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EuPTHUHu0003-25732009000300004

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variedadeEu
ano2009
fonteScielo

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Conceitos oitocentistas de cidadania: liberalismo e igualdade Nem a inércia das instituições ou dos costumes, nem o conservadorismo do saber e da sociedade podiam evitar esse fim requerido pela "verdadeira virtude humana", porque esta exigia que "os seres humanos vivam juntos como iguais, sem reclamar nada para si próprios que não estejam identicamente dispostos a conceder a todos os outros; encarando qualquer espécie de domínio como uma necessidade excepcional e, em todos os casos, temporária (Mill, 1975 [1869], p. 479). Embora Stuart Mill reconhecesse os efeitos moralmente positivos que resultariam de uma legislação que promovesse a igualdade das pessoas casadas34, as fontes da desigualdade não dependiam, para ele, apenas do direito do casamento, mas também de algo que definia como as "condições gerais da sociedade humana" (Mill, 1975 [1869], p. 474)35.

A permeabilidade da doutrina jurídica portuguesa a esta forma de pensar o percurso da história e os seus fins pode encontrar-se em José Dias Ferreira (1837-1909) quando, nas suas Anotações aos Elementos de Direito Natural do Exmo. Sr. Vicente Ferrer Neto Paiva(1858), observou que a humanidade progredia para uma "igualdade completa e definitiva" (Ferreira, 1858, p. 66). O mesmo afirmou Basílio Alberto de Sousa e Pinto (1777-1849) nas suas Lições de Direito Político. Os dois juristas identificavam quatro fases desse percurso, a divisão entre castas, a escravatura, o feudalismo, a divisão entre nobres e plebeus (Pinto, 2004 [c. 1840], p. 44) e o pauperismo (acrescentava Dias Ferreira). Este progresso não era homogéneo, havia "vestígios" de todas aquelas divisões "em diversas partes da terra". Mas, com a extensão da "civilidade" antecipava-se também o seu desaparecimento (Pinto, 2004 [1838], p. 278).

Notável, na maioria dos textos que se citou até aqui, é a pouca atenção que concediam à acção da política no processo histórico de igualização.

Aparentemente, o progresso não dependia tanto da intervenção política quanto da actuação das "leis" da história. Isso explica a coexistência, em alguns dos seus autores, da crença na perfectibilidade do homem e das sociedades e, simultaneamente, nos efeitos benéficos do liberalismo económico e político, bem como a defesa de acepções negativas de liberdade, pouco compatíveis com programas legislativos de sentido "emancipador" ou de combate às causas da desigualdade. Foi esse o caso de Benjamin Constant, para quem seria a liberdade que para ele consistia, fundamentalmente, no livre exercício dos direitos civis36 a conduzir a humanidade para uma maior igualdade. Tocqueville tinha uma perspectiva diferente, acreditava nos efeitos educativos da participação política em instâncias político-administrativas descentralizadas, mas também ele se empenhou mais em descrever o processo de intensificação da "igualdade de condições" do que em pensar reformas que conduzissem ou acelerassem esse processo, como se percebe ao ler as suas obras mais importantes. Essa forma de perceber o processo histórico explica o comentário de Ramon Aron (1965, p. 48) quando, confrontando Tocqueville com Karl Marx, relacionou a confiança que o primeiro depositou na actuação das forças da história com alguma insensibilidade social: "Tocqueville permitia-se uma certa comodidade intelectual ao prever que o futuro seria dominado pela classe média. Essa espera apaziguadora e essa previsão optimista eximiam-no do esforço de lutar contra as injustiças do presente. Imaginava, atribuía à Europa uma sociedade futura tão móvel e dinâmica como a sociedade americana e resignava-se facilmente à sobrevivência, no velho continente, das discriminações de classe e da impotência dos pobres"37.

