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EuPTHUAp2182-74352015000300008

EuPTHUAp2182-74352015000300008

variedadeEu
ano2015
fonteScielo

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Conhecimento, prática e ética: Os desafios da investigação-ação em contexto de prostituição feminina de rua

Introdução Nos últimos anos, temos assistido a um crescimento substancial de produção de conhecimento sobre o trabalho sexual e os seus atores, na sua complexidade e diversidade, sendo que em alguns casos encontramos alternativas às abordagens tradicionais de conhecimento, através do encorajamento dos/as trabalhadores/as do sexo (TS) e de outros agentes para a participação ativa em pesquisas colaborativas (por exemplo: Hubbard, 1999; Lopes, 2006; Martin, 2013; O'Neill e Campbell, 2006; O'Neill, 2010; Sanders, 2006; Shaver, 2005; van der Meulen, 2011a, 2011b; Wahab, 2003). Entre os diversos estudos colaborativos e participados, destacamos, como exemplos, os centrados nas políticas de inclusão (O'Neill, 2010), na organização laboral e mudança legal (Lopes, 2006; van der Meulen, 2011a, 2011b), na redução de danos (Martin, 2013), na promoção da saúde e prevenção de VIH/SIDA (Cornish, 2006; Swendeman et al., 2009) e na resolução de conflitos e diminuição do medo da diferença, através do estabelecimento de canais de comunicação entre os/as TS e os residentes em zonas de trabalho sexual (O'Neill et al., 2008; O'Neill e Campbell, 2006). Em Portugal, à exceção da implementação e avaliação de um modelo de educação de pares, no âmbito do projeto PREVIH (Oliveira e Mota, 2013), não existem registos de investigação-ação participativa com TS.1 Todavia, não podemos deixar de salientar a importância do estudo de Ribeiro et al. (2008) e de Oliveira (2011) no processo de dar voz às TS e na desconstrução de binários.

O trabalho sexual compreende as situações que envolvem a troca comercial de serviços sexuais, performances ou produtos, entre adultos e com o seu consentimento (Oliveira, 2011), onde se incluem atividades de contacto físico direto entre compradores e vendedores (por exemplo a prostituição); e as de estimulação sexual indireta, como pornografia, striptease, sexo por telefone, show de sexo ao vivo, webcam eróticas (Weitzer, 2009). Referimo-nos à prostituição como uma forma de trabalho sexual e utilizamos as duas designações indistintamente.

Apesar de a prostituição não ser uma prática criminalizada legalmente, as pessoas envolvidas na atividade incorrem em processos e mecanismos de exclusão social, preconceito e estigmatização, que comprometem seriamente o seu bem- estar (Day, 2007; Lazarus et al., 2012; Levin e Peled, 2011; Ross et al., 2012; Scambler, 2007; Weitzer, 2009). Consideramos que urge contrariar esta situação mediante o incentivo à criação de espaços e tempos democráticos de escuta e reflexão. Nesta sequência, empreendemos um projeto de investigação-ação com prostitutas de rua e uma equipa de proximidade, em desenvolvimento em Coimbra desde finais de 2012. O propósito consiste em desenvolver e avaliar uma proposta socioeducativa centrada nos direitos e necessidades das TS de rua, através da promoção da participação, do sentido crítico, da reflexão, da tomada de decisão, da responsabilidade e da coconstrução de todos os intervenientes (TS, técnicos e investigadora) para uma intervenção congruente com as necessidades e com os princípios de respeito e de empoderamento.

De maneira a produzir conhecimento pragmático, situado e contextualizado, e visando gerar conscientização e ação, optámos pelo paradigma sociocrítico (Denzin e Lincoln, 2006; Freire, 1972), estabelecendo inevitáveis interseções com os feminismos. Neste contexto, a investigação-ação participativa (IAP) assume o lugar de ferramenta educativa por excelência, uma vez que ao contrariar as premissas tradicionais do conhecimento, envolve todos os participantes como coautores da narrativa que tece o conhecimento contextualizado, situado numa prática transformadora.

