João Franco e o Fracasso do Reformismo Liberal (1884-1908)
Rui Ramos, João Franco e o Fracasso do Reformismo Liberal (1884-1908), Lisboa,
Instituto de Ciências Sociais, 2001, 222 páginas.
A ingénua crença do positivismo historiográfico oitocentista de que era
possível descobrir a verdade "histórica" ou a "verdade"
acontecida plasmada em documentos manuscritos e únicos, cuja heurística,
crítica interna e externa e hermenêutica rigorosa constituíam as pedras de
toque metodológicas da "escola" erudito-metódica com sólidas e
perenes raízes no meio académico português, foi facilmente desmontada ao longo
do século XX pela crítica certeira de pensadores e de historiadores lúcidos e
atentos para os quais a mediação narrativa dos factos era uma construção mental
e subjectiva. Era, em suma, o reconhecimento da impossibilidade de uma
"verdade pura e externa" ao sujeito — o sujeito que ingloriamente a
procurava e que, afinal, inevitavelmente a (re)construía.
Mas, ao mesmo tempo que essa crítica se desenvolvia e afirmava, o grupo dos
Annales e a subsequente Nouvelle histoire, sob a forte influência do marxismo,
edificaram uma abordagem neopositivista de base quantitativa e nomotética
empenhada em explicar deterministicamente a evolução do social (nas suas
facetas mais mensuráveis: a económica e a demográfica), relegando o indivíduo e
o acontecimento (elementos nobres da antiga história política) para a arca das
"velharias inúteis ". Uma posição que tendeu a ser hegemónica nas
décadas de 50, 60 e 70 do século XX, sofrendo a partir de então uma contestação
associada ao retorno da narrativa baseada na compreensão enquanto forma ou meio
de interpretar o passado. E, como sublinhou Rui Ramos em artigo publicado em
1991, o retorno da narrativa, do singular, do modo descritivo e da compreensão,
significou então que alguma "nova" nova história se estava a
reaproximar do ponto de vista político 1.
Na "hora dos retornos", a história política saía do banimento e
regressava ao palco por duas vias — a "cientificação" do político
sustentada por René Rémond e seus seguidores e a apologia da narrativa
histórico- política. Em defesa desta escreveu Maria de Fátima Bonifácio um
sugestivo ensaio em que se distancia criticamente dos resultados decepcionantes
(a expressão é dela) do programa teórico-metodológico de René Rémond e em que
destaca as características fundamentais desta opção discursiva e hermenêutica,
sublinhando a dado passo: "Esta passagem — dos actos individuais para a
história de conjunto — fá-la a narrativa sem o recurso a proposições
explicativas gerais ou abstractas, pelo motivo de que nenhum facto ou
acontecimento, enquanto resultante da acção humana, é explicável por uma
proposição geral e abstracta — ao contrário dos factos físicos ou naturais, que
são explicados por referência a uma ou várias leis gerais. [...] É por isso que
a verdadeira história política, além de envolver algo mais e diferente de uma
teoria da acção ou uma teoria psicológica, só pode ser escrita sob a forma
narrativa: trata de acções, e portanto de acontecimentos, cujo significado
apenas podemos apreender na sua relação com outros acontecimentos ulteriores,
todos eles irredutíveis, pelas razões apontadas, a qualquer narrativa 2."
Linhas de força de uma concepção da "nova" nova história
(re)valorizadora do político através de uma assumida e desenvolta utilização da
narrativa e com a qual o autor de João Franco e o Fracasso do Reformismo
Liberal (1884-1908) está em sintonia — o recurso a um género discursivo solto e
sugestivo é, aliás, patente da primeira à última página do ensaio, mas a
preocupação de compreender a figura em seu contexto espácio-temporal ressalta
por de mais evidente e prefigura uma preocupação de cientificidade possível em
história e ciências sociais acompanhada, necessariamente, por algumas
prevenções metodológicas contra a tentação do relativismo historiográfico que
faz do (re)interpretar à outrance meio e fim absolutos. Sobressai, porém, uma
ou outra fragilidade decorrente do paradigma adoptado que deixaremos para o
final.
Mantendo a desconfiança em relação às teorias explicativas a priori, posição
típica de uma história compreensiva, o autor, ao escolher João Ferreira Franco
e Freire Pinto Castelo Branco (1855-1929) e o franquismo (1906-1908) como caso
específico de estudo, não foi certamente alheio à complexidade e sobretudo à
controvérsia que desde a sua génese se desenvolveu, predominando e prevalecendo
até agora uma interpretação "forte" e linear urdida por adversários
políticos, por historiadores republicanos e por outros de formação marxista,
que consiste na identificação do franquismo com o salazarismo, ou seja, na sua
condição de fenómeno precursor das ditaduras de entre guerras. Uma leitura
simples(ista) e aparentemente óbvia que tem servido para outros casos e
situações, mas que não pode escapar mais a um rigoroso exame crítico.