Outra perspectiva foi a do liberalismo utilitarista, mais vocacionado para a elaboração de programas políticos reformistas, apesar de partilhar o mesmo discurso filosófico acerca do sentido da história. Sabemos também que na Europa os governos liberais foram mais reformistas do que não intervencionistas, muito mais orientados pela ideia de um Estado racionalizador, capaz de educar os indivíduos e melhorar as sociedades, do que por um Estado como entidade apenas moderadora do livre exercício das liberdades económicas e civis38. Em Portugal são expressivas, para o início do período liberal, as observações de Ramon Salas, divulgadas através da tradução portuguesa de uma das suas obras, porque nelas se exprime, de forma exemplar, a oscilação que por vezes se verificava quanto ao papel da intervenção da lei a favor de uma maior igualização social:

Pelo que diz respeito à igualdade de riquezas, confesso, que é impossível estabelecer-se, se se fala de uma igualdade absoluta, e permanente; porque nunca a lei poderá fazer com que um homem não seja mais forte, do que outro, mais destro, mais laborioso, e mais económico; porém as Leis podem ao menos minorar muito esta espécie de desigualdade, estorvar a estagnação das riquezas em poucas mãos, permitindo que circulem livremente, protegendo a indústria e dando toda a latitude possível à acção do interesse individual, cuja força não tem sido bem apreciada pelos Legisladores em geral. Convirá também muito abolir a faculdade de testar, ou pelo menos reduzi-la a limites muito resumidos; e que todas as leis e todos os Actos da administração pública tenham uma tendência à igualdade" [Salas, 1822, p. 28]

Mas o que me interessa aqui salientar não é tanto o pendor mais ou menos intervencionista dos governos e do pensamento dos autores oitocentistas, mas a ideia, comum a quase todos, de que o que caracterizava o presente, no respeitante à igualdade e aos direitos, era a sua natureza transitória. Quer para os que afirmavam que a igualização aconteceria de forma independente da intervenção política, quer para os (poucos) que faziam depender o processo de um trabalho político prévio, quer isso constituísse um exercício retórico de justificação ou uma convicção, o presente surgia sempre como um tempo de transição em direcção a um futuro mais "inclusivo". Porque nem todos estavam preparados para a plenitude dos direitos, do mesmo modo que nem todas as sociedades estavam civilizacionalmente capazes de os realizar, era necessário esperar que o tempo, a natureza e as suas leis (ou, em alguns casos, as reformas políticas) actuassem num sentido favorável à universalização dos direitos. Essa promessa de inclusão futura reflectiu-se na invenção de categorias jurídicas que se adequavam à ideia de "espera", como as de cidadania activa/passiva ou as da nacionalidade sem cidadania. Como se verá, era possível sugerir, por meio destas categorias, que, sendo a cidadania universal, algumas pessoas estavam, em relação a ela, numa situação de "transição", individual ou colectiva.

Cidadãos activos/cidadãos passivos A igualdade na submissão à lei não implicava, no pensamento político de oitocentos, que todos participassem na sua elaboração. Pelo contrário, quase todos os textos constitucionais e doutrinais da época diferenciaram os cidadãos em função da participação política. O direito público de oitocentos distinguiu, para isso, entre cidadãos activose cidadãos passivos ou, alternativamente, entre cidadãos e apenas nacionais. Cidadãos activos(ou apenas cidadãos, quando a contraposição era entre nacionais e cidadãos) eram todos os que, por reunirem condições psicológicas para a formação de uma vontade livre e autónoma,podiam intervir na formação dos poderes públicos por meio do voto e ser eleitos.