Tal como Fals Borda (2001) postula, consideramos a IAP uma filosofia de vida, que converte o praticante em pessoa que pensa e sente. Desta forma, não importa apenas a obtenção de conhecimento, mas a transformação da atitude individual e dos valores, da personalidade e da cultura, num processo político de inclusão de quem usualmente se encontra excluído. Neste novo paradigma alternativo, sugerido por Fals Borda (ibidem), a prática e a ética, bem como o conhecimento académico e a sabedoria popular combinam de forma harmoniosa e produtiva.

Neste artigo, pretendemos refletir sobre o paradigma que ancora e norteia a nossa pesquisa, abarcando os seus quatro eixos conceptuais: ontologia, epistemologia, metodologia e ética, tal como definidos por Denzin e Lincoln (2006). A pertinência desta discussão prende-se com o facto de o paradigma se constituir um sistema básico que orienta o investigador no processo de conhecimento (Denzin e Lincoln, 2006; Lincoln e Guba, 2008), e portanto, encontra-se conectado com a visão do mundo, oferecendo um quadro de leitura, de maneira que as pessoas conhecem, pensam e agem de acordo com o mesmo (Morin, 1999). Concomitantemente, uma vez que o sujeito-objeto deste estudo se encontra repleto de controvérsia, e raramente é envolvido em IAP, este texto surge como o culminar das reflexões sucessivas no processo de investigação. O presente artigo encontra-se estruturado a partir das questões ontológicas, epistemológicas, metodológicas e, por fim, éticas. 

Ontologia: a prostituição enquanto (objeto) sujeito de estudo É praticamente impossível falar sobre trabalho sexual sem revisitar as perspetivas feministas. De facto, desde o século xix que as questões da prostituição e do tráfico de mulheres para fins sexuais têm marcado presença nas agendas feministas. Se inicialmente existia consenso no entendimento da prática como uma expressão do patriarcado que vitimiza as mulheres, a partir da denominada segunda onda do feminismo uma maior centralidade na sexualidade conduziu a posições diferenciadas (Humm, 1995). Essas posições tomam a forma de correntes, tais como o feminismo radical, o socialismo-marxista, o liberal ou o pós-estruturalista, entre outras; às quais correspondem interpretações divergentes sobre a temática (ver Beasley, 1999; Bromberg, 1998). Mas é entre o feminismo radical e o feminismo liberal que a querela se intensifica, devido aos extremos que protagonizam acerca desta matéria: prostituição como um crime, em que as mulheres são vítimas e os homens prostituidores (Barry, 1995; Dworkin, 1981; Farley, 2005; Jeffreys, 1997; MacKinnon, 1987) versus prostituição como um trabalho escolhido racionalmente e que pode ser bem- sucedido (Chapkis, 1997; Delacoste e Alexander, 1998; McLeod, 1982; Nagle, 1997; Pheterson, 1989).

A pluralidade feminista emerge das explicações sobre a base da opressão das mulheres e suas recomendações para a mudança (Maguire, 2001; Pilcher e Whelehan, 2008). A opressão enraíza-se na diferenciação de género, que, por sua vez, constitui a forma primária de significação das relações de poder (Scott, 1995), e deve-se primeiramente ao controlo masculino universal sobre o corpo e a sexualidade feminina (Humm, 1995). A título de exemplo e de forma sintética, para as radicais, a opressão está relacionada com o patriarcado, com o sexismo, com a violência dos homens contra as mulheres e, noutra instância, com o racismo e o imperialismo. as socialistas-marxistas atribuem a opressão à relação de classe, às relações do capital com o proletariado, incluindo o trabalho doméstico (Frye, 2005); as liberais à falta de igualdade de oportunidades e de direitos; e as feministas pós-estruturalistas adotaram o conceito de poder de Foucault (1985, 1990, 2008) como estruturado pelo saber nos discursos das práticas sociais. O poder é entendido como difuso, produtivo, construído historicamente, exercido em contexto e não detido por algumas classes sociais. Por esta via, o poder encontra-se relacionado com um contexto social, político e económico que pode ser modificado. Esta visão situa-se em linha com as feministas que adotaram o conceito de empoderamento e desconstrói os discursos de opressão associados à vitimização e à ausência de capacidade de agência/resistência das mulheres. Porém, outros feminismos, embora reconhecendo os contributos de Foucault, tecem-lhe duras críticas, argumentando que este negligenciou a categoria género na sua análise (por exemplo Butler, 1990; De Laurentis, 1987; Scott, 1995).

