Em Nome de Deus: A Religião na Sociedade Contemporânea
Donizete Rodrigues (org.), Em Nome de Deus. A Religião na Sociedade
Contemporânea, Porto, Afrontamento, 2004.
Ruy Llera Blanes
Em Nome de Deus é o resultado mais recente dos esforços do seu organizador
(Donizete Rodrigues, doutorado em Antropologia Social pela Universidade de
Oxford e professor associado na Universidade da Beira Interior) na produção e
divulgação de estudos sobre o fenómeno religioso nos dias de hoje tanto em
Portugal como no estrangeiro. Neste contexto, como o subtítulo sugere, esta
colectânea de artigos pretende contribuir para uma maior compreensão do lugar
da religião na sociedade contemporânea ("pós-moderna",
"globalizada"), tanto pela sua importância no desenvolvimento de
lógicas de acção sócio-culturais, políticas e económicas como pela diversidade
das suas expressões, configurações e contextos.
Assim, esta obra colectiva parte dos seguintes pressupostos: 1.º a realidade
contemporânea mostra-nos uma centralidade e transversalidade da
"religião" em todos os domínios do social, o que não só traduz a
incongruência das teses modernistas secularizadoras, mas nos obriga a olhar o
fenómeno da religião com atenção redobrada, porquanto se revela em constante
mutação e reconfiguração; 2.º esta "revalorização do religioso" (p.
8) permite ainda ao observador do social repensar as suas estratégias de
abordagem, agora em termos de movimentos e inter-conectividades, onde as
migrações, a guerra e o terrorismo, as expressões rituais, os media, etc., são
impregnados de bens, teorias e símbolos religiosos, e vice-versa.
Neste contexto, o organizador coloca duas questões fundamentais a serem
debatidas ao longo da obra: qual o papel da religião no "complexo
processo de transformação mundial" (p. 8) e quais as relações entre a
chamada "globalização" e a "religião". Para o fazer
juntará abordagens diversas de antropólogos, sociólogos, jornalistas e teólogos
que procurarão encontrar diálogos e respostas nos distintos âmbitos académicos.
Tendo isto em conta, encontramos nesta obra uma colecção de artigos dividida
disfarçadamente em duas secções: uma primeira parte de cariz mais teórico e
abstracto e uma segunda de carácter etnográfico e concreto. Na primeira linha,
deparamo-nos com a continuação da reflexão do Prof. Raul Iturra acerca dos
conceitos de "cultura" e de "religião", delineando as
genealogias conceptuais em função dos contextos biográficos dos diversos
autores abordados (Max Weber, Marx e Engels, Agostinho de Hipona, Émile
Durkheim, Marcel Mauss, Malinowski e Haddon, entre outros), para concluir que
"religião" e "cultura" são mutuamente definidas. Fá-lo
através de conceitos muito caros à disciplina antropológica: o de
"reciprocidade" e o de "solidariedade", conceitos
explicativos, segundo o autor, das lógicas de acção e reprodução social. A
mesma dimensão reflexiva encontra-se presente no texto conjunto de Peter Beyer
e Victor Pereira da Rosa, uma leitura talvez excessivamente sintética acerca
das construções teóricas em torno dos conceitos de "religião" e
"globalização", que os autores defendem como necessariamente
interligados — veja-se o ponto de partida adoptado: o 11 de Setembro de 2001
(p. 35). O terceiro capítulo desta obra é uma contribuição do próprio
organizador, que propõe uma leitura dos fenómenos religiosos contemporâneos
através da noção de "reencantamento do mundo": os chamados novos
movimentos religiosos obrigam, pela sua dinâmica, heterogeneidade e
imprevisibilidade, a repensar as teses secularistas predominantes na academia
modernista. Já o sociólogo Steve Fenton propõe, na quarta secção da obra, um
debate entre as noções de etnicidade, raça e religião no contexto da
modernidade — ou melhor, no contexto de uma "crise" do paradigma da
modernidade, onde a utopia de uma democracia igualitária se transforma em
fundamentalismo, crise da moralidade e violência.