Cidadãos passivos (ou apenas nacionais) eram todos os que tinham direito à protecção dos seus direitos naturais-civis (a sua pessoa, liberdade e propriedade), mas não exerciam o direito de voto e não podiam ser eleitos39. Os critérios com os quais se aferiu a independência da vontade foram o critério censitário e/ou o grau de instrução. Por um lado, se a propriedade era sinal de racionalidade, da ausência dela presumia-se a incapacidade (ou o "desinteresse", que, no horizonte, estava a ideia lockeana de que o fim da sociedade era a protecção da propriedade). Por outro, entendia-se, por vezes, que o homem instruído/educado também podia, ao lado do proprietário, participar no debate "racional e imparcial" requerido pelo espaço público oitocentista40. Não obstante, estas exclusões conviviam mal com a ideia, que permaneceu no horizonte, segundo a qual os direitos políticos, por serem direitos naturais subjectivos, eram direitos de todos os homens, em cuja atribuição não deviam interferir variáveis de natureza económica, social, cultural ou psicológica (como ser "racional")41. É certo que a cultura política e jurídica oitocentista produziu visões alternativas sobre a natureza do voto, nomeadamente através de uma certa desvalorização da participação política a favor do exercício seguro dos direitos civis e da identificação do voto, não como um direito, mas como uma função pública, por meio da qual os eleitores designavam os "mais capazes" para o governo da sociedade42. Por essa via, os indivíduos delegavam noutros a direcção dos assuntos públicos para melhor se realizarem na esfera privada da sua vida (Fioravanti, 1995, p. 67)43. Benjamin Constant descreveu de forma pedagógica esta ideia, ao distinguir entre a "liberdade dos antigos" e a "liberdade dos modernos". Se, para os "antigos", a liberdade decorria mais "da participação activa no poder colectivo do que do gozo pacífico da independência individual", para os modernos ela decorria, em primeiro lugar, do exercício dos direitos civis, da possibilidade de prosseguir em liberdade a "felicidade particular" e as exigências profissionais da vida moderna, pouco compatíveis com a "virtude" e os sacrifícios que a liberdade política dos antigos exigia44. Mas, apesar destas formas de entender os direitos políticos, a tensão produzida pela percepção do voto como um direito nunca deixou de existir e, por isso, ao lado das doutrinas mais funcionais à realização dos projectos (de vida) privados dos cidadãos, e menos funcionais à valorização da participação política, a universalização futura dos direitos políticos foi outra das formas encontradas para tornar mais aceitáveis os limites impostos ao exercício dos mesmos no presente. Neste contexto, foram muitos os momentos em que o conceito de cidadão passivo serviu simultaneamente para excluir e, ao mesmo tempo, sugerir uma futura inclusão.

Como notou Pierre Rosanvallon (1992) na sua obra clássica sobre o sufrágio universal em França, o conceito de cidadão passivo correspondeu a uma fórmula encontrada para suspender temporariamente a participação política activa de alguns cidadãos e, ao mesmo tempo, preservar uma perspectiva universalista de cidadania. Isso era possível porque se presumia que o cidadão passivo era alguém que possuía os direitos políticos mas que, temporariamente, não os podia exercer. Tratava-se, portanto, de uma suspensão que podia ser temporária, mais do que de uma exclusão definitiva.

O menor foi, naturalmente, o exemplo paradigmático do cidadão passivo, o "indivíduo inacabado", que, por meio da educação, se transformaria no indivíduo autónomo. O carácter momentâneo da suspensão era, no seu caso, muito evidente, relacionando-se com o processo educacional de cada indivíduo. Mas existiam outros casos, como o dos alienados ou interditos, cuja capacidade civil e direitos políticos seriam recuperados através da cura45. Outras vezes a mesma ideia surgiu relacionada não com o processo de evolução individual mas colectivo46. A (necessária) evolução civilizacional das sociedades faria desaparecer as diferenciações e universalizaria a figura do cidadão activo47.

Essa ideia encontra-se também na doutrina jurídica portuguesa, a justificar as exclusões do presente com a ideia da impreparação da sociedade portuguesa. Na perspectiva do publicista português José Joaquim Lopes Praça (1844-1920), por exemplo, a concessão mais ou menos ampla dos direitos políticos variava (e devia variar) "segundo o regímen político, e o grau de cultura e civilização de cada povo" (Praça, 1878, p. 164)48. Esta mesma percepção de que a extensão do exercício dos direitos políticos acompanharia a "evolução civilizacional" surgiu, por exemplo, durante a discussão do primeiro Acto Adicional à Carta Constitucional portuguesa de 1826, nos anos 50, quando um deputado (Moniz) propôs que as condições de acesso aos direitos políticos ficassem reservadas à lei eleitoral, e não cristalizadas na lei fundamental, para que ampliações ou restrições no acesso aos direitos políticos pudessem ser facilmente alteradas "em harmonia com o grau de civilização que se fosse ganhando"49.