Estas divergências assumem um papel fulcral quer para o entendimento contextualizado da prostituição como uma construção social, quer para a análise da constituição de micropoderes na produção de discursos (Foucault, 2008) e nas representações sociais (Jodelet, 1989; Moscovici, 1976), que informam e são informadas pelo senso comum e podem repercutir-se em mudanças a nível das práticas institucionais, políticas e sociais.

Histórica e contextualmente, a figura da prostituta foi sendo construída na relação dialógica do conhecimento-poder, que permitiu, por uma via, a consolidação da hegemonia social e, por outra, a produção legislativa para o estabelecimento de interditos e de permissões (Foucault, 1990). Assim, o corpo e a sexualidade, não das prostitutas, mas de todas mulheres, foram alvo de controlo sob uma perspetiva substancialmente masculina, oficializando-se nos discursos oficiais, de natureza médica, legal e política.

Retomemos o conceito de opressão para melhor explicitar a interseção com o nosso objeto e sujeito de estudo. Young (2005) entende opressão como a inibição de um grupo através de uma vasta rede de práticas diárias, atitudes, comportamentos, regras institucionais. Na linha de Foucault, Young (ibidem) sugere a análise do exercício do poder como efeito das práticas liberais e humanizadas nas atividades quotidianas. A ação diária e consciente de muitos indivíduos contribui para manter e reproduzir opressão, sendo que muitas vezes podem assumir-se como rotinas sem consciencialização. Entendemos que a opressão se encontra presente na prostituição, na medida que os seus atores permanecem na atividade à margem das leis, dos direitos e deveres, de uma vida condigna; sujeitos a múltiplas formas de exclusão, decursivas de outros fatores socioeconómicos de risco, discriminações e estigma. Esta situação de vulnerabilidade conduz ainda a mais opressão ao conferir legitimidade aos serviços sociais formais para controlar e invadir a privacidade destas pessoas.

Para Young (ibidem), as instituições de caridade constroem as próprias necessidades e os profissionais é que definem o melhor para os seus clientes, considerando-os dependentes e incapazes. Assim, a dependência na sociedade liberal implica uma condição suficiente para suspender os direitos à privacidade, ao respeito e à escolha individual. Na mesma linha, a respeito das equipas de proximidade que dirigem serviços a TS, Agustín (2007) afirma que as figuras sociais que criaram e desenvolvem esses projetos justificam frequentemente as suas ações sem a referência às necessidades, assentam em discursos impostos de solidariedade, de empoderamento, de autoestima e de inclusão social. Por esta via, os discursos produzidos pelos técnicos que trabalham junto das populações devem ser questionados na sua dimensão de poder e na sua capacidade de gerar opressão, mesmo quando a sua intenção é promover o empoderamento. De facto, estas instituições desempenham um papel muito importante, funcionando grande parte das vezes como aliadas na luta pela defesa dos direitos humanos, sejam eles perspetivados no sentido de combate contra a violência que a prostituição representa (discurso antiprostituição), sejam pela revindicação de direitos laborais (discurso pró-trabalho sexual).

Apesar de existirem diversos coletivos de TS que reivindicam por direitos laborais e contra a discriminação (Kempadoo, 1998; Mathieu, 2003; Roberts, 1996), inclusive em Portugal foram tomadas algumas iniciativas nesse sentido (Lopes e Oliveira, 2006), a opressão continua a inibir a participação dos/as TS nos debates sociopolíticos em torno dos seus interesses. De acordo com Mathieu (2003), existem diversos obstáculos à formação de um movimento social, relacionados com o contexto legal, com a falta de estrutura e organização da prostituição, com as características pessoais, sociais, económicas e culturais da população, usualmente com condições gerais de vida precárias, e com a falta de coesão interna, ou seja, a inexistência de uma identidade coletiva, o que lhe confere pouca capacidade de organização para uma posição reivindicativa. A falta de identidade profissional encontra-se também associada à ausência de vantagens percebidas. Com efeito, geralmente as/os TS consideram que a prostituição é uma situação temporária (Agustín, 2007) e as represálias sociais não justificam um posicionamento proativo. Estas dificuldades acabam por conferir mais poder a outros discursos, em detrimento do empoderamento dos sujeitos envolvidos na prostituição.

No que concerne ao nosso posicionamento, concordamos com Maggie O'Neill (2001) e entendemos a prostituição como uma resposta compreensível e razoável a necessidades socioeconómicas, dentro de um contexto cultural consumista e social que privilegia a sexualidade masculina. Para melhor compreender a prostituição é necessário examinar as inter-relações entre a vida das mulheres (microanálise) e as metacondições da sociedade alargada (macroanálise), incluindo a análise histórica, no sentido de encontrar diferenças e semelhanças nas subjetividades e a necessidade de respostas coletivas. Rejeitamos a conceção de um grupo homogéneo, porque, tal como constatou Oliveira (2011), apesar de existirem regularidades nas experiências de vida das mulheres que se prostituem, os significados atribuídos e as trajetórias são bastante diversificados. Por outro lado, existe uma multiplicidade de formas de trabalho sexual (Harcourt e Donovan, 2005), sendo a prostituição feminina apenas uma faceta. Neste estudo excluímos deliberadamente outras formas de trabalho sexual, atores, géneros e contextos, restringindo a nossa análise à prostituição feminina de exterior.

Tal como outros autores portugueses (Oliveira, 2011; Ribeiroet al., 2008; Silva, 2010), concordamos com a legalização do trabalho sexual, com a respetiva regulamentação e com a fiscalização da atividade. Consideramos que a legalização pode permitir a segurança de pessoas que voluntariamente ingressem nesta profissão e a deteção de casos de coação, resultantes de tráfico de seres humanos. Todavia, do nosso ponto de vista, para que esta mudança legal, a acontecer, possa traduzir-se numa efetiva transformação das condições de exercício da profissão, será imprescindível o combate ao estigma do trabalho sexual e dos seus atores. Acresce ainda que a mudança legal deveria ser acompanhada de outras mudanças, com um carácter estrutural. Referimo-nos, por um lado, à necessidade de promoção de igualdade de oportunidades a todos os níveis, independentemente das categorias usualmente discriminatórias e, por outro lado, num outro plano, a oposição aos discursos neoliberais que valorizam o consumismo, o capital e a competição desenfreada, onde incluímos a urgência da (re)conquista de direitos sociais e laborais que foram colocados em causa nos últimos anos pela crise internacional. Este último ponto é fundamental na medida que os discursos atuais produzem e sustentam formas de dominação, em contextos assimétricos, com maior vulnerabilidade para as pessoas que se encontram em situações precárias. Estes discursos são, do nosso ponto de vista, incompatíveis com os direitos, as liberdades e as garantias do cidadão. Um mundo mais justo e solidário cria mais oportunidades, e, portanto, mais possibilidades de fazer escolhas de facto livres e informadas por esta ou outras profissões e/ou modos de vida. Todavia, a opressão é sistematicamente reproduzida nas maiores instituições económicas, políticas e culturais, de maneira que mudar leis não é suficiente (Young, 2005) e as assimetrias continuam a reproduzir-se.

Sintetizando, o debate feminista sobre o trabalho sexual é fundamental para compreender o fenómeno na sua complexidade. A identificação da opressão estrutural e sistémica, e a forma como estas se conjugam e se repercutem na vida destes atores é igualmente importante, na medida em que permite vislumbrar obstáculos à participação dos/as TS na defesa dos seus interesses. O trabalho sexual é composto por diversas verdades socialmente construídas e, como tal, a natureza do nosso objeto (sujeito) de estudo assume-se como uma realidade múltipla.

Epistemologia: poder na construção social do conhecimento e nas relações interpessoais Tendo em conta o nosso objeto de estudo - prostituição feminina de rua, em específico, a relação das TS com os serviços de outreach - de maneira a desenvolver uma intervenção participada e mais congruente com as necessidades dos/as participantes, nesta secção focamos a forma como entendemos a construção do conhecimento em IAP. Para tal, abordamos as epistemologias feministas, a relação horizontal e a valorização das subjetividades.

