O Mundo do Teatro em Portugal: Profissão de actor, organizações e mercado de
trabalho
Vera Borges, O Mundo do Teatro em Portugal Profissão de actor, organizações e
mercado de trabalho, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2007.
Se em Todos ao Palco! Estudos Sociológicos sobre o Teatro em
Portugal
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nos era oferecida uma perspectiva que, embora atenta ao quadro genérico em que
o teatro vive e actua na sociedade portuguesa, deliberadamente circunscrevia a
sua referência empírica a quatro companhias de teatro,já em O Mundo do Teatro
em Portugala atenção reclama propósitos mais compreensivos e define a
expectativa ambiciosa em título e subtítulo anunciada. Nos espaços rasgados
pelo novo desafio revivem a minúcia e circunstância «microssociológicas» do
primeiro trabalho, sempre funcionalmente ancoradas na formulação da hipótese,
no traçado dos caminhos da pesquisa ou na documentação da teoria. E, por o
estudo em questão tal como o outro, de resto não eleger o especialista como
leitor ideal (a leitura é vantajosa para leigos e peritos), não existem
quaisquer barreiras erguidas por imperfeito domínio dos códigos de referência e
instrumentos conceptuais do discurso específico da análise sociológica.
Na introdução impressionará a ênfase quase obsidiante dada à tradição
científica recente, o que não será tanto uma reivindicação de autoridade como
aquela acusação da dívida, por certo aliada à intenção persuasiva do argumento,
que é marca distintiva da investigação mais escrupulosa. O testemunho de uma
filiação teórica em estudos de importância fundadora não é inoportuno quando a
teoria fatalmente se cruza com a massa documental das fontes, múltipla e
indisciplinada, e o percurso da investigação reclama a vigilância permanente
que subordine o magma do material empírico e documental a um rumo sólido
dirigido por uma metodologia consciente do que persegue.
A tipologia dos grupos de teatro em função do modelo que presidiu à sua
fundação, à matriz da sua estrutura e organização interna, à sua relação com o
espaço físico e ao horizonte de possibilidades do seu funcionamento e
capacidade de intervenção, ainda a geografia variável do estatuto do actor ou o
seu lugar no grupo ou fora dele no contexto de um mercado de trabalho volúvel e
flexível: eis, numa simples e lacunar enunciação, a vasta e, a um primeiro
olhar, nebulosa constelação de preocupações que dita o jogo incessante do
descritivo e do explicativo, da indagação teórica e da hipótese empírica, do
juízo de alcance médio ou da conclusão documentalmente apoiada. E a autora não
se detém perante as confessadas dificuldades, de natureza vária, que
obstinadamente se erguem ao seu esforço de selecção de informação, filtragem e
confronto de dados e sua hierarquização e classificação ou que até ditam pronta
adequação metodológica quando, por exemplo, a pesquisa resvala para território
minado, «com antagonismos e rivalidades relativamente fortes, pelo que foi
necessário não escamotear a concorrência entre os grupos de teatro, no caso de
se situarem na mesma localidade ou serem concorrentes no mesmo segmento de
mercado. Muitas vezes tive de reconduzir as entrevistas ao seu propósito
biográfico; de outra forma, tornar-se-iam apenas testemunhos das reivindicações
dos nossos entrevistados contra o Ministério da Cultura» (p. 43).
Uma insistência na identificação de procedimentos metodológicos testemunha a
honestidade intelectual de uma empresa que abre caminho a outras indagações. E
a dificuldade assinalada na p. 51 (a forçosa exclusão dos grupos de teatro
amador, e num quadro de difícil discriminação de fronteiras entre profissional,
semiprofissional e amador), ou a que a autora julga dever destacar, na página
seguinte (com remissão para o capítulo relativo à programação dos grupos de
teatro, alegadamente merecedor de um investimento na análise estatística mais
elaborada, facto apenas detectado na fase da escrita do estudo), bem revelam
essa atitude de escrúpulo e rigor. Por seu lado, a identificação das fontes
abre generosamente caminho a outros percursos de investigação.