É certo que este registo optimista em relação a um futuro mais igualitário não foi consensual. Alexandre Herculano, um dos mais importantes teorizadores do liberalismo em Portugal, não não o partilhou, como considerou serem os políticos, juristas e intelectuais que nisso acreditavam vítimas de uma ilusão: "diz-se e crê-se que as ideias democráticas progridem neste século pelas tendências para a igualdade. Nós ainda não podemos convencer-nos disso.

Figuram-se-nos os que assim pensam como completamente iludidos"50. Mas o facto de Herculano chamar a atenção para a natureza ilusória desse registo é também um sinal da sua importância no pensamento da época em que ele escreveu.

De acordo com o argumento "civilizacional" atrás referido, podiam ser tão transitórias as diferenças face à cidadania que separavam o menor do maior de idade como as que separavam o criado de servir do seu senhor ou o operário pobre do proprietário, que a liberdade civil, o progresso económico e o avanço educacional viriam esbater as diferenças, promover a independência económica/psicológica e, com ela, a expansão da participação política51.

A própria exclusão política das mulheres, fundada na contraposição entre feminilidade e racionalidade, e que a cultura política e jurídica oitocentista fez radicar maioritariamente na ordem da natureza, que a arrumava na "esfera doméstica", foi também associada a circunstâncias particulares, como a subordinação social e jurídica ou a pobreza da sua educação52. E, nesses casos, podia também ser encarada como o resultado da falta de preparação das sociedades. Apesar de ter sido das últimas restrições no acesso aos direitos políticos a ser eliminada pela legislação eleitoral dos países europeus, e de essas restrições terem tido, também até muito tarde, o seu equivalente na codificação civil que protegeu as hierarquias do mundo da família, mantendo as mulheres sob a tutela de pais e maridos, o acesso desigual das mulheres aos direitos políticos também foi lido como um sinal de "atraso" que o avanço civilizacional se encarregaria de eliminar. É isso que pode deduzir-se das palavras de Emmanuel-Joseph Sieyès (1748-1836) quando declarou, logo em 1789, que a exclusão política das mulheres decorria de um "preconceito extremamente radicado e de momento impossível de modificar"53. Foi esse também o raciocínio implícito na posição utilitarista de Jeremy Bentham. Nos seus projectos de reforma, Bentham admitiu que o princípio da maior felicidade(e não os "direitos naturais", que considerava uma invenção jurídica mal fundamentada) constituía um forte argumento a favor da extensão do voto às mulheres, que a sua felicidade e interesse eram equivalentes aos dos homens. Não obstante, recusou-se a propô-la nos seus projectos, por reconhecer que a força do preconceito prejudicaria a sua credibilidade (Twining, 2004, pp. 74 e 94-95). O facto, porém, de não ser útil promover alterações repentinas não invalidava a antecipação de um futuro de inclusão: "quanto às pessoas do sexo feminino, se for empregue o único meio adequado de receber a sua declaração de vontade, ou seja, a do sufrágio secreto expresso  livremente, não qualquer razão consistente com o princípio da utilidade geral, tal como acima exposto, pela qual elas, desde que sejam de idade relativamente madura, devam (dele) ser excluídas. Mas nenhum preconceito, por mais contrário que seja ao princípio da utilidade geral, pode ser erradicado de um golpe: e seria ocioso propor a todos aquilo a que se sabe que ninguém daria o seu consentimento"54.

Deste modo, também a justificação para a exclusão das mulheres radicava, por vezes, não na afirmação da sua inferioridade, mas num certo atraso da sociedade europeia do presente55. Kant, inesperadamente, também sugeriu isso quando comparou o estatuto das mulheres na Europa e entre os povos nativos do Canadá: "Entre os selvagens, não existe nenhum que tenha pelo sexo feminino maior consideração do que os do Canadá. Nisso eles ultrapassam talvez até a nossa parte civilizada do mundo. Não apenas pelo respeito com que tratam as mulheres [ ] Na verdade, elas exercem ali, realmente, a autoridade. Reúnem-se e deliberam sobre as leis mais importantes, inclusive em questões de guerra e paz. Enviam deputados seus às assembleias de homens e, geralmente, é a sua voz que determina as decisões" (Kant, 1997 [1764], p. 57).

Nacional/estrangeiro A melhoria das condições económicas, educacionais e civilizacionais permitia antecipar, mas num futuro indeterminado, o acesso de todos à cidadania. Essa cidadania podia até ser, no "fim", uma cidadania realmente universal, cosmopolita. Até , e apesar da referência ao homem, independentemente dos múltiplos contextos (políticos e outros) em que ele se movia, a atribuição de direitos de cidadania permaneceria intimamente relacionada com a pertença a uma comunidade política concreta, a uma nação. O cidadão oitocentista com plenos direitos era o cidadão nacional, alguém cujo amor e lealdade em relação à pátria "que o vira nascer" eram requisitos necessários para o exercício da cidadania política. O "amor natural pela comunidade" e a "implicação moral" dela decorrente foram outras condições requeridas para o exercício pleno da cidadania, justificando, neste caso, restrições ao exercício dos direitos dos estrangeiros (Rosanvallon, 1992, pp. 70-91; Brubaker, 1992, p. 35). Na Constituição portuguesa de 1822, por exemplo, os estrangeiros naturalizados não podiam ser deputados, secretários ou conselheiros de Estado por "não poderem estar bem ao facto de todos os nossos costumes, e também porque não podem (como nós) ter tanto amor à Pátria, e aos nossos concidadãos"56. Outro indício da operatividade destas categorias foi a associação, no caso das naturalizações, entre cidadania e domicílio, ou a obrigação, imposta a todos os cidadãos portugueses pelas constituições e pela doutrina jurídica, de "amar a pátria"57. Os direitos declarados em qualquer das constituições portuguesas do século xix não o foram, finalmente, como direitos do homem, ou do indivíduo, mas como direitos dos portugueses58. Em 1867, também o Código Civil português sublinhou a importância da nacionalidade, ao declarar que "somente os cidadãos portugueses podem gozar em toda a plenitude dos direitos que a lei civil reconhece e garante" (artigo 17.º).

Os cidadãos eram, assim, em primeiro lugar, os cidadãos nacionais. Isso não impediu, contudo, que surgisse no horizonte a ideia de uma futura cidadania universal, no âmbito de uma república cosmopolita. Essa ideia estava expressa em algumas obras de autores de referência, como o ensaio de Abbé de Saint Pierre (Abrégé du projet de paix perpétuelle, inventé par le roi Henri le Grand, approuvé par la reine Elisabeth, par le roi Jacques son successeur, par les Republiques et par divers autres potentats. Approprié à l'état présent des affaires générales de l'Europe, 1729), comentado por J.-J. Rousseau em Jugement sur le projet de paix perpétuelle de l'Abbé de Saint Pierre(1782), o de Jeremy Bentham ("A plan for an universal and perpetual peace"), texto inserido no ensaio que intitulou Principles of International Law, 1786-1789 (Cazala, 2005, p. 367), ou os escritos de Immanuel Kant sobre a paz perpétua (Ideia de uma História Universal com um Fim Cosmopolita (Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltburgerlicher Absicht, 1784; Paz Perpétua, um Projecto Filosófico(Zum ewigen Frieden. Ein philosophischer Entwurf, 1795- 1796). Nestes últimos, uma vez mais, seria a natureza, por meio das leis naturais da história, que encaminharia a espécie humana para um "Estado federal universal", regulado por um direito cosmopolita, do qual seriam cidadãos todos os indivíduos e nações59. Nos textos de economia política também se antecipava uma futura comunidade humana universal, baseada no comércio livre. Este seria, no pensamento dos economistas e dos políticos de finais do século xviii, um instrumento económico capaz de fundar uma "comunidade global" que teria por base uma "aliança entre as nações comerciais" (Padgen, 1995, pp. 80-83). Os efeitos normativos desta ideia não foram grandes, mas podiam encontrar-se ecos dela nas discussões parlamentares da época, nomeadamente em França, em cujas assembleias representativas tiveram assento, mas apenas durante os primeiros anos da revolução, estrangeiros naturalizados, deputados que ali representavam a "universalidade do género humano" (Wahnich, 1997, pp. 171-200). Em Portugal, um deputado vintista manifestou, a propósito da distinção que se fazia entre nacionais e estrangeiros, o desejo de ver abolida, no futuro, "essa quimérica distinção, que entre os homens. Eu tomara que a ideia cosmopolita fosse geral; que os homens olhassem para a sua origem; que olhassem a todos como seus semelhantes; as diferenças que se tem estabelecido têm fundamento no despotismo, orgulho e interesse de uma família"60. E José Dias Ferreira, na sua obra juvenil, descreveu um percurso civilizacional que ia "desde as hordas selvagens à federação das nações" (Ferreira, 1858, p. 15).

