Abrir a fábula: Questões da política do passado em Moçambique
O nosso conhecimento do passado é inevitavelmente incerto, descontínuo,
lacunar: baseado numa massa de fragmentos e de ruínas. Carlo Ginzburg (2007:
40)
Introdução
Num texto a que deu o título de "Descrição e citação",o historiador
italiano Carlo Ginzburg (2007: 17-40) discute como foi construída ao longo dos
tempos, em particular na narrativa ocidental, a ideia de passado e a maneira de
o "contar". Mostra como os antigos prezavam o esforço de relatar a
coisa ausente com tal vividez que a encenação do orador tornava quase palpável
um objecto ausente. Começou por ser esta a ars historica, feita de oralidade,
teatro e ficção, e em que paulatinamente vamos sentindo crescer uma certa
tensão entre as virtudes do estilo (incluindo a retórica) e algo mais que
poderíamos aqui situar como evidência. É desta tensão entre duas virtudes,
entre a arte da retórica e a erudição dos anais (enquanto relatos de evidências
secos e sem estilo) que vai emergindo a maturidade da historiografia. No
caminho, foram-se adquirindo pontes entre estas duas grandes regiões, entre
elas a "citação", que Ginzburg diz ser um modo de sublinhar
"que o passado nos é acessível apenas de modo indirecto, mediado"
(2007: 37). Enquanto a origem da retórica se situa na oralidade e na
gestualidade, a citação remete para a evidência, que no nosso tempo é
representada em grande medida pelo documento ou pelo objecto documental.
É neste campo (e não em outros, como por exemplo a competitividade ou
legitimidade de narrativas com agências diferentes) que quero situar a minha
apresentação. Nomeadamente, na discussão de algumas questões concretas
relacionadas com condições sociais e políticas de produção do trabalho
historiográfico. E, em lugar de reduzir essas condições a meros obstáculos no
caminho da produção da história, integrá-las como elementos que obrigam ao
aprofundamento do debate epistemológico.
Chego pois ao tema desta minha apresentação a partir de uma questão muito
particular - esta e não outra - que é a da possibilidade da
narrativa historiográfica num meio concreto. Penso que no decorrer da tentativa
de resposta a essa questão ficará também dita alguma coisa sobre a natureza
dessa narrativa, quer no que toca aos seus próprios sujeitos quer na relação
que estabelece com outras narrativas de memória.
Origem da fábula
Como bem sabemos, o processo de independência de Moçambique, tal como o das
principais colónias portuguesas, teve características que o distinguiram dos
restantes territórios africanos: foi tardio e envolveu uma luta armada. Para
alguns, a natureza do colonialismo português (ou o tipo de luta levado a cabo
para o derrubar) pode ter estado por trás da radicalização do processo de
emancipação de Moçambique, uma radicalização que transformou o sentido da
independência e fez dela muito mais que uma mera substituição de elites
políticas, de facto uma revolução política e social.1
Os principais instrumentos para implementar tal revolução, uma vez conquistada
a independência, foram o partido Frelimo (a Frente que lutou pela independência
foi transformada em 1977 em partido marxista-leninista) e uma ideia de passado
construída em torno da luta de libertação como verdadeira fonte dessa
revolução, uma ideia baseada na experiência, ou vivência, de um processo que
criou a unidade entre todos os moçambicanos e estabeleceu as bases da derrota
do colonialismo português.
Enquanto prática, a luta de libertação permitiu iniciar a revolução nas zonas
libertadas e imaginar o futuro do país logo que aquela experiência nele fosse
aplicada. A memória da luta de libertação e da experiência revolucionária das
zonas libertadas desempenhou assim um papel central na política e na vida após
a independência, não só como um passado que reverberava no presente mas também
como farol e referência na caminhada para o futuro. Como procurei mostrar
noutro lugar (Coelho, 2005; 2007; 2013), a luta armada cumpriu esse papel não
só ao ser o acto que permitiu aos moçambicanos surgir com uma identidade
nacional, mas também na medida em que forneceu a base da legitimidade das
políticas governamentais após a independência, e uma espécie de carte blanche
para as decisões políticas e de desenvolvimento, no sentido em que essas
decisões, tomadas pelos mesmos protagonistas que haviam vencido a luta, eram
apresentadas como uma espécie de continuação das práticas adoptadas nas antigas
zonas libertadas. Incluído nessa lógica de continuidade estava o apelo à
manutenção da unidade adoptada durante a luta, o que se por um lado criava uma
coesão necessária para enfrentar a hostilidade da região da África Austral da
segunda metade da década de 1970, por outro também desempenhava importante
papel ilegitimando qualquer tipo de contestação política, naturalmente
identificada com uma tentativa de ruptura dessa linha de continuidade.
