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EuPTHUAp2182-74352014000300008

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variedadeEu
ano2014
fonteScielo

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Ciclo de cinema e debates Migrações clandestinas: Sinopses e comentários DOSSIER Ciclo de cinema e debates Migrações clandestinas: Sinopses e comentários

Carlos Nolasco* e Elsa Lechner** * Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal cmsnolasco@ces.uc.pt ** Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Colégio de S.

Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal elsalechner@ces.uc.pt

Elsa Lechner e Carlos Nolasco são responsáveis pela organização deste documento, que conta com a colaboração dos seguintes comentadores: António Sousa Ribeiro, Catarina Martins, Fabrice Schurmans, Kátia Cardoso, Khalid Fekhari, Maria José Canelo, Silvia Rodríguez Maeso.

O ciclo de cinema e debates Migrações clandestinas resultou do olhar perplexo sobre estes fluxos e da necessidade de os entender: o que faz com que alguém se meta dentro de um frágil bote e tente atravessar o mar, sabendo antecipadamente que a possibilidade de sucesso dessa viagem é muito reduzida? Quem são os homens e mulheres que empreendem esta odisseia? Que mundo é este onde tudo circula, das imagens às mercadorias, dos capitais a algumas pessoas (essencialmente turistas ou indivíduos altamente qualificados), mas onde os desapossados da globalização não podem movimentar-se? Que mundo é este onde a Declaração Universal dos Direitos do Homem no n.º 2 do artigo 13.º diz que toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, mas depois não afirma o direito de entrada num outro país? Por considerarmos que estas questões simples não podiam deixar de ser refletidas, e essencialmente não podiam passar sem ser denunciadas, tomou-se a iniciativa de organizar um ciclo de cinema e debates sobre migrações clandestinas. Por isso também se assume que esta é uma iniciativa emocionada e comprometida. Comprometida com o desespero de quem quer passar fronteiras, com a ausência de direitos de quem quer imigrar, com a exclusão e o encobrimento destas vidas. Emocionada com dimensão humana implicada na odisseia de cada uma das viagens empreendida.

O ciclo de cinema começou com o cadáver de um rapaz marroquino resgatado das águas do Mediterrâneo. Mais um desse número incontável de pessoas que olham desde Tânger para a mítica Europa, que esperam a oportunidade de seguir em barcos surrealistas, numa viagem alucinante. São muitas as formas de se morrer nestas viagens: afogados na imensidão do mar; desidratados pela inclemência dos céus; sufocados com as cabeças enfiadas em sacos de plástico; esmagados pela mecânica de camiões.

O rapaz marroquino morreu afogado junto à costa de Espanha. Também Bilal, o jovem curdo iraquiano de 17 anos, [not] Welcome em França nem em Inglaterra, morreu afogado ao tentar atravessar o Canal da Mancha a nado. Os 39 africanos, que tentam chegar num miserável cayuco da costa da Mauritânia às Ilhas Canárias, com um Destino clandestino, não se afogaram pela divina providência de um telefone por satélite.

Por isso, quando do lado de da fronteira se olha para o condomínio fechado da Europa de Schengen, ou para a América do Norte barricada no seu Wall fronteiriço, o olhar torna-se apreensivo e os silêncios religiosos. Bilal desesperou pelo seu amor do outro lado do mar, e por isso se lançou nessa fronteira líquida que o engoliu. O desespero torna-se razão. E a questão é simples de se colocar: Partir ou mourir? Partir ou morrer, mesmo sabendo que a possibilidade de se morrer na viagem é muito grande. Partir ou morrer, mesmo sabendo que o sítio para onde se parte os pode encerrar e maltratar como em La forteresse.

Os sete filmes exibidos entre 23 de março e 12 de julho de 2011, no ciclo de cinema e debates Migrações clandestinas, narraram episódios desta odisseia.

