Do Activismo à Indiferença. Movimentos Estudantis em Coimbra
Elísio Estanque e Rui Bebiano, Do Activismo à Indiferença. Movimentos
Estudantis em Coimbra, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2007, 196 páginas.
Os autores deste ensaio provêm de percursos de investigação bastante diferentes
não só no que diz respeito às suas disciplinas de formação (história e
sociologia), mas também às áreas de interesse ou abordagens metodológicas que
privilegiam. Assim, se Rui Bebiano se tem ocupado nos últimos anos do estudo do
movimento estudantil coimbrão, utilizando principalmente metodologias
qualitativas, como as da história oral e cultural, o sociólogo Elísio Estanque
tem dedicado a sua investigação sobretudo a problemáticas como as classes e
desigualdades sociais, mobilidade ou participação política, geralmente
privilegiando métodos quantitativos.
Todavia, estes percursos distintos convergem bem em Do Activismo à Indiferença.
Movimentos Estudantis em Coimbra, livro onde as premissas históricas do
movimento estudantil são postas em diálogo com as mais recentes evoluções da
população estudantil coimbrã, procurando avaliar quanto daquele passado
oposicionista está ainda presente nos corredores da Academia. Além disso,
parece emergir também uma confrontação entre os próprios objectivos da
contestação dos anos 60 como a democratização da universidade e a sua maior
ligação com as problemáticas sociais e políticas do país e a efectiva
situação da universidade nos dias de hoje. Neste sentido, aparecem ainda mais
evidentes certos elementos emergentes da análise do actual meio estudantil, em
que persistem desigualdades de acesso por parte das classes mais desfavorecidas
e parece até ter aumentado a distância em relação ao país real, como demonstra
a afirmação de valores cada vez mais individualistas e o nível extremamente
baixo do envolvimento em actividades políticas ou de cariz associativo.
O livro estrutura-se em duas partes: a primeira descreve o percurso histórico
do movimento estudantil coimbrão, enquanto a segunda traz uma análise
sociológica da população universitária de Coimbra na actualidade, com o
objectivo declarado de «perceber as articulações entre gerações distintas» (p.
87). A primeira parte, coordenada por Rui Bebiano, insere-se plenamente no
trajecto historiográfico desenvolvido até agora pelo autor, com base sobretudo
nos paradigmas da história cultural e das ideias, que têm caracterizado também
o anterior trabalho por ele assinado em parceria com Maria Manuela Cruzeiro,
sobre o movimento estudantil coimbrão [Anos Inquietos. Vozes do Movimento
Estudantil de Coimbra (1961-1974),Porto, Afrontamento, 2006]. Nesta parte
encontramos também referências interessantes a outros momentos de dissensão no
meio académico de Coimbra, como, por exemplo, aquele protagonizado pela
«geração de 1870», que contribuiu para renovar, nos finais do século xix, a
vida cultural e intelectual não só coimbrã como portuguesa. Estas digressões
indicam como em Coimbra conviviam tendências diferentes, a par de uma tradição
universitária tradicionalista e conservadora não se pode esquecer que a
Universidade de Coimbra serviu de incubadora para a ideologia do Estado Novo. É
o caso, por exemplo, da cultura boémia e do «escapismo decadentista», que
sempre foram reivindicados como intrínsecos da «alma» estudantil de Coimbra,
sobretudo por parte dos estudantes das chamadas «repúblicas». É verdade que
esta «subcultura» académica não pareceu ter, durante muito tempo, nenhuma carga
política, representando apenas um estilo de vida alternativo, mas é também
inegável que, sobretudo por causa da natureza repressiva do regime, muitas
transgressões «privadas» chegaram a ter um significado também político. A
exploração de territórios proibidos, seja do ponto de vista pessoal, social ou
cultural, parece ter contribuído para a formação de uma cultura de dissensão
que se podia facilmente tornar oposição política. Por fim, é abordada a
problemática da desmobilização estudantil pós-25 de Abril, quando a
participação política se tornou cada fez mais «partidária» e menos
«movimentista», para, finalmente, dar lugar a um período de profundo refluxo
participativo nos anos 80. Mas a característica talvez mais importante do
discurso de Bebiano reside na tentativa de salientar, à luz da rebelião
juvenil, as importantes mudanças sociais, culturais, económicas e até
demográficas que ocorreram em Portugal, assim como noutros países do mundo
ocidental, nos anos 60.
A segunda parte da obra, coordenada por Elísio Estanque, é uma análise
sociológica da população universitária actual, realizada através de um
inquérito representativo do conjunto das faculdades coimbrãs, aplicado em 2005-
2006, sendo os resultados parcialmente comparados com um inquérito similar
feito em 1999-2000. É difícil dizer se o objectivo declarado pelo autor de
definir «um novo paradigma de participação cívica democrática» (p. 88) foi
atingido ou possa até ser atingível, considerando os baixíssimos indicadores
relativos à participação política ou associativa juvenil e o seu cada vez mais
profundo desinteresse pela política. Na verdade, a juventude universitária
coimbrã apresenta valores cada vez mais individualistas e autocentrados,
acompanhados por um nível altíssimo de desconfiança em relação às instituições
democráticas e aos partidos políticos.