Em suma, a luta de libertação era uma ideia do passado que veio a formar o
núcleo e a substância do processo de construção da nação, e a determinar o
desenvolvimento político nos quinze anos que se seguiram à declaração da
independência, em 1975. Foi em torno da luta de libertação que a memória
política se estruturou.2
Evidentemente, a ideia de criar uma "reverberação controlada" de
acontecimentos passados no presente não é nova. De facto, o que nós
consideramos como passado é também uma visão que olhos e motivos actuais têm
dele - olhos e motivos que se concretizam numa narrativa. Lembrar, como
nos avisa Todorov (2004), é sempre um processo selectivo guiado por critérios
estabelecidos no presente.3 E, claro, todos os Estados desenvolvem mecanismos
próprios para tentar controlar e utilizar o passado de forma a criar uma
memória política que favoreça os seus desígnios, memória que se espera vir a
ser transformada, no futuro, em memória colectiva ou histórica, sendo que a
primeira é partilhada por todos no presente e a segunda capaz de sobreviver na
longa duração.
Um recurso particular de memória política consiste na promoção de histórias
nacionais ou oficiais que, nas palavras de Beatriz Sarlo, são normalmente
feitas de "um panteão de heróis, um grupo de excluídos e réprobos, uma
linha de desenvolvimento unitário conduzindo até ao presente" (2007: 13-
14). Histórias que são simples e claras, com um forte acento nacionalista, e
que circulam amplamente nas escolas ou nos média, por meio de processos já
amplamente explicados desde a velha noção marxista de aparelhos ideológicos do
Estado.
Moçambique também teve a sua luta de libertação codificada nos mesmos moldes
como grande narrativa, com a estrutura simples de uma fábula,4 começando
simbolicamente com uma agressão colonial (o massacre de Mueda, que corresponde
a outros fenómenos idênticos como o massacre de Pidjiguiti de 1959 para a
Guiné-Bissau, ou a vaga de repressão que se seguiu ao assalto ao Presídio de
Luanda de 1961 para Angola, Viriato em Portugal, etc.), seguida do
"primeiro tiro" disparado pelos guerrilheiros contra os
colonialistas, e desenrolando-se como uma história heróica na qual o movimento
se foi libertando da carga impura dos reaccionários (o II Congresso da Frelimo)
e foi adquirindo uma crescente pureza revolucionária. A história é escorada por
uma série de oposições binárias (colonialismo versus revolução, reaccionários
versus revolucionários, civis versus militares, rural versus urbano, etc.) e
claramente é a sua simplicidade que lhe confere uma tremenda eficácia.
A natureza oral da fábula
O que parece muito interessante, e num certo sentido invulgar, é que, apesar da
sua centralidade para a vida do país, esta grande narrativa permaneceu verbal,
ancorada em palavras apenas proferidas. Em trinta e cinco anos de independência
nunca foi feita uma tentativa decisiva para a escrever, para a registar na
forma escrita. Se excluirmos os discursos fragmentários de Samora Machel
ocasionalmente publicados pela Frelimo e pelos canais de informação e
propaganda do Estado, ou pelos jornais por ocasião de datas celebrativas, não
existe uma história oficial escrita da saga da libertação. De que maneira
entender este fenómeno singular?
Evidentemente que não se pode falar aqui num pretenso mecanismo de tradição
oral culturalmente enraizado, dado que a luta de libertação é um fenómeno que
rompe precisamente com a tradição e de certa forma inaugura a modernidade.
Penso que se deve procurar mais do que uma razão. Em primeiro lugar e desde
logo, manter a história verbal era talvez a melhor maneira de a salvaguardar de
desvios a um cânone cujos contornos não estavam inteiramente estabelecidos (e a
ausência de desvios, por seu turno, contribuía para reforçar a coesão da
fábula). Por outro lado, se olharmos de um ângulo diferente, o facto de ser
verbal conferia à narrativa maior flexibilidade e capacidade de adaptação às
mudanças de contexto; por outras palavras, tal como foi dito, maior eficácia.