Rui Ramos empreendeu, globalmente com sucesso, esse imperativo científico. E,
ao contrário de José Miguel Sardica 3, investigador munido, também ele, de
preceitos e de preocupações de rigor interpretativo, que autores precedentes,
como Rocha Martins, Lopes de Oliveira, Alfredo Pimenta ou Rodrigues Cavalheiro,
manifestamente não seguiram, soube e pôde explorar criticamente toda a
informação primária usada a ponto de refutar a "lenda negra"
mantida, no essencial, pela recente historiografia desde a História de Portugal
de A. H. de Oliveira Marques, onde se diz que João Franco foi adepto de um novo
tipo de monarquia, assaz despótica 4, até ao ensaio sinóptico de Amadeu
Carvalho Homem, que acentua a tentação ditatorial e bismarckiana do franquismo
5
.
Na opinião de Rui Ramos, "a mais recente história académica do franquismo
consistiu, em geral, na adaptação das teorias marxistas sobre o fascismo. Os
historiadores marxistas entenderam a democracia como uma conquista das massas e
o fascismo como a reacção da antiga classe dirigente a essa conquista. Franco
foi identificado como o representante de uma oligarquia ameaçada pela revolta
da massa urbana, supostamente guiada pelo Partido Republicano. Logo, Franco só
podia ser pré-fascista. Para este tipo de explicação, as intenções e ideias de
Franco, bem assim como as circunstâncias e detalhes da sua vida política, eram
irrelevantes" (p. 18). E acrescenta de imediato: "O que distingue o
presente ensaio não é a diferente valorização da figura de Franco, mas a
metodologia empregada no seu estudo: trata-se de compreender a vida política de
Franco até 1908 no quadro das tradições da monarquia constitucional, em que ele
se formou como político, e não do mundo saído da primeira guerra mundial"
(p. 19).
Claramente sintonizado com a tese de Maria de Fátima Bonifácio, sucintamente
expressa na obra dirigida por Roberto Carneiro e Artur Teodoro de Matos Memória
de Portugal
6
, de que a governação franquista (de 20 de Março de 1906 até três dias após o
regicídio, em 1 de Fevereiro de 1908), nascida de uma intervenção pessoal de D.
Carlos I (1863-1908), não visou abolir o sistema parlamentar, mas tão-somente
reformá-lo, Rui Ramos deixa bem vincada no final do primeiro capítulo,
sugestivamente intitulado "A lenda negra do franquismo" (pp. 15- -
29), a hipótese que colocou e que procurou demonstrar no ensaio em foco:
"Franco se manteve fiel, do princípio ao fim, à tradição do liberalismo
da monarquia constitucional, mas os seus actos acabariam por perder-se no caos
político donde finalmente sairia a república radical de 1910" (p. 29). E
ainda adverte oportunamente que o franquismo pode, não obstante isso, ter
aberto horizontes para além do Estado liberal, porquanto "os actores
históricos são guiados pelas suas perspectivas, mas os acontecimentos não são o
simples resultado de premeditação: são antes o desenlace de múltiplas acções
contraditórias, de modo que a situação final pode não ser a desejada por nenhum
dos agentes ou sequer a que melhor serve os seus interesses" (p. 29).
Sem pretender apresentar uma biografia histórica de João Franco, apesar de o
livro aparecer editado pelo Instituto de Ciências Sociais na colecção breve
"Biografias", o autor não descurou a detalhada e variada informação
biográfica que nos ajuda a situar Franco no seu tempo e na sua trajectória
específica de vida, com origens numa aldeia do Fundão (Portugal quase raiano e
profundo), no seio de uma família nobre alinhada politicamente pelo Partido
Regenerador do carismático Fontes Pereira de Melo e marcado, até sair de
Coimbra com o diploma de Direito, por um conjunto de preferências e valores em
que pontificaram a educação liberal e os ensinamentos práticos de seu pai
(cacique local ao serviço de Fontes), a necessidade da acção como princípio de
utilidade e o positivismo jurídico como matriz comum a toda a sua geração e às
seguintes. Rui Ramos desenvolve, aliás, muito bem os aspectos essenciais da
formação de Franco para bem demonstrar que, sendo ele filho de seu tempo e de
suas circunstâncias particulares, o peso deste factor nos três momentos
considerados fundamentais da sua vida política — a "ditadura" de
1895, a "cruzada moral" de 1903 e a "ditadura" de 1907
— foi decisivo e impeditivo de actos pioneiros ou antecipadores da
mundividência política dos anos 10 e 20 do século XX.