Les passeurs de Laëtitia Moreau, Tanger: le rêve des brûleurs de Leïka Kilarí, Destino clandestino de Dominique Mollard, The Wall de Viva Zapata Productions, Welcome de Philippe Lioret, Partir ou mourir de Rodrigo Saez e La forteresse de Fernand Melgar foram os filmes exibidos. Os comentários a cada um dos filmes foram efetuados por Silvia Rodríguez Maeso, Khalid Fekhari, Catarina Martins, Maria José Canelo, Fabrice Schurmans, Kátia Cardoso e António Sousa Ribeiro, a quem agradecemos a forma como se disponibilizaram para colaborar connosco, bem como a pertinência e riqueza dos seus comentários.

As intervenções de cada comentador chamam a atenção para as estratégias narrativas desenvolvidas nos filmes, para as mensagens de cada narrativa, para os contextos sociais de cada filme, para a realidade concreta de cada uma das vidas filmadas, para as dinâmicas entre o centro e a periferia, para os argumentos políticos, para os ditames jurídicos, para os imperativos económicos, para os fundamentos culturais e para a erosão da moral.

À medida que estes filmes se foram sucedendo, a comunicação social foi dando conta das transposições não autorizadas de fronteiras. Estas fronteiras são as linhas radicais de que fala Boaventura de Sousa Santos, quando se refere ao pensamento abissal:

As linhas radicais dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo ‘deste lado da linha' e o universo ‘do outro lado da linha'. A divisão é tal que ‘o outro lado da linha' desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível (2007: 3 e 4).1

Os migrantes que transpõem essa fronteira abissal, e que passam do universo do lado de para o universo do lado de , ganham a estranha consistência da opacidade. Como diz Mano Chao, Mi vida la dejé / Entre Ceuta y Gibraltar / Soy una raya en el mar / Fantasma en la ciudad / Mi vida va prohibida / Dice la autoridad.

Foi com Mano Chao que começou este ciclo de cinema, com um pequeno filme onde ele, a propósito do campo de retenção de migrantes de Calamocarro, próximo de Ceuta, diz que pára-se a migração, as pessoas não podem passar. E quando se param as migrações não é bom, porque as migrações são como um rio, e se o rio se estanca, a água apodrece.2 Esta frase representa integralmente as pretensões da organização deste ciclo de cinema. Em seguida apresentam-se breves fichas técnicas dos filmes exibidos, as respetivas sinopses e os argumentos apresentados pelos comentadores.

*** Título:Les passeurs Realização:Laëtitia Moreau Ano:2003 Origem:França Duração:110 minutos Género: Documentário

Sinopse O filme documenta o caminho inverso daqueles que desde a costa marroquina anseiam por chegar a Espanha. Narra o percurso do cadáver de um jovem marroquino, Aziz de 24 anos, morto por afogamento no Mediterrâneo em 14 de julho de 2003, que desde a costa espanhola é conduzido pela funerária até à sua terra natal para que o funeral seja feito pela sua família. Este é o trabalho de Martín e Ángel Zamora, dois irmãos que em Algeciras, numa agência funerária, se dedicam a identificar os corpos dos jovens falecidos, informar as famílias, tratar das formalidades e fazer o repatriamento dos restos mortais de homens e mulheres para as recônditas aldeias marroquinas. Os passeurs de que trata este filme nãos são os traficantes de seres vivos que facilitam a passagem do Sul para o Norte, mas os passadores de gente morta e recolhida no mar, que de Norte para Sul conduzem os corpos até às suas famílias.

Na longa viagem fúnebre desenha-se uma rota de migrações clandestinas, percorrida por milhares de indivíduos. Quando o corpo de Aziz chega à sua aldeia, de noite, familiares e amigos choram-no. Chora-se o destino de Aziz, mas também o destino de todos aqueles que até ao momento pereceram na viagem e de todos os que nela se aventurarão a seguir. No velório, os amigos de Aziz insistem, não escolha, o caminho da migração é a alternativa, acentuando com dramaticidade de vida e morte um percurso de destino incerto.