A partir do capítulo 5 é aberto um conjunto de reflexões acerca da religião
oriundas do âmbito teológico. Num texto algo desenquadrado do conjunto da obra,
Mário Robalo estabelece uma revisão das propostas doutrinais nascidas da vida e
obra de Jesus Cristo, recordando o carácter humanista e ético do cristianismo
antigo, enquanto projecto de vida individual e colectiva, sem a hierarquia e
institucionalização da "religião" como projecto sócio-político. No
entanto, o carácter actual da obra é recuperado no texto do sacerdote católico
e teólogo Joaquim Carreira das Neves, que procura reflectir acerca do problema
do fundamentalismo religioso e da violência a propósito do conflito israelo-
palestiniano. Neste empreendimento, Joaquim Carreira das Neves procura
enquadrar, através de um método histórico crítico e comparativo, o
"problema religioso" do fundamentalismo no âmbito de estratégias
sócio-políticas: neste contexto, o fundamentalismo é mais uma atitude ou
estratégia que extravasa o âmbito da crença religiosa para se situar no âmbito
da imposição de "verdades" pretensamente universalizantes. A
problemática da guerra e o exemplo palestiniano continuam presentes no texto
seguinte (cap. 7), de António Marujo, que promove uma reflexão ecuménica (na
linha da Declaração de Assis de 2002) acerca do papel das religiões na guerra e
na construção da paz a partir do case-study do padre Elias Chacour, promotor de
inúmeras iniciativas de diálogo, reflexão e cooperação ecuménica naquela
região.
O texto seguinte, de Manuel da Silva e Costa, recupera a temática do
"reencantamento do mundo" para analisar o papel da religião na
sociedade contemporânea, desta vez num contexto de
"desinstitucionalização religiosa", progressivamente substituída
por uma "proliferação de religiosidades". Este processo, segundo o
autor, não combate a hegemonia contemporânea do "culto da
eficácia": a tecnologização, o lucro, o progresso (ou seja, o
capitalismo).
Entramos, finalmente, no conjunto de textos de carácter mais etnográfico —
textos que, no fundo, serviriam como pontos de partida para as reflexões de
carácter mais abstracto. O primeiro (cap. 9), da autoria de Donizete Rodrigues
e Ana Paula Santos, transporta-nos para uma realidade pouco explorada no âmbito
científico: o desenvolvimento do movimento pentecostal entre os ciganos
portugueses desde os anos 70 do século xx e as transformações subsequentes nas
noções de "identidade" e "cultura cigana" no contexto
social português, através de uma análise do conteúdo doutrinal da Igreja
Evangélica de Filadélfia e dos processos de conversão. O mesmo registo é
empregue por Peter Clarke no capítulo seguinte, desta vez acerca da implantação
de um movimento milenarista de origem japonesa (a Igreja Messiânica Mundial) no
Brasil, através da sua ligação com os movimentos migratórios japoneses para o
Brasil e a sua inserção, enquanto NMR (novo movimento religioso) no contexto de
pluralidade religiosa neste país. Esta obra acaba com uma revisão histórica e
bibliográfica elaborada pela socióloga Cecília Mariz relativamente ao Movimento
de Renovação Carismática Católica, mais uma vez no Brasil, numa tentativa de
compreender as diferentes tendências discursivas, tanto no seio da própria
instituição como da academia, que debatem as causas e efeitos do movimento na
tradição eclesiástica em causa.
Em suma, deparamo-nos aqui com um conjunto de textos que ganham valor pela
urgência e actualidade dos conteúdos debatidos, assim como pela virtual
inexistência de debate académico (antropológico, sociológico) relativo à
"religião contemporânea" no contexto português. Esta obra vem,
neste sentido, preencher uma lacuna importante. No entanto, pessoalmente
lamenta-se aqui algum desequilíbrio em termos de excesso de textos teorizantes
em desfavor de conteúdos mais empíricos. Neste contexto, destacamos aqui a
contribuição (infelizmente, a única nesta obra) de Donizete Rodrigues e Ana
Paula Santos para o estudo do panorama religioso português contemporâneo,
reflexo da escassez de projectos de investigação consistentes nesta área. Daí o
valor desta obra conjunta. Por outro lado, destaca-se a propositada
heterogeneidade disciplinar das propostas e reflexões apresentadas, que ficaria
talvez a ganhar com um maior diálogo intertextual, concretização temática e
maior explicitação da estrutura da obra, mas que igualmente reflecte o carácter
transdisciplinar e socialmente transversal do fenómeno abordado.