No capítulo III, "As reformas políticas de 1895" (pp. 65-103), no
IV, "O franquismo na oposição (1901- -1906)" (pp. 105-136), e no V,
"O franquismo no poder (1906- -1908)" (pp. 137-169), Rui Ramos tece
num estilo cronístico muito do seu agrado e agradável para o leitor comum (não
especialista) a narrativa da demonstração historiográfica da sua hipótese
oportunamente formulada. Franco, quer na importante, ainda que efémera e
frustrante, experiência governativa como ministro do Reino do gabinete
regenerador de Hintze Ribeiro (22 de Fevereiro de 1893 a 7 de Fevereiro de
1895), quer na "travessia do deserto" de 1901 a 1906 após a sua
saída do Partido, onde desde sempre militara, com um punhado de amigos que
haveriam de ajudá-lo a fundar o Partido Regenerador Liberal, quer na fase
vertiginosa e atribulada em que ascendeu, finalmente, ao poder pela mão do rei,
o seu lema e o seu fim tanto no discurso como nas suas propostas de reforma
político-administrativa exibem uma coerência e uma continuidade de propósitos
que o articulam com todos os que no seu partido e noutros quadrantes
(progressistas e até republicanos) propugnavam por uma correcção de vícios e de
fragilidades do sistema monárquico-constitucional.
Num sexto e último capítulo, "Franco depois do franquismo: o apoliticismo
liberal" (pp. 171-181), antes das "Conclusões" (pp. 183- -
193), o autor sublinha o facto, para ele incontornável, de João Franco se ter
limitado a exercer uma autoridade que lhe vinha directamente do rei — morto
este, findara, por completo, a sua capacidade e legitimidade de intervenção
política, exilando-se para a Riviera francesa, onde digeriu o fracasso da sua
experiência reformista e não mais voltou à vida política activa, limitando-se a
preparar para a posteridade o seu testemunho memorialístico, de que se conhece
apenas a compilação de cartas que D. Carlos lhe escreveu. E a elogiosa carta
dirigida em 1929 a António de Oliveira Salazar (1889-1970) após ter apreciado o
relatório que este elaborara como ministro das Finanças, convertida na grande
prova da afinidade do franquismo com os regimes ditatoriais do séc. XX, não
representou a adesão ao Estado Novo, ainda nem sequer nascido, mas apenas a
preocupação de um moribundo (Franco morreria pouco depois) pelo estado da res
publica portuguesa.
Nas "Conclusões", Rui Ramos centra-se em dois tópicos fundamentais.
Debate, no primeiro, a pretensa relação, postulada pela historiografia até
hoje, entre a "ditadura" de 1907 e as ditaduras surgidas após 1918
em países como a Itália, a Rússia e Portugal, para concluir que não pode
confundir-se o "autoritarismo" de Franco com a rejeição do
liberalismo, porque "as origens do espírito reformista que animava Franco
não estavam na rejeição do liberalismo, mas sobretudo na tentativa de realizar
as soluções para que apontava o debate liberal. Politicamente formado na
intersecção do radicalismo universitário e da esquerda constitucional com o
oportunismo fontista, Franco era, social e culturalmente, um membro da elite
liberal, preso às ideias e aos costumes dessa elite" (p. 184). No
segundo, tenta explicar o fracasso do reformismo liberal, avançando com três
tipos de razões: a primeira consiste em argumentar que, por um lado, os
liberais queixavam-se de estarem sozinhos no país rodeados por bárbaros e
indiferentes e, por outro, não se consideravam em perigo; a segunda deriva da
anterior e consistiu na manifesta falta de cautela na disputa de preeminências
e privilégios a que a elite liberal se entregou de forma infrene e assanhada; a
terceira decorre da posição delicada de Franco, que começou por governar com o
apoio dos progressistas de José Luciano de Castro para, em 1907, ao entrar em
"ditadura", ter permanecido "no poder unicamente porque o
rei, no âmbito das suas prerrogativas constitucionais, assim o decidiu"
(p. 191), tendo sido este o seu grande trunfo e a sua maior fragilidade.
Uma "Cronologia" sucinta, mas muito oportuna e esclarecedora, e uma
"Bibliografia" completa e útil rematam o ensaio, que merece, para
concluirmos, uma apreciação global fixada em algumas breves notas.