Destruição e construção da experiência
É importante ter em conta que a luta de libertação, baseada na Tanzânia, foi-se
estabelecendo progressivamente nas províncias setentrionais, onde criou zonas
libertadas, mas não chegou directamente a extensas zonas do país, incluindo as
cidades mais importantes (e a capital Maputo) e a região meridional em geral.
Nestas zonas "não-afectadas" a população, embora destituída da
experiência da luta armada, certamente que experimentou outros tipos de
vivências coloniais, delas alimentando memórias privadas e comunitárias.
Todavia, após a independência, e apesar das palavras da velha canção
revolucionária ("não vamos esquecer o tempo que passou"), as
memórias públicas que forneceram a matéria-prima do futuro vieram não dessas
experiências do resto do país mas das zonas libertadas.
Alego pois que, num processo que precisa sem dúvida de ser melhor conhecido, a
nova memória política independente foi como que "importada" das
zonas libertadas, muito mais que construída sobre as cinzas da velha memória
política e social da era colonial.5 Colocando as coisas algo radicalmente, foi
como se no novo país independente não houvesse espaço para o passado mas apenas
para o devir, e tudo, inclusivamente o passado, fosse construído a partir do
futuro. Gradualmente, a nova atitude deixava de ser "fazer diferente do
colonialismo" para passar a ser "fazer igual às zonas
libertadas". Era como se o mundo colonial fosse identificado com o tempo
do mal, de onde nem sequer a experiência podia ser colhida. Neste sentido,
reitero, a independência foi a negação da experiência de muitos em favor da
ilusão da escrita do presente numa tabula rasa.6 Por outro lado, a erradicação
da experiência colonial (que também era, obviamente, uma experiência
moçambicana), salvaguardava a experiência da luta armada do confronto com
outras experiências, e portanto de uma relativização que enfraqueceria o seu
carácter absoluto. Garantia assim o estatuto da luta armada como única
experiência.7
O papel da testemunha
Um outro aspecto fundamental da ausência de um texto canónico escrito foi que
isso reforçou o papel daqueles que testemunharam a luta de libertação, aqueles
que participaram nela e consequentemente podiam reclamar ser portadores daquela
experiência, a única verdadeiramente importante. Tal excluía evidentemente um
grande número de moçambicanos destituídos da experiência da luta, como vimos,
mas também muitos que tiveram tal experiência mas não estavam em situação de a
enunciar na qualidade de testemunhas.
Explico-me. Nem todos os combatentes da guerrilha percorreram o itinerário que
eleva o mero protagonista do acontecimento à condição de testemunha. Tornar-se
testemunha pressupõe ter conquistado e mantido, na nova ordem que se seguiu à
declaração da independência, uma voz capaz de contar a história. E, uma vez que
desde a independência não foi levado a cabo qualquer empreendimento sistemático
para registar com um método adequado o testemunho dos guerrilheiros e outros
participantes na luta armada, aqueles que conquistaram uma voz capaz de contar
a história foram os que entraram nas cidades e vieram a desempenhar cargos de
relevo nas estruturas da Frelimo e do Estado. A esses há que acrescentar, no
período de transição entre o golpe militar do 25 de Abril de 1974 e a
independência, alguns revolucionários com papéis políticos e sociais de relevo
mas destituídos da experiência da luta, que foram consequentemente enviados
para os campos da Frelimo na Tanzânia a fim de a adquirir simbolicamente.
O meu argumento, aqui, não visa inferir nenhum tipo de divisão social ou
privilégio, o que nos levaria por outra linha de raciocínio, mas simplesmente
mostrar que a acentuada redução no número de vozes capazes de contar a história
está inquestionavelmente por detrás da grande coesão desta, uma coesão que foi
reforçada pela disciplina militarizada que então vigorava.
O estatuto de testemunha (o revolucionário, aquele dotado da correcta
experiência e de voz capaz de a enunciar) conferiu um capital importante
àqueles que a ele tiveram direito após a independência, em mais do que uma
dimensão. Em particular, foi importante de um ponto de vista moral
(compreensivelmente, ter participado na libertação do país constituía uma
experiência da mais elevada qualidade possível), mas também politicamente
(tornando pública tal qualidade) e até em termos materiais.8 E, evidentemente,
onde e sempre que não estavam disponíveis fontes alternativas, a testemunha
tornava-se a única fonte da narração, o que aumentava enormemente a força da
sua voz.