Com a última frase citada, porém, o jurista português exprimia uma nova exclusão "temporária", a dos povos que se considerava não estarem ainda organizados em Estados-nações. O caminho para a cidadania universal implicava a pertença prévia a uma comunidade nacional e essa condição deixava de fora, pelo menos no imediato, todos os que integravam o que para a generalidade do pensamento da época eram as "hordas selvagens", os que se considerava não viverem ainda politicamente organizados em Estados e em nações. Vivendo uma espécie de estado natureza, essas populações, muitas delas originárias dos territórios colonizados, não podiam também ser iguais em direitos aos cidadãos das metrópoles europeias. Porque ocupavam o último lugar na hierarquia civilizacional da humanidade, caracterizavam-se pela sua incapacidade de submissão a qualquer forma de governo, muito menos a forma representativa. Eram, por definição, populações ainda incapazes de aceder voluntariamente a qualquer associação61. Não obstante, esta exclusão era também temporária, porque a doutrina colonial entendia que o acesso das populações nativas à cidadania acabaria por acontecer, fazendo-se à medida que se fossem civilizando e, em muitos casos, cristianizando62. É este contexto que explica, por exemplo, a presença, na primeira Constituição portuguesa, de um artigo no qual as Cortes e o governo se comprometeram a garantir a civilização dos índios do Brasil. Nesse artigo a "missão civilizacional" surgiu quase como uma obrigação assumida pelo Estado de proteger o "direito à civilidade", da mesma forma que protegia outros direitos de natureza social, como a protecção dos inválidos, dos pobres e dos expostos ("As Cortes e o Governo terão particular cuidado na fundação, conservação e aumento de Casas de Misericórdia, e de hospitais civis e militares, especialmente daqueles que são destinados para os soldados e marinheiros inválidos; e bem assim de rodas de expostos, montes pios, civilização dos Índios, e de quaisquer outros estabelecimentos de caridade", artigo 270.º). nos "projectos de civilização" apresentados às Cortes vintistas (mas nunca discutidos) fazia-se depender o acesso dos índios à cidadania da sua ascensão à condição de proprietários e da sua cristianização. Num desses projectos propôs-se como condições de acesso à cidadania que "Os índios, e ciganos, ou existentes no Brasil, ou que para forem, poderão ser considerados como cidadãos portugueses, quando sejam, ou forem lavradores de terras próprias, ou fabricantes, convenientemente estabelecidos"63. O mesmo discurso foi feito para os povos nativos dos territórios portugueses em África durante quase todo o século xix. A sua condição era a de alguém que estava em "transição" para a cidadania, a qual se completaria quando a sua "diferença civilizacional" fosse superada. da Bandeira, o político português que mais reflectiu sobre os territórios ultramarinos durante o século xix, identificou como objectivo da colonização de Angola "que os seus habitantes de raça preta cheguem progressivamente a um estado de civilização igual à dos brancos que ali residem" ( da Bandeira, 1873, p. 69)64.