Os feminismos têm assumido um compromisso sério como movimento político para a transformação social, estrutural e pessoal, implicando-se na luta contra todos os sistemas de opressão/dominação, sem o qual as mulheres não teriam adquirido direitos sociais, sexuais ou humanos. Do ponto de vista da investigação científica, consideramos que o seu contributo para o debate público destas e de outras questões cruciais se encontra intrinsecamente ligado a um posicionamento epistemológico que problematiza sistematicamente as relações de poder na construção social do conhecimento, envolvendo outras categorias além do género, como a raça ou classe (Maguire, 2001). Cook e Fonow (1986) sintetizam este posicionamento epistemológico através da enumeração dos seguintes princípios: 1) o foco nas relações de género como característica da vida social e também na condução de investigação; 2) a centralidade da conscientização como metodologia específica; 3) a necessidade de desafiar a "objetividade" que assume a dicotomia sujeito-objeto de investigação; 4) a preocupação com as implicações éticas; e 5) a ênfase na transformação do patriarcado e o empoderamento das mulheres. Como tal, independentemente das epistemologias feministas postularem a criação de novo conhecimento (standpoint) ou a desconstrução do conhecimento existente para a criação de conhecimento positivo (pós-estruturalistas) (Andermahr et al., 1997; Harding, 1996), os contributos de ambos os pensamentos revestem-se de primordial importância na condução do nosso trabalho. Destacamos, em primeiro lugar, o contributo das teorias de standpoint e da forte objetividade (strong objectivity) (Harding, 1993). Esta posição permite uma crítica construtiva ao paradigma positivista e masculino da ciência e inclui outras formas de conhecimento - situado, histórica e socialmente contextualizado; que confere validade à experiência subjetiva e à voz das mulheres, sobretudo aquelas que se dedicam a atividades usualmente discriminadas, como é o caso da prostituição; e que argumenta pela implicação política e do investigador no processo de investigação, no sentido da democracia e da promoção dos direitos humanos. Em segundo lugar, apropriamo-nos do conceito de heteroglossia, adotado por Haraway (1991), que conta das relações de poder do conhecimento científico legitimadas em saber-poder (Foucault, 1990). Para a autora, os discursos sociais são constituídos por uma multiplicidade de discursos, associados a grupos e relações de poder. Por esta via, não existe um discurso único ou igual, mas uma heteroglossia, com vozes que surgem dos locais distintos, que tanto divergem como convergem. Também para Haraway (1991) o conhecimento é assumidamente parcial, subjetivo e contextualizado.

Paralelamente, a investigação de cariz feminista tem desafiado as formas tradicionais de conhecimento, ao desenvolver metodologias inovadoras e ao incluir novas formas de conhecer, como por exemplo o recurso às artes visuais ou performativas.

Com as devidas diferenças, as epistemologias feministas, tal como a etnometodologia (Garfinkel, 1967) e o interacionismo simbólico (Blumer, 1986; Goffman, 1989; Mead, 1934), valorizam as experiências pessoais quotidianas de mulheres e de homens, a construção social de conhecimento, através dos significados atribuídos em interação dinâmica com os outros e com o mundo, que influenciam e são influenciados neste ato de conhecer e de ser. As feministas valorizam a relação interpessoal: as pessoas crescem e mudam no contexto das relações humanas, sendo a produção de ciência uma relação (Maguire, 2001). As práticas quotidianas tendem a ser ignoradas ou até mesmo desvalorizadas pela ciência positivista, mas no feminismo apresentam lugar de destaque também como meio de conscientização para a transformação social. Este processo se torna possível com o recurso a métodos participativos, com a rejeição da dicotomia sujeito-objeto e a apreciação dos conhecimentos situados, do dia a dia, do senso comum.

Nesta sequência, apropriamo-nos das ideias de Santos (2007) e postulamos que a epistemologia feminista contribui para uma reflexão crítica da ciência, rompendo com as monoculturas da sociologia das ausências, cujos modos de produção conduzem a um "'epistemícidio' - morte dos conhecimentos alternativos" (ibidem: 29); à conceção do tempo linear, que apenas contempla um sentido na história do desenvolvimento; à naturalização das diferenças, sempre interpretadas pela desigualdade e inferioridade; à da escala dominante, tendo apenas atenção sobre o global e não valorizando o local; e ao produtivismo capitalista. Muito embora Santos (2007) se refira, neste trabalho, às discrepâncias entre o hemisférico norte e sul, resgatamos esta ideia porque nos parece adequada e útil, tendo em conta as discussões presentes a nível dos paradigmas de conhecimento científico (Guba, 1990; Kuhn, 1970) e a necessidade de renovar e reinventar a teoria e a emancipação social (Santos, 2007).