Em alguns aspectos, e apesar das diferenças óbvias e mesmo do contraste, é
possível encontrar aqui ressonâncias da testemunha tal como é discutida no
contexto oposto de memórias de acontecimentos passados extremos, tais como o
holocausto ou as ditaduras da América do Sul na década de 1970, em particular
quando a testemunha se torna a única fonte.9
Evidentemente, nesses casos negativos extremos a testemunha transporta consigo
a experiência de um passado maléfico, enquanto aqui essa experiência (associada
ao ambiente colonial) é progressivamente removida e substituída por uma
categoria oposta, nobre e positiva, e ligada ao futuro. Se nos casos do
holocausto e das juntas latino-americanas a questão está em contar o sucedido
(no primeiro, por vezes em transmitir a experiência dos que deixaram de ser
capazes de o fazer, ou mesmo ser impossível viver com essa experiência), aqui,
num contexto em que o orgulho substitui o trauma, a vergonha ou a dor, a
finalidade é afirmar a memória de uma experiência comum de forma a reforçar a
coesão da versão colectiva.
Como atrás foi dito, quando a experiência colectiva se transforma de
experiência comum de muitos em experiência "futura" de todos, por
outras palavras, quando a versão ganha voz para se tornar em grande narrativa
ou memória política com alcance nacional, passa a exercer grande pressão, não
se limitando às memórias subalternas (individuais, comunitárias, etc.). Podemos
encontrar vários exemplos de ruído na convivência entre as memórias subalternas
e a memória política. Um deles é quando antigos combatentes involuntariamente
contradizem a narrativa canónica, nomeadamente quando assumem com alguma
candura ter morto inimigos fora de situações de combate, ou quando afirmam que
os guerrilheiros zimbabuanos não passavam de poltrões com sede de poder. Quando
o confronto é directo, a memória subalterna tende no entanto a desaparecer, ou
pelo menos a silenciar-se.10
A historiografia e a fábula
Por outro lado, na sua qualidade de "narrativa fechada", a fábula
convive dificilmente com outros mecanismos sociais de lidar com o passado,
nomeadamente a história enquanto disciplina académica, os arquivos, ou ainda
várias formas de expressão artística, incluindo a literatura de ficção.
Há um número de razões pelas quais a memória política e a historiografia não
são bons vizinhos. Além de ameaçar escrever a narrativa, expondo-a assim a
riscos imprevisíveis, esta última é uma actividade que pesquisa os arquivos,
entrevista pessoas, espreita todo o tipo de fontes e não se submete
necessariamente ao que a primeira define como interesse público. Mesmo se
"colaborativa", a única garantia da historiografia é de trazer
complexidade e contradição interna a um corpo cuja eficiência depende
precisamente do oposto: simplicidade. Znepolski escreve que "a memória
[política] tende a eliminar testemunhas concorrentes, tende a enfraquecer os
seus argumentos e a criar as condições necessárias para impor a memória
'dos seus', a 'memória partilhada'" (2001: 82).
Esta é a razão principal pela qual, apesar do défice de conhecimento histórico
herdado dos tempos coloniais, a história contemporânea não mereceu atenção
especial por parte das autoridades após a independência. Por outro lado, muito
raramente a historiografia criou ou defendeu o seu próprio campo, distinto do
campo político que nutria a grande narrativa. Uma já famosa excepção, muito
particular, foi a do artigo de Aquino de Bragança e Jacques Depelchin (1986),11
no qual a visão triunfalista do passado que figura na grande narrativa era
severamente criticada por fornecer um quadro desprovido de problemas e cheio de
certezas, em que o inimigo se apresentava "congelado" e incapaz de
transformação ao longo da luta, enquanto o movimento nacionalista tinha a
vitória por destino natural. Por outras palavras, eles exigiam que fosse
restituído o espaço da história, dos seus métodos e debate, algo que a grande
narrativa inviabilizara.