Comentário de Silvia Rodríguez Maeso Les passeurs: a denúncia como despolitização ou a encenação do sofrimento/ da empatia Uma primeira descrição geral do documentário Les passeurs (Laëtitia Moreau, 2003) ' coprodução franco-suíça-belga ' poderia ser feita com base em três elementos: a) o seu objetivo, b) a estratégia narrativa escolhida e c) a sua operacionalização.

a) O documentário procura denunciar o que acontece no processo de migração clandestina ' neste caso atravessar o estreito de Gibraltar que divide o Norte de África, e mais concretamente Marrocos, da costa espanhola ' mostrando o que rotineiramente tem acontecido a milhares de jovens que morrem afogados na tentativa de alcançar os bordes da Europa e o sofrimento dos seus familiares.

Uma grande parte destas mortes ficam no anonimato e os corpos são enterrados em fossas comuns na cidade de Algeciras.

b) A estratégia narrativa é dupla: por um lado, o olhar e a experiência dos espanhóis ' dos trabalhadores da empresa funerária que fazem a transladação do corpo dos migrantes falecidos ' como espectadores morais do sofrimento das famílias marroquinas, simultaneamente num esforço por as ajudar; por outro lado o do olhar dos jovens marroquinos que relatam/justificam o porquê do seu desejo de emigrar, apesar do previsível final a que estão destinados ' a morte.

c) Esta estratégia é operacionalizada mediante a narração em tempo real dos preparativos e da trasladação/do regresso do corpo do jovem falecido de Algeciras à pequena aldeia em Marrocos, utilizando assim a eficácia do impressionismo e do naturalismo das emoções; e a apresentação num cenário ad hoc, uma espécie de grupo de discussão, das declarações dos potenciais migrantes ' jovens marroquinos que visam cruzar o estreito.

É na inter-relação destes três aspetos que Les passeurs constrói a denúncia como uma questão moral que impossibilita a produção de uma narrativa política de ligação entre a experiência a nível micro, marcada pela morte ' geralmente anónima ' dos que tentam alcançar os bordes da Europa, e os limites da legalidade/ilegalidade que determinam a emigração de cidadãos de chamados países terceiros, no âmbito dos mecanismos de regulação/controlo da União Europeia e dos Estados-membros. Esta situação política e os seus contornos raciais são mais um pressuposto naturalizado ao longo do documentário do que um conflito político sobre o qual se interroga; a denúncia é portanto um relato humanista/humanitário no qual os migrantes são vítimas (seres dolentes) ou reprodutores dos gestos que recentram a Europa como projeto político ' i.e.

como lugar desejado.

O privilégio da solidariedade:3 os espanhóis/europeus como espectadores morais Podemos ler na sinopse que a produtora oferece do documentário o seguinte:

Nos últimos cinco anos, cerca de 4000 imigrantes clandestinos, a maior parte marroquinos, morreram afogados na tentativa de atravessar o estreito de Gibraltar. Comovidos por estes terríveis destinos, dois irmãos, Martín e Ángel Zamora, puseram a sua empresa ao serviço dos defuntos. Identificam os corpos, avisam as famílias, tratam das formalidades e repatriam os restos destes homens e mulheres para as suas aldeias, as mais recônditas de Marrocos. Eles são os mediadores (les passeurs) entre os mortos e os vivos, recolhendo os seus corpos perdidos e permitindo aos familiares e chegados começar o seu luto.

Através do seu trabalho e do seu longo caminho vai-se desenhando pouco a pouco a história destes anónimos que arriscam tudo para vir trabalhar para a Europa. (itálico da autora)4