E a primeira nota a destacar respeita à estratégia discursiva usada pelo autor,
que lhe permite agarrar bem o leitor através de um vasto naipe de imagens e de
outros efeitos literários, mas não serve com igual eficácia a demonstração
cabal e científica da hipótese formulada logo no início do estudo. Um recurso
mais extensivo e frequente à citação de fontes variadas e reveladoras da
mentalidade, do temperamento e dos vectores essenciais da acção política de
João Franco daria uma consistência maior a uma hipótese bem concebida e
bastante verosímil.
Uma segunda nota traz à colação a tese do reformismo liberal que pode ser, em
nossa opinião, substituída, com maior proveito de inteligibilidade, pelo
reformismo democrático e autoritário para significar que o segmento da
"elite liberal" a que João Franco se associou já não se limitava a
reproduzir a matriz liberal de vintistas e de cartistas e ia mais longe,
apostando num claro reforço da democratização do sistema monárquico-
constitucional à luz do binómio positivista da ordem e do progresso — o mesmo,
aliás, que fundamentou a aposta revolucionária e regeneradora do republicanismo
português da geração activa, ou geração de 90. E esta inflexão democrática e
até socializante (socialismo utópico/filantrópico e orgânico) não foi, nem
tinha de ser, incompatível com tácticas e derivas autoritárias que convertessem
o Executivo em motor indispensável de modernização política, económica e social
de Portugal. Paul Deroulède, no último quartel de Oitocentos, na França da III
República, proclamara que se podia ser democrata sem ser parlamentarista.
Proclamara a possibilidade doutrinária de uma democracia autoritária
(comparável, mutatis mutandis, ao presidencialismo norte e sul-americano). Os
republicanos viriam a ser bastante contaminados por este desiderato, apesar de
nunca o terem assumido completamente, salvo em raros e efémeros episódios — a
governação de Pimenta de Castro com a cumplicidade de Manuel de Arriaga e a
República Novade Sidónio Pais
7
—, mas sempre patente, desde o manifesto de 1890 do Partido Republicano
Português (PRP) a configurar um partido único de vanguarda revolucionária até à
praxis do PRP/Partido Democrático liderado por Afonso Costa (1911-1918). João
Franco esboçou sinais de que lhe agradaria esse caminho, mas não tinha perfil
psicológico, nem bojo ideológico suficiente, nem tão-pouco um bloco coerente de
apoio que o impulsionassem decididamente por aí.
Uma terceira e última nota para sublinhar que as razões apontadas por Rui Ramos
para o fracasso do suposto reformismo liberal são muito específicas,
insuficientes e perdemse no universo multifactorial (político, social,
económico, psicológico, religioso, etc.) que entretece dinamicamente o processo
histórico e para a explicação do qual se inventaram as noções operatórias de
estrutura e de conjuntura, que, em nossa opinião, permanecem úteis, se bem
usadas. Com efeito, há múltiplos factores estruturais e conjunturais que não
podem deixar de ser tidos em conta e daí que nos pareça indispensável evoluir
para uma síntese operativa dos aspectos articuláveis e complementares de
diferentes achegas — a narrativa como base da história compreensiva praticada
por Rui Ramos e outros historiadores; a historiografia total orientada para o
político por René Rémond e seus colaboradores; a "erudito-
metódica", utilíssima, se aplicada apenas à heurística e à crítica
rigorosa das fontes. Não se trata, obviamente, de uma receita, mas de uma
prevenção teórico-metodológica global face à quase intangível complexidade do
humano e do social.
Armando Malheiro da Silva
1
Cf. Rui Ramos, "A causa da história do ponto de vista político",
in Penélope, Lisboa, 5 (1991), pp. 27-47.
2
Cf. Maria de Fátima Bonifácio, Apologia da História Política: Estudos sobre o
Século XIX Português, Lisboa, Quetzal Editores, 1999, pp. 71-72.
3
V. José Miguel Sardica, A Dupla Face do Franquismo na Crise da Monarquia
Portuguesa,Lisboa, Edições Cosmos, 1994.
4
Cf. A. H. de Oliveira Marques, História de Portugal desde os Tempos mais
Antigos até ao Governo do Sr. Pinheiro de Azevedo, vol. 2, Lisboa, Palas
Editores, 1977, 4.ª ed., pp. 110 e ainda 112-114.
5
V. Amadeu Carvalho Homem, Da Monarquia à República, Viseu, Palimage, 2001, pp.
125-134.
6
V. Memória de Portugal: o Milénio Português, dir. Roberto Carneiro e Artur
Teodoro de Matos, Lisboa, Círculo de Leitores, 2001, p. 477.
7
V. Armando B. Malheiro da Silva, Sidónio e Sidonismo: História e Mito,
dissertação de doutoramento, 2 vols., Braga, Universidade do Minho, 1997.