A escrita da fábula e o início do seu envelhecimento
O Acordo de Paz de 1992 assinala uma profunda mudança no país. O acordo acabou
com a guerra e permitiu a realização de uma transição política do socialismo
para uma nova ordem democrática. Neste novo contexto, seriam de esperar grandes
mudanças relativamente ao papel do passado. Em particular, seria de esperar uma
mudança que implicasse a substituição da grande narrativa pela democracia
enquanto referencial da construção nacional e da nova ordem, num contexto em
que, embora permanecendo como "explicação da origem", a luta armada
perderia alguma carga de dramaticidade. Por detrás de tal expectativa estavam
algumas razões, nomeadamente a sobreposição de um novo passado tornado muito
complexo pela guerra civil, o facto de a geração de antigos combatentes (a
"geração das testemunhas") estar a envelhecer rapidamente e a ser
inexoravelmente substituída por uma nova geração que emergiu após a
independência (e portanto sem experiência da luta armada), e acima de tudo a
cultura instilada pelo neoliberalismo, em que a incidência no presente é tão
intensa que pouco espaço deixa para o passado ou o futuro.12
Esta expectativa só em parte se revelou ajustada. Adoptou-se a democracia
formal mesmo com fragilidades importantes, nomeadamente em aspectos como a
separação de poderes ou a consolidação da pluralidade política. A competição
ganhou o espaço da ética revolucionária enquanto conteúdo da nova narrativa. O
cosmopolitismo cresceu. E todavia, de forma algo surpreendente, a grande
narrativa da luta de libertação não perdeu centralidade na sociedade. Pelo
contrário, tal centralidade foi de certa forma reforçada nas mesmas linhas que
haviam prevalecido no ciclo socialista anterior. Os arquivos permaneceram
fechados e os sinais são agora de que esta situação não se alterará por muito
tempo.13
Mas eis que recentemente algo de realmente inesperado começou a acontecer.
Muitos antigos combatentes, muitas testemunhas começaram a publicar livros de
memórias. Primeiro um ou dois, e depois muitos mais, alguns tentando
experiências quasi-ficcionais, outros anunciando memórias ou "a
verdade". Que pensar de tudo isto? Em primeiro lugar, que se trata de um
fenómeno que pode ser entendido a partir de mais que um ângulo. Pode ser a
vontade de deixar rasto de uma geração que agora se retira da cena política.
Pode também ser uma espécie de certificado de pertença ou de lealdade a um
partido tornado algo crispado no ambiente democrático, e vendo no reforço da
sua coesão a forma de enfrentar os tempos actuais. Pode ser portanto falar do
passado como forma de garantir o presente. Finalmente, pode haver ainda traços
de uma ilusão segundo a qual, da mesma forma que condenou o terrorismo de
Estado na América do Sul dos anos 1970-80, ou o apartheid na África do Sul, a
testemunha, ao perpetuar por escrito esse registo, pretende resgatar a fábula
dos perigos actuais, sacralizando-a.
Em qualquer dos casos, trata-se de um fenómeno perturbador. Além de a tentar
sacralizar, a testemunha escreve a narrativa fragmentariamente, ameaçando
produzir um quadro pouco coerente do todo. Além disso, a palavra escrita ajuda
a fixar a história, ancora-a a um tempo concreto, transformando assim
profundamente a sua natureza. A partir de agora a narrativa começará a ter uma
idade. A partir de agora a narrativa começará a envelhecer.
Esses sinais começam a ser notados tanto no corpo da narrativa como no contexto
em que ela respira. Relativamente ao primeiro aspecto, há elementos-chave que
começam a ser questionados, como foi o caso das dúvidas recentemente colocadas
(e provenientes do interior, de uma testemunha), sobre quem disparou o primeiro
tiro contra o colonialismo, desencadeando um debate sobre um dos elementos mais
simbólicos e nucleares da fábula, elemento que seria impensável desafiar alguns
anos atrás. Relativamente ao contexto, também recentemente o secretário-geral
da Frelimo afirmou aos média que o Museu da Revolução, o espaço por natureza da
saga, pertencia, era propriedade, não do povo moçambicano mas do partido
Frelimo. Tudo isto revela que a erosão ataca o corpo e o sentido do texto.
E tudo isto nos coloca numa encruzilhada fundamental. O que acontecerá a
seguir?
Em primeiro lugar, parece-me óbvio que as coisas não poderão permanecer assim
para sempre. Decorridos cinquenta anos desde o início da luta armada, as
testemunhas começam a desaparecer. Mais do que isso, há sinais de que, ao
escreverem as suas memórias e versões, essas mesmas testemunhas erodem
seriamente a narrativa pelo simples facto de a encapsularem num texto escrito,
criando várias contradições entre os seus elementos estruturais, que não
poderão mais ser solucionadas por uma flexibilidade que no processo se perde.