Os quesitos colocados aos entrevistados têm a ver, em particular, com três
grandes áreas temáticas. Em primeiro lugar, encontramos aspectos relacionados
com a caracterização sociológica, geográfica e de origem de classe dos
estudantes, destinados a averiguar as principais alterações ocorridas na
composição social do meio estudantil. Seguidamente, há um conjunto de questões
ligadas às actividades extra-académicas praticadas, sejam políticas e/ou
sociais, sejam de tipo cultural ou lúdico, também consideradas segundo o sexo,
a classe social e a faculdade. Por fim, estão as questões relacionadas com as
atitudes perante as ritualidades académicas, as instituições universitárias e o
movimento estudantil dos anos 60. À primeira vista, os resultados demonstram
claramente que a universidade tem sofrido um processo de democratização, sendo
actualmente os filhos de «trabalhadores não qualificados» e as mulheres a
população mais representada.
Todavia, na opinião do autor, a isso não corresponderia um equivalente
melhoramento no domínio da mobilidade social, sobretudo por causa do processo
de desvalorização do ensino superior e dos títulos universitários. Por outras
palavras, ter uma licenciatura não significaria, hoje em dia, ter mais
possibilidade de ascensão social e, numa situação deste tipo, voltam a ser
determinantes para o exercício de muitas profissões «prestigiosas» as
tradicionais redes de cooptação. Por outro lado, também do ponto de vista
cultural, os indicadores demonstram que o facto de se frequentar a universidade
não comporta por si só uma maior predisposição para actividades culturais, como
ler livros ou jornais, assistir a espectáculos teatrais ou conferências,
visitar exposições ou museus. Como salienta o autor, a população académica de
Coimbra apresenta indicadores relativos às actividades de lazer não muito
distantes dos do resto da sociedade portuguesa. Segundo o inquérito, que
envolveu uma amostra plural de 2851 alunos (perto de 15%) da Universidade de
Coimbra, cerca de 18,3% dos inquiridos revelaram nunca ler outros livros, para
além dos textos académicos. Em algumas áreas disciplinares a percentagem sobe
mais ainda: quase 48% em Desporto e 40% nas diversas Engenharias. Bastante
significativo parece ser o facto de os estudantes residentes nas repúblicas
apresentarem indicadores muito diferentes, seja a respeito das actividades de
lazer demonstrando mais interesse por quase todas as actividades culturais ,
seja a respeito do estilo de vida e dos valores, revelando-se menos
autocentrados e parecendo mais interessados no bem-estar colectivo. Além disso,
são os que mais gostariam de uma completa abolição da praxe ou, pelos menos, da
sua redefinição no sentido de se tornar menos autoritária e hierárquica.
Nesta segunda parte da obra emergem perspectivas interessantes para a
compreensão do mundo estudantil coimbrão actual, cujas transformações,
consideradas o espelho de transformações sociais mais amplas, são analisadas
através de sólidos instrumentos teóricos que orientam com rigor o
questionamento da realidade. A clara colocação teórica está particularmente
presente na elaboração do inquérito e na escolha corajosa de determinantes como
a classe social, muitas vezes considerada erroneamente uma categoria
ultrapassada. Mas, além das ideias subjacentes, é o dado empírico que fala por
si, evidenciando como os canais habituais de reprodução das elites estão ainda
activos e como a universidade de massas só parcialmente se tornou uma
plataforma de mobilidade social e de «igualização» das possibilidades de
ascensão social.
Todavia, a respeito do objectivo declarado do livro, ou seja, perceber até que
ponto a memória do movimento estudantil coimbrão sobrevive e influencia o meio
universitário da cidade, parece não se ter chegado a uma conclusão muito clara,
talvez porque as perguntas directamente relacionadas com este assunto são
minoritárias neste inquérito, bem como as relativas à confiança e ao
envolvimento dos estudantes nas instituições associativas académicas. Assim, se
a primeira parte do texto nos oferece um excurso sobre a história do movimento
estudantil coimbrão, sem trazer elementos novos à investigação até hoje
desenvolvida sobre este assunto, a segunda parece estar desligada da primeira.
Além disso, é surpreendente a falta quase completa da dimensão comparativa,
sobretudo no que diz respeito à caracterização sociológica dos estudantes.
Temos, portanto, um conhecimento muito detalhado do universo estudantil
coimbrão, mas sem a possibilidade de estabelecer comparações com estudantes de
outras cidades, portuguesas ou não, ou com jovens que não sejam estudantes ou
até com outros actores sociais. É possível, como sustenta um dos autores, que
tudo o que acontece no meio universitário de Coimbra tenha reflexos imediatos
na vida da cidade e até no futuro do país (p. 72), mas talvez tivesse sido útil
averiguar melhor até que ponto o caso de Coimbra é generalizável ou, pelo
contrário, se as características típicas de uma cidade universitária criam
especificidades próprias e em que medida estas se desviam ou interferem com
tendências sociais mais gerais.
Guya Accornero
Doutoranda, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa