Que Constituição para a União Europeia? Análise do Projecto da Convenção
Guilherme d’Oliveira Martins, Que Constituição para a União Europeia? Análise
do Projecto da Convenção, Lisboa, Gradiva, 2003, 117 páginas.
A constituição está morta. Viva a constituição. A morte da constituição
europeia não invalida que a Europa no futuro, provavelmente, se socorrerá de
soluções apontadas neste documento. Por este motivo, o livro de Guilherme
d’Oliveira Martins continua a ser relevante.
A primeira questão que este especialista em assuntos europeus aborda é a
necessidade de uma constituição europeia. O Conselho Europeu (composto pelos
quinze chefes de Estado e primeiros-ministros dos 15 Estados da União Europeia)
de Laeken, de Dezembro de 2001, foi claro nos motivos para uma constituição
europeia: "A União deve passar a ser mais democrática, mais transparente
e mais eficaz. Deve também dar respostas a três desafios fundamentais: como
aproximar os cidadãos, e em primeiro lugar os jovens, do projecto europeu e das
instituições europeias? Como estruturar a vida política e o espaço político
europeu numa União alargada? Como fazer da União um factor de estabilização e
uma referência no novo mundo multipolar?" (p. 24).
Com estes objectivos, o Conselho decidiu convocar uma convenção para elaborar o
anteprojecto de constituição. A escolha de Valéry Giscard d’Estaing para
presidente da convenção seria uma imposição do compromisso franco-alemão
apoiada pelos ingleses. Os médios e pequenos países, incluindo Portugal,
consideraram que a candidatura do holandês Wim Kok teria sido mais equilibrada.
A escolha de Giscard d’Estaing para a presidência demonstra bem a crença de
Oliveira Martins de que no actual panorama político e legislativo comunitário
os grandes têm vantagem sobre o médios e pequenos países. Os vice-presidentes
da convenção foram o italiano Giuliano Amato e o belga Jean-Luc Dehaene. A
convenção foi composta por quinze representantes dos chefes de Estado ou de
governo dos Estados membros (o governo português designou Ernâni Lopes), dois
membros de cada parlamento nacional (num total de trinta — o parlamento
português designou Alberto Costa e Maria Eduarda Azevedo, sendo Oliveira
Martins suplente do primeiro), dezasseis membros do Parlamento Europeu
(incluindo o português Luís Marinho) e dois representantes da Comissão (António
Vitorino e Michel Barnier). Os países candidatos (os dez países que se tornam
membros em Maio de 2004, mais a Roménia, a Bulgária e a Turquia) participaram
igualmente na convenção, embora não pudessem bloquear qualquer consenso dos
Estados membros. A convenção iniciou o seu trabalho em Bruxelas a 1 de Março de
2002 e terminou-o em Junho de 2003.
A primeira questão decidida pela convenção seria se a União era um Estado ou
uma organização internacional? A resposta afirmaria que a União é uma
organização supranacional onde coexistem as soberanias europeia e nacional. As
competências da União regem-se pelos princípios da subsidiariedade e da
proporcionalidade, permitindo uma maior intervenção dos parlamentos nacionais
na defesa das suas esferas de influência. Funcionando como uma contrapartida da
"constitucionalização " da União Europeia, foi intenção dos membros
da convenção atribuir maiores responsabilidades aos parlamentos nacionais no
acompanhamento das questões europeias de maneira a estes preservarem a sua
legitimidade e autoridade nacional por intermédio do novo sistema de controlo
da subsidiariedade e proporcionalidade. O primado do direito comunitário sobre
o direito nacional, um princípio confirmado pelo Tribunal de Justiça Europeia
desde 1963, é pela primeira vez consagrado na constituição.
A constituição mantém o presente quadro institucional, que compreende o
Parlamento Europeu, o Conselho Europeu, o Conselho de Ministros, a Comissão
Europeia e o Tribunal de Justiça. Em relação ao Parlamento Europeu houve acordo
no número limite de deputados (736), mas não na sua distribuição, pela qual
ficou acordado que até 2009 se manteria a distribuição de lugares acordada no
Tratado de Nice (Portugal fica com 24). O Conselho Europeu é consagrado
formalmente na constituição, decidindo habitualmente por consensos as linhas
mestras da política da União nas suas reuniões ordinárias trimestrais ou
extraordinárias. As principais matérias controversas são: a proposta de eleger
por maioria qualificada um presidente do Conselho Europeu para um mandato de
dois anos e meio, renovável uma vez, ao invés do presente sistema rotativo; se
continuará a haver um comissário por Estado membro e a falta de acordo sobre a
política externa e de segurança comum (com sérias reticências da Grã-Bretanha)
e a política de segurança e de defesa Comum (reticências dos países neutros ou
não alinhados, como a Áustria, a Finlândia, a Irlanda e a Suécia).