Apesar de tudo, é importante preservar a saga como elemento central da
identidade do país, aquela que tornou possível a sua independência. Fazê-lo é
uma tarefa que está longe de ser simples ou directa. Requer a transformação do
ambiente, dos actores envolvidos e da natureza da narrativa.
Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que o acesso ao passado constitui um
direito fundamental, e que as lembranças de cada um fazem parte da substância
que forma a memória colectiva. Isto significa que, por mais importante que seja
a luta de libertação, é apenas parte, não a totalidade, do passado comum. Em
segundo lugar, que o estatuto de testemunha não constitui um privilégio. Afinal
de contas, a democracia, pelo menos teoricamente, cobre de maneira igual e cega
os que libertaram e os que foram libertados. E em terceiro lugar, relativizar a
luta de libertação enquanto um entre vários passados significa abri-la, deixá-
la respirar para além do estreito campo da política, aqui entendido como uma
entre várias formas de funcionamento da sociedade, mesmo se é aquele que gere
os restantes. Manter a memória da luta de libertação inteiramente confinada ao
campo da política é um acto contra a democracia e contra a cultura. Por outras
palavras, o presente é demasiado largo, demasiado complexo e demasiado precioso
para permanecer refém de uma interpretação fechada e rígida do passado. E o
novo paradigma é, já não como assegurar a unidade, mas como gerir a pluralidade
de perspectivas.
Desta maneira a narrativa ficará aberta a uma multitude de outras maneiras
sociais de lidar com o passado, incluindo a historiografia (que tem de
reinventar a autonomia do seu campo) e, claro, a arte.
A conjugação da falta de acesso aos arquivos e o desaparecimento das
testemunhas criaria uma situação extrema na qual o passado permaneceria refém
de um presente de contornos obscuros. Todavia, uma vez que o passado foi vivido
por todos nós ou os nossos ancestrais, ele não tem terratenentes. O passado é
uma terra sem tenentes.
Abrir os arquivos ou mantê-los longe dos olhos do público não é em si o que
preservará a grande narrativa. Isso só influenciará a maneira como a fábula se
vai transformar. Há que ter em conta que, sempre que os caminhos para chegar à
substância do passado estão fechados, surge inevitavelmente um novo e precioso
instrumento chamado imaginação. Na arte, tal como nas ciências sociais e
humanidades, a imaginação é um instrumento fundamental para preencher o vazio
criado pela negação da experiência. De facto, a ausência de evidência de
arquivo ou de fontes testemunhais será sempre compensada por este poderoso
mecanismo.
Paul Ricoeur diz-nos que a memória é uma província da imaginação: "É sob
o signo da associação de ideias que acontece esse curto-circuito entre a
memória e a imaginação: se estes dois efeitos estão ligados pela contiguidade,
evocar um - ou seja, imaginar - é invocar o outro, ou seja,
lembrar-se" (2000: 5). Talvez seja por isso altura de olharmos para as
coisas de maneira diferente, encarando a tensão da memória política com as
outras memórias como positiva e capaz de nos abrir novos caminhos. No contexto
de uma experiência extrema como a da sua própria pesquisa, Beatriz Sarlo
escreve que "a literatura [de ficção] não é capaz de resolver ou explicar
todos os problemas que enfrentamos, mas aquele que conta uma história pensa
sempre fora da experiência, como se os seres humanos além de sofrerem os seus
pesadelos também pudessem apropriar-se deles" (2007: 119). Poderíamos
acrescentar que tal se aplica não só aos pesadelos mas também a todas as
memórias sociais fundamentais, e portanto que a literatura de ficção torna
possível pensar na luta de libertação sem necessariamente a experimentar; e,
por mais paradoxal que possa parecer, ao fazê-lo, ao imprimir nela uma dimensão
ficcional, alimenta a fábula congelada com aquilo que, através de um debate
aberto, a permite transformar-se em verdadeira memória social.
Ao falarmos do passado enfrentamos - como diria Paul Ricoeur (1984)
- dois tempos distintos: o tempo daquilo que é enunciado e o tempo da
enunciação, que é o presente. Assim, ao perguntarmos ao passado também estamos,
de certa maneira, a fazer perguntas sobre o presente. A natureza e qualidade
dessas perguntas diz muito da natureza e qualidade das nossas vidas, daquilo
que somos hoje.