicado nos jornais no final
do mês de janeiro, a administração não se limita a não reconhecer a paralisação
dos trabalhadores como um ato de greve ' considera-o um boicote à atividade da
LCS ' mas estabelece também uma distinção clara entre sindicato e comissões,
registando que esse boicote foi promovido pela comissão ad hoc de
enfermeiros entretanto criada, à margem da estrutura sindical representativa
destes profissionais.15
3.6. Do conflito laboral ao conflito político
A passagem do conflito dos enfermeiros com a administração da Linha Saúde 24
para o campo político confere-lhe uma visibilidade acrescida. Logo em meados de
dezembro, a comissão informal de trabalhadores envia uma carta aos grupos
parlamentares, onde o problema é apresentado a partir dos possíveis impactos
negativos decorrentes da qualidade da Linha, salientando por isso as
consequências da decisão não tanto para os trabalhadores (redução da
remuneração), mas para os utentes (a qualidade do serviço prestado), de modo a
que a questão fosse vista para além da sua dimensão estritamente laboral.
O grupo de enfermeiros é recebido pelos grupos parlamentares do BE, PCP e PSD.
Na sequência desses encontros, dois desses partidos apresentam projetos de
resolução na Assembleia da República, que seriam discutidos e votados no
Plenário da Assembleia da República no dia 24 de janeiro de 2014.
No debate parlamentar, BE e PCP defenderam as suas propostas, criticando a
direção da empresa e considerando que a celebração de contratos de trabalho era
da responsabilidade do Governo. O PS considerou que o Ministério da Saúde
deveria intervir de forma a que este serviço não seja colocado em causa. Pelo
seu lado, o PSD, pela voz da deputada Graça Mota, defendeu tratar-se de uma
questão eminentemente do foro laboral entre a empresa privada e os
profissionais que nela prestam serviço, considerando que não se deve falar de
trabalho dependente, mas, sim, de prestação de serviços de um modo geral. Os
projetos seriam chumbados, merecendo os votos favoráveis do PS, PCP, BE e Os
Verdes e os votos contra do PSD e do CDS, partidos que suportam o Governo.16
A politização do conflito é percecionada de modo ambivalente pelos
trabalhadores, que reconhecem o seu efeito na projeção pública do conflito '
foi útil, sem dúvida, isto conseguiu-nos dar toda a visibilidade que nós temos
neste momento ' mas também o facto de, desta forma, a sua luta laboral se ter
transformado numa questão partidária, já que, sendo o administrador do PSD,
eles estariam a pagar por tabela.
O alargamento das alianças e a transformação deste conflito numa luta
exemplar que extravasa a empresa não passou apenas pelo debate parlamentar. No
dia 28 de janeiro é divulgada uma carta subscrita por 33 personalidades:
sindicalistas, especialistas em Direito do Trabalho, académicos, artistas e
ativistas precários. Nela, considera-se que o despedimento dos enfermeiros da
Linha Saúde 24 constitui um ataque não apenas a estes trabalhadores, mas a
toda a cidadania, e uma ameaça à democracia, porque viola o direito à livre
expressão e organização, sendo por isso urgente defender a democracia,
defendendo para isso as pessoas que trabalham na Linha Saúde 24.
Uns dias depois, os enfermeiros entregam junto da Autoridade para as Condições
do Trabalho um conjunto de elementos de prova visando o acionamento da Lei
contra a Precariedade. No final de fevereiro, o relatório da ACT daria razão a
alguns trabalhadores, tendo estes proclamado uma vitória neste terreno e
iniciando-se assim um processo judicial, que ainda decorre, para reconhecimento
dos seus direitos.
Conclusão: a greve ainda é uma arma?
No estudo de caso que apresentámos condensam-se algumas das tendências mais
representativas do processo de degradação da condição laboral em Portugal.
Entre elas está o recurso à subcontratação, nomeadamente por parte do Estado, a
promiscuidade entre interesses económicos e redes de cumplicidade política e
partidária, o recurso aos falsos recibos verdes como mecanismo de contornar
as disposições legais relativas à contratação dos trabalhadores, e a
precarização nomeadamente de segmentos altamente qualificados. É um exemplo
significativo também pelo facto de, contrariando a probabilidade do
consentimento, se ter produzido um acontecimento contestatário. É ainda um
exemplo pelas características da luta sociolaboral ali levada a cabo em
contexto de austeridade: utilização das novas tecnologias como plataforma de
encontro e organização; improvisação de mecanismos informais de representação
num contexto de descoletivização das relações de trabalho; tensões com os
repertórios sindicais clássicos; distância e alguma desconfiança relativamente
à natureza da intervenção sindical; externalização do conflito laboral, que
passa da empresa para o campo jurídico, político e mediático; repressão do
recurso à greve como sendo um boicote ilegítimo.
Ao agudizar as condições de exploração, a era da austeridade abre campo para
uma intensificação do protesto. O exemplo aqui descrito, ou a recente decisão
de criação de um sindicato nacional de trabalhadores de call center(em
resultado de uma reunião de trabalhadores de call center reunidosem Lisboa a
26.04.2014), vem precisamente ao encontro desta ideia. Mas ao intensificar a
precarização, a austeridade também inibe o recurso a algumas das modalidades de
luta mais significativas na história do movimento operário e sindical. Uma
sociologia atenta a este paradoxo deve procurar tornar visíveis e interpretar
formas emergentes do conflito social, de organização sindical dos trabalhadores
e do recurso à greve, mobilizando os instrumentos da reflexividade científica,
também para a luta pelo trabalho digno.