É portanto evidente que no documentário, os cidadãos espanhóis, brancos, donos da empresa funerária, são os principais atores da história, entendida como uma história da humanização de uma tragédia que acontece no quotidiano mas que, geralmente, fica no anonimato dos corpos dos migrantes afogados. Parece-me crucial aqui apontar que o problemático não reside no privilegiar do olhar dos espanhóis, mas precisamente no paradigma narrativo/interpretativo que é veiculado: é mediante os gestos e ações humanitárias dos espanhóis (a sua comoção perante estes acontecimentos) que os outros etnicamente marcados ' os migrantes clandestinos e as suas famílias ' adquirem humanidade (saem do anonimato). Os cidadãos espanhóis são espectadores morais no sentido dado por Boltanski (2007) na análise das lógicas narrativas do humanitarismo, que incluem não a descrição do sofrimento dos desafortunados mas também do espectador que o observa. É uma narrativa moral da solidariedade e da empatia transmitida sobre a premissa de estes valores humanos (entendidos como universais) não estarem sujeitos às relações do poder e ao privilégio das situações histórico-políticas. Neste enquadramento, os ‘outros' são seres dolentes reduzidos ao seu sofrimento, capturado pelas câmaras que partem da perspetiva do olhar dos espanhóis que os observam ' como por exemplo no momento de reconhecimento do corpo do falecido pelo seu tio, e quando o veículo chega à aldeia e os familiares e vizinhos, sobretudo as mulheres e a sua mãe, gritam desconsoladamente ao tempo em que um dos espanhóis no veículo exclama que situação lixada !.5 A Europa: objeto de desejo e dilema moral Depois de 19 horas de viagem, como confirma um dos condutores do veículo, na chegada à aldeia, de noite, assim como no decurso do resto do documentário, encena-se uma representação cliché do outro lado ' a origem da viagem dos migrantes clandestinos ' como espaço não ocidental, de uma ruralidade recôndita onde os jovens estão retidos. A narrativa desenvolve-se pelo lugar- comum de questionar os jovens ' alguns dos quais tentaram no passado migrar ' o porquê da sua intenção de migrar, ainda que conhecendo os perigos, reproduzindo assim relatos sobre os sonhos de uma vida melhor e a curiosidade pela Europa. A pobreza, o atraso ' não nada que fazer aqui ' são, no enquadramento do documentário, os definidores de uma situação (um pressuposto não questionado) do que a migração tenta superar, colocando assim a Europa como objeto de desejo.

Nesta encenação a escolha da narrativa é, de certo modo, patente, pois alguns dos argumentos captados pelas câmaras vão para além da história do desejo de superação, como nestes dois exemplos seguintes: Antes [de 1999] o pessoal preferia sair dentro da legalidade, agora querem sair por todos os meios; Se o Estado desse trabalho, ninguém partiria, as pessoas ficariam nos seus países e seriam livres; não como na Europa, onde podes ser explorado, ser tratado como um animal. O contexto das medidas políticas de regulação e controlo da migração dos países terceiros como geradoras da clandestinidade e o questionamento de uma ideia da Europa como espaço de liberdade e prosperidade poderiam ter sido o fio condutor desta viagem de regresso. Les passeurs opta, pelo contrário, pela formulação de um dilema moral: a Europa produz a ilegalidade (o migrante clandestino), ao mesmo tempo que se constrói como o único espaço de prosperidade real para os outros ilegalizados.

Les passeursreproduz um enquadramento narrativo que faz parte de um paradigma eurocêntrico de produção da imigração ' e os seus contornos raciais, não ditos mas presentes ' como problema, sedimentado desde a década de 50 do século passado e que tem adquirido contornos mais ou menos específicos nos contextos do Sul da Europa nas últimas duas décadas ' nos chamados novos países de imigração. Este paradigma é forjado mediante a despolitização, entendida como um processo que nos impede de interrogar as fontes dos problemas políticos, isto é, de interrogar as histórias e as relações de poder que os constituem (Brown, 2006) e que portanto protege determinados privilégios de serem questionados. Um dos sintomas da despolitização é a produção de narrativas de denúncia sob a forma de questões morais que derivam numa discussão sobre as boas ou as más intenções dos que estão situados do lado do privilégio, ficando aqueles no outro lado simultaneamente como recetores dessa boa vontade ' do exercício dos valores universais ',como eventuais protagonistas de histórias de superação pessoal, ou como seres dolentes.


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