Ainda na linha de raciocínio de Santos (1995), entendemos o conhecimento científico e o conhecimento popular como duas faces da mesma moeda, uma vez que o conhecimento do senso comum aproxima as vivências e assume um carácter pragmático. O mesmo autor postula: () superação da distinção entre ciência e senso comum e da transformação de ambos numa nova forma de conhecimento, simultaneamente mais reflexivo e mais prático, mais democrático e mais emancipador do que qualquer deles em separado.

(Santos, 1995: 86) Na sua ótica, deixou de fazer sentido criar um conhecimento novo e autónomo em confronto com o senso comum (1.ª rutura) se esse conhecimento não se destinar a transformar o senso comum e a transformar-se nele (2.ª rutura). Fals Borda (2001) segue a mesma lógica e argumenta que o ideal seria conseguirmos descobrir uma forma de fazer convergir pensamento popular e conhecimento académico, de maneira a obter um conhecimento mais completo e aplicável. Torna- se relevante, ainda, a apropriação e a difusão do conhecimento científico pelo senso comum, como nos esclarece a teoria das representações sociais de Moscovici (1976), no sentido de consciência dos processos através dos quais os sujeitos, em interação social, constroem teorias sobre os assuntos sociais, que se repercutem na relação com os outros, consigo e com o mundo.

O questionamento sobre a utilidade do conhecimento científico tem estado presente em diversos autores que desenvolvem pesquisas de investigação-ação, como é o caso de Fals Borda (2001) ou Schostak e Schostak (2008). De que forma o conhecimento produzido em meio académico pode ser útil às pessoas comprometidas com as pesquisas e à sociedade da qual fazem parte? Conhecer significa poder, como advogam diversos autores (Foucault, 2008; Freire, 1972), e significa também que esse poder não deve ser exclusivo de determinados grupos, devendo encontrar-se ao serviço de todos, para que possamos construir uma sociedade mais equitativa e justa, para que possamos (re)distribuir poderes e com eles assumir compromissos e responsabilidades.

Para Fals Borda (2001) é essencial que as pessoas conheçam as suas condições, de modo a que possam defender os seus interesses, e não que os conhecimentos, recursos, técnicas e poderes sejam monopolizados apenas por alguns.

Assim, na IAP, em contexto de prostituição de rua, o conhecimento, construído na relação horizontal entre os/as participantes é tendencialmente subjetivo, plural, mutável e complexo. O conhecimento com vista à melhoria das práticas, que contemplem as necessidades e vontades de todos, decorre da experiência quotidiana e das iniciativas de conscientização que, pelo seu turno, permitem a tomada de ação, e posterior reflexão conjunta.

Metodologia: investigação-ação participativa Tendo em conta o propósito do nosso estudo, que consiste em desenvolver e avaliar uma proposta socioeducativa centrada nos direitos e necessidades das TS de rua, justificamos a nossa opção por uma metodologia de IAP. Dentro das diversas formas de investigação-ação (IA) descritas por vários autores (Cassell e Johnson, 2006; Kemmis e McTaggart, 2005; Reason e Bradbury, 2001; Whyte, 1991) posicionamo-nos numa linha crítica ou emancipatória, cujos objetivos se consubstanciam em melhorar resultados (numa vertente técnica), promover a conscientização (numa forma sobretudo prática) e apoiar os participantes no processo de se tornarem mais críticos (emancipação).

O conhecimento no contexto da IAP, de acordo com Park (2001), pode ser representativo, relacional e reflexivo, na medida que surge a partir de situações reais que abarcam dimensões materiais, relacionais e morais. A estas formas de conhecimento encontram-se associadas três formas de poder, isto é, o de controlar objetivamente a realidade; o de ser solidário com os outros; e o de atuar sobre valores morais. para Gaventa e Cornwall (2001), existem quatro abordagens ao poder com respetivas implicações para a investigação, a saber: 1) o conhecimento é um recurso mobilizado para informar e influenciar decisores sobre assuntos públicos essenciais; 2) os detentores de poder controlam a produção de conhecimento, estabelecem as prioridades e decidem sobre as vozes que incluem e excluem do processo; 3) sob influência de Freire (1972), a ênfase é colocada sobre as formas como a produção de conhecimento moldam a consciência e as capacidades para tomar ação; 4) numa linha diferente das anteriores, o poder tido como repressivo, concetualizado como um recurso ganho pelo indivíduo, mantido e exercido, afigura-se como produtivo e relacional, operando através dos discursos, instituições e práticas que lhe são produtivas (Foucault, 1990).