Pela primeira vez fica definido o procedimento de suspensão de direitos de
pertença à União (no caso de violação dos valores da democracia e do respeito
dos direitos humanos) por maioria de quatro quintos dos membros, por proposta
de um terço dos Estados membros, do Parlamento Europeu ou da Comissão Europeia,
e aprovação por dois terços do Parlamento Europeu. Está igualmente consagrada
pela primeira vez a saída voluntária da União. A Carta dos Direitos
Fundamentais está incorporada no projecto de constituição. No projecto de
convenção está igualmente consagrada a nova figura do ministro dos Negócios
Estrangeiros da União, unindo as tarefas do comissário para as relações
externas e do alto representante para a PESC, votado por maioria qualificada
pelo Conselho Europeu. O voto por maioria qualificada fica definido como a
maioria ou dois terços dos Estados membros desde que representem pelo menos
três quintos da população total.
Oliveira Martins relembra que o mandato da convenção era preparatório, e não
substitutivo da Conferência Intergovernamental, com o poder constituinte
continuando nas mãos dos Estados. O autor alerta que o projecto de constituição
resultante não se sobrepõe às constituições nacionais, mas às competências
próprias da União — a soberania "originária" continua nos Estados,
acrescentando que a democracia supranacional da constituição é baseada, segundo
o autor, em duas legitimidades e soberanias — a dos Estados membros e a dos
povos.
O projecto de constituição tem sido criticado mesmo por europeístas convictos,
como António Barreto e Pacheco Pereira, pela falta de legitimidade democrática
dos membros da convenção, por ser favorável aos Estados grandes (nomeadamente
no que diz respeito ao fim da rotatividade no exercício da presidência do
Conselho Europeu e à possível adopção de um sistema presidencial, bem como à
possibilidade de deixar de haver um comissário por país na Comissão Europeia) e
por ser um texto desnecessário que abandona o método dos pequenos passos de
Jean Monnet (integração por sectores económicos). A estas críticas, Oliveira
Martins responde que a constituição deve ser legitimada democraticamente
através de referendos nacionais e que "Portugal — ou qualquer outro
Estado médio ou pequeno só tem que ganhar com uma Europa política eficaz e
actuante. E tem tudo a perder com a prevalência das lógicas exclusivamente
nacionais e proteccionistas, que apenas favorecem as grandes potências"
(p. 13). Concluindo, Oliveira Martins considera que "a recusa de passos
corajosos no sentido da democracia supranacional só pode beneficiar os grandes.
Mais, o autor considera que deve haver mais Europa política que zele pelo bem
comum europeu, dando como exemplo a confusão entre supranacional e
intergovernamental, o que está na origem da debilidade política do Pacto de
Estabilidade e Crescimento do Euro, como o recente comportamento da Alemanha e
da França tão bem demonstrou (p. 14).
Este especialista considera que o debate sobre a futura Constituição Europeia
não se devia concentrar nos egoísmos nacionais relacionados com a composição da
Comissão ou a rotatividade da presidência do Conselho Europeu, mas na defesa de
interesses comuns, no sentimento europeu e num sistema equilibrado da divisão
do poder (mais conhecido pela expressão inglesa checks and balances). No caso
específico de Portugal, Oliveira Martins considera que o interesse nacional é
melhor defendido com uma segunda câmara legislativa de Estados, a preferência
da regra da maioria qualificada sobre o veto, o prevalecimento da lógica do
parlamentarismo sobre um sistema presidencialista do Conselho Europeu e a
atribuição à Comissão de funções executivas.
Oliveira Martins conclui que a Constituição da União Europeia representa
"uma garantia acrescida para os cidadãos". Conforme Francisco Lucas
Pires afirmou a páginas tantas, "a soberania não se perde por ser
partilhada". Na realidade, conforme estabeleceu o reputado historiador
Alan S. Milward, a soberania do Estado sai reforçada com o processo de
integração. Um realidade reforçada para os pequenos e médios Estados, conforme
o historial recente da integração europeia prova.
Independentemente dos pontos de vista acima citados, o livro de Guilherme
Oliveira Martins é uma obra notável de síntese e clareza sobre a proposta de
constituição europeia que permite aos leitores inteirarem- se sobre as
principais questões e decidirem por si próprios no referendo, referendo este
que é desejado pelo autor para legitimar democraticamente este renovado passo
no processo de integração europeia. Um considerável feito numa área mais que
conhecida pela sua opacidade e dificuldades de compreensão.
NICOLAU ANDRESEN LEITÃO