É arrojado o painel de preocupações acolhido no estudo de Vera Borges,
constituindo um tratamento integrado do que à partida se afiguraria fatalmente
disperso. Aqui reside uma das suas principais virtudes: o registo da
localização e a definição dos contextos em que essa distribuição no território
se insere (capítulo 1), a consideração dos grupos de teatro enquanto empresas
artísticas, neles se distinguindo as modalidades de articulação dos elementos
no seio do grupo ou a pluralização de aptidões que neste progressivamente se
manifestam (capítulo 2), ou a identificação de um estatuto e de um rosto
artístico face a vectores tão decisivos como o modo de utilização do espaço
(titularidade de uma sala de espectáculos ou ausência dela), ou ainda as
características específicas do modelo de intervenção (capítulo 3), ou a
atenção, pragmática e incisiva, dada a aspectos aparentemente tão prosaicos
como o regime de financiamento das companhias e a programação e produção dos
espectáculos (capítulo 4), o ensaio de uma tipologia dos grupos grupos-
família, grupos-microempresa teatral, grupos-projecto (capítulo 5) , o exame
da génese do actor como se faz um actor, como se chega à profissão , com a
identificação de recentes factores de profissionalização ou a descrição do
lugar precário em regra associado ao ofício de comediante (capítulo 6), ou
ainda a análise de casos paradigmáticos da complexa tessitura de relações
desenhada pelas figuras do encenador e do actor no quadro da companhia de
teatro (capítulo 7), interpelam sempre a exacta espessura probatória da fonte
aduzida ou a capacidade explicativa do facto convocado. As estâncias desta
jornada, com alguma frequência acompanhadas de uma síntese retrospectiva no
final de capítulo (e às vezes prospectiva, como sucede no início do capítulo
3), ajudam o leitor a situar-se na vasta paisagem do discurso crítico e
obedecem, na verdade, a uma segura concepção expositiva. Por vezes, até o rigor
da linguagem científica vem generosamente aliar-se à linguagem dos afectos,
emergindo esta discretamente para deixar falar a história privada do teatro e
da representação, ocorrência particularmente inscrita nos capítulos 6 e 7,
lugar de cruzamento da hipótese empírica e da notação particular: das
entrevistas conduzidas pela autora se registam as escolhas de uma vida e
aqueles momentos de iluminação que tudo decidem (releiam-se, a este propósito,
as pp. 227 a 229, com alguma pertinência a sugerirem confronto com o timbre
mais distanciado que o mesmo problema inevitavelmente suscitará em oportuna
clarificação de «caderno de encargos», v. g.,p. 127).
O livro de Vera Borges dá resposta a temas e problemas que julgamos dominar,
mas não dominamos, e qualquer paráfrase não lhe presta a devida justiça. As
clivagens entre gerações de actores, os mais antigos mais inclinados à
segurança e à fidelidade à companhia de que sempre fizeram parte, os mais novos
mais envolvidos nas contingências e na mobilidade exigidas por ofício precário
e arriscado mas aberto a uma aprendizagem e inspiração sempre renovadas, o
redimensionamento dos grupos de teatro e a geografia variável dos seus
profissionais e a diversa natureza dos vínculos que os ligam à companhia, o
impacto que a televisão exerce sobre a profissão de actor, a progressiva
cumplicidade estabelecida entre o teatro e outras expressões da cultura no
quadro da reconfiguração das companhias estes e outros problemas merecem o
tratamento coerente e sistemático que é estímulo do especialista e compensadora
oportunidade para o distraído senso comum de um público mais alargado.
Interesses despertados pelo estudo em comentário registam-se em jornal diário
de referência, quase coincidindo com o momento em que estas notas são redigidas
2
. E o mais natural é que as réplicas se sucedam.
O Mundo do Teatro em Portugal Profissão de actor, organizações e mercado de
trabalhoé um estudo sério, útil e inovador, e isto é o melhor que de um livro
se pode dizer.
Nuno Pinto Ribeiro
Notas
1
Vera Borges, Todos ao Palco! Estudos Sociológicos sobre o Teatro em
Portugal,Oeiras, Celta editora, 2001.
2
«No teatro português faltam papéis para as mulheres mais velhas»,artigo de
Maria José Oliveira, Público, edição Porto, caderno P2, segunda-feira, 9 de
Julho, p. 12.