Para Gaventa e Cornwall (2001), a IAP contribui assim para o empoderamento - entendido como um processo em que os indivíduos ganham controlo e mestria sobre as suas vidas e participação democrática nas suas comunidades (Rappaport, 1987) - uma vez que procura mudar as relações de poder nas dimensões de conhecimento (como recurso que afeta as decisões); da ação (que atenta a quem está envolvido na produção desse conhecimento); da consciência (centra-se no modo como a produção do conhecimento muda a consciencialização de quem está envolvido), através do encorajamento à participação. Trata-se, portanto, de um processo de conscientização e de reconhecimento, pelos atores, dos seus próprios recursos (Fals Borda, 1988; Freire, 1972), garantindo o sentido de controlo aos participantes (McTaggart, 1994). A participação é assim condição de conhecimento e, numa última análise, condição de exercício de poder através de práticas e discursos. Colocar em palco o direito das TS terem voz implica que tem de se lidar com esta voz, o que afeta as relações de poder.

Como as realidades são socialmente construídas, são modificáveis através do questionamento (Lincoln, 2001), peça central na reconstrução de narrativas em relação com o mundo e no processo de conscientização.

A participação, condição essencial, encontra-se associada à qualidade da relação estabelecida com o investigador. A relação é, assim, crucial para o desenvolvimento de um trabalho de IAP de qualidade (Bogdan e Biklen, 1992; Gaventa e Cornwall, 2001; Ospina et al., 2004; Park, 2001; Reason e Bradbury, 2001), sendo que o potencial de mudança é determinado pela qualidade das relações dos atores e a forma como endereçam as relações de poder (Gaventa e Cornwall, 2001).

A promoção de atividades de conscientização, inerentes à IAP, para além de incluir as vozes das TS nos assuntos que as afetam, permitem encorajá-las no sentido de assumirem um papel de maior controlo sobre os mesmos.

Ética: dilemas éticos A presente reflexão (re)conduz, por fim, ao início de todas as nossas interrogações. Iniciámos a pesquisa de campo comprometidas com a produção de conhecimento que pudesse ser útil aos/às participantes, com o entendimento de que a prostituição é um fenómeno complexo, que exige uma compreensão da sua pluralidade a partir de uma análise das intersubjetividades, dos discursos, das práticas e das condições supraestruturais. É também um tema repleto de controvérsias, sentimentos, sentidos e significados, aos quais não podemos ficar indiferentes, sendo que a nossa posição pode comprometer as relações e as narrativas das participantes (Agustín, 2004). Nesta sequência, a dimensão ética emerge naturalmente, também ela como questão e objetivo que precedem e procedem da investigação.

A nível formal, os procedimentos éticos para a pesquisa com seres humanos encontram-se amplamente documentados, com entidades reguladoras oficiais, quer nacionais, quer internacionais. Por outro lado, inúmeros manuais de metodologia (cf. por exemplo Bryman, 2012; Christians, 2005) estabelecem os princípios legais e éticos referentes à condução das pesquisas e à escrita académica, como a honestidade e a integridade do investigador para com os dados de pesquisa, a partilha dos resultados, a creditação das fontes, a clarificação de conflitos de interesse, a salvaguarda do anonimato e da confidencialidade, o respeito pela privacidade e liberdade de opinião, a obtenção de permissão para recolha e uso de dados com consentimento informado, e a garantia da ausência de custos/ prejuízos ou danos aos participantes (American Psychological Association, 2010).

Todavia, os aspetos éticos da investigação não se circunscrevem aos aspetos formais, pelo que consideramos fundamental tornar explícita e transparente essa mesma dimensão ética em investigação, a um nível geral. Especificamente relacionados com a investigação em contextos de prostituição, enumeramos os seguintes dilemas:

1. O posicionamento dos investigadores. De que forma é que as nossas experiências e "visões do mundo" afetam a relação de escuta que estabelecemos com as TS e os técnicos e a produção de conhecimento com vista à práxis transformadora? 2. As relações de poder na construção do conhecimento e na relação sujeito- sujeito. De que forma podemos desconstruir o estatuto de "especialistas" para o estabelecimento de uma relação horizontal, com o reconhecimento e valorização dos vários tipos de saber/ conhecimento por parte de todos os participantes? 3. A identificação da necessidade de fazer justiça ao slogan "o pessoal é político" (Hanisch, 1970), através do incentivo à participação de pessoas usualmente excluídas das esferas públicas e dos assuntos que lhes dizem respeito. O que justifica a necessidade de investigação-ação com prostitutas de rua? No caminho das "boas intenções", ao focar a prostituição não estaremos negligentemente a reproduzir discursos de vitimização? 4. O ganho (imoral) dos investigadores. De que maneira podemos garantir que conduzimos uma investigação em prol dos principais interessados e não para benefícios pessoais e para progressão na carreira académica, como contestado por autores como Agustín (2004), Fals Borda (2001), O'Neill (2001) ou Sanders (2006)? 5. Por último, como podemos abandonar o terreno, quando construímos progressivamente relações de cooperação, de confiança e de amizade com as pessoas, sem que estas se sintam abandonadas ou traídas?

A opção por métodos de pesquisa orientados para a ação e que contemplem o dar voz a categorias populacionais usualmente excluídas, enfatizando o seu potencial emancipatório (Hubbard, 1999), tem sido precisamente apontada como uma forma de redução do carácter explorador das pesquisas (Sanders, 2006; Shaver, 2005). A inclusão dos/as TS no desenho e processo de investigação como coinvestigadores, recorrendo, para o efeito, à IAP, numa cooperação estreita com todos os envolvidos (Benoit et al., 2005; van der Meulen, 2011a) é, por si, uma forma de garantir a pluralidade, a subjetividade e o controlo dos/as participantes.

Por outro lado, a conduta do investigador deve reger-se pela transparência, pela abertura à complexidade e pela ética do cuidado. Na concetualização de Gilligan (1982), a ética do cuidado compreende a consciência de ligação entre as pessoas, o reconhecimento da responsabilidade de uns pelos outros, a moralidade como consequência da consideração desse relacionamento e a comunicação como forma de resolução de conflitos. A atenção, a responsabilidade, a competência e a responsividade são elementos da ética, enquanto prática e não um conjunto de regras (Tronto, 2005). A estes elementos acrescentamos a reciprocidade, uma vez que postulamos relações horizontais, colaborativas e de proximidade.

Notas finais De forma a combater a exclusão, a discriminação e o estigma associados à prostituição, empreendemos o compromisso de produzir conhecimento útil, que produza diferença na forma de agir, pensar, sentir e acreditar sobre as questões associadas a esta atividade. Entendemos que "o conhecimento científico, como linguagem, é intrinsecamente a propriedade comum de um grupo ou então não é nada" (Kuhn, 1970: 257). Nesta afirmação, interpretamos grupo não apenas como a comunidade científica, mas todos os participantes em projetos de investigação, bem como a sociedade em geral. Desta forma, postulamos uma investigação ancorada na centralidade axiológica dos atores sociais e na relação dialógica entre estes e o investigador que, permitindo tornar públicos os problemas privados (Burawoy, 2005) terá de se revestir criteriosamente de um agir ético.

A prostituição é um tema repleto de significados e sentidos, assim como de discórdia e, portanto, a investigação e a prática social com prostitutas, assim como com outras minorias normalmente associadas a contextos de discriminação e de exclusão, exigem maturidade e requerem um exame pessoal cuidadoso, de forma a desafiar as relações de poder no conhecimento-prática, através da horizontalidade, da empatia e do não julgamento. Mais do que colher dados, os investigadores de IAP semeiam relações. Por outro lado, é também necessário transformar as subjetividades em ações concretas, que permitam romper com o estigma, principal fator de inibição para a participação ativa na esfera pública.

A prática social é indissociável da investigação, e tanto uma como outra requerem reflexão e ética. Assim sendo, argumentamos por um paradigma de investigação que confira legitimidade a formas de conhecimento útil e transformador, que incentive à criação de espaços democráticos e, sobretudo, que respeite as liberdades, a dignidade e as diferenças. As palavras-chave são assim ação, conhecimento, reflexão, transformação e ética do saber ser e agir.


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