Mais perto da integração, no que se refere às populações dos territórios colonizados, estavam os escravos. Talvez por se considerar que tinham aprendido a primeira lição necessária para viver numa comunidade política, a obediência, mas também porque estavam inseridos, ainda que de forma subordinada, na comunidade política dos senhores, o que lhes proporcionava maiores contactos com a "civilidade". Tocqueville, cuja defesa da abolição gradual da escravatura no parlamento francês é conhecida65, exprimiu em poucas palavras essa união e as tensões que envolvia, ao distinguir o destino de isolamento dos índios na América do "destino dos negros [...] de certo modo, ligado ao dos Europeus" (Tocqueville, 2001 [1835-1840], p.

391). Esta maior proximidade fez com que a questão do futuro acesso dos escravos e seus descendentes à cidadania tivesse sido muito mais discutida nos parlamentos e na doutrina jurídica oitocentista, tendo sido quase unânime a opinião de que estava próximo o momento em que os antigos escravos se transformariam em cidadãos. Essa transformação seria o efeito de programas mais voluntaristas como a promoção da educação dos escravos e a produção de legislação abolicionista , ou de factores mais objectivos, como as leis da evolução histórica e o correspondente progresso civilizacional. Jeremy Bentham conjugou as duas perspectivas, ao propor medidas concretas de emancipação gradual, mas acreditando sempre que com elas apenas se iria acelerar um processo que dependia mais da lei do "progresso civilizacional" do que da vontade do legislador, que naturalmente acompanhava aquela lei: " [ ] as relações esclavagistas, às quais o legislador não pode por fim de um golpe, vão desaparecer, lentamente, dissolvidas pelo tempo, pela marcha da liberdade que, sendo lenta, não é menos segura. Todos os progressos do espírito humano, da civilização, da moral, da riqueza pública, do comércio envolvem, a pouco e pouco, a recuperação da liberdade individual" (Dumond, ed., 1840, p. 104.). Também para Dias Ferreira, como se viu atrás, a divisão entre escravos e livres corporizava uma das etapas no progresso civilizacional das sociedades, destinada a desaparecer à medida que a humanidade progredisse para "uma igualdade completa e definitiva" (Ferreira, 1858, p. 66). Esta ideia da transitoriedade individual e colectiva da condição de escravo e a certeza da sua transformação num cidadão "igual" estiveram presentes quer nas políticas abolicionistas pensadas nas metrópoles europeias, quer nas respectivas constituições, quando a questão da escravatura não foi totalmente silenciada, quer na doutrina jurídica. Era comum, nos programas gradualistas para a abolição da escravatura, que a abolição definitiva fosse precedida pela abolição do tráfico, a qual propiciaria uma melhoria das condições de trabalho e de vida do escravo, que o senhor propiciaria, por interesse próprio, uma vez esgotada a fonte externa de recrutamento de mão-de- obra. Essa melhoria, por ser moralizadora e civilizadora, facilitaria depois a abolição, gradual e pacífica, da escravatura. Esta última, por sua vez, envolveria a aprovação de leis que a preparassem, nomeadamente através da conversão dos escravos em libertos, com a obrigação de prestar serviços gratuitos ao senhor durante um período de tempo. Esta obrigação, finalmente, além de funcionar como forma de indemnizar os senhores de escravos, era também uma oportunidade para proporcionar ao antigo escravo um período de "aprendizagem civilizacional", durante o qual, sob a tutela do antigo senhor ou de outra instituição, se prepararia para o exercício pleno da liberdade e da cidadania. A condição de liberto era, no regime jurídico liberal, uma condição transitória e, por isso, devia estar sempre estabelecido na lei um prazo para a sua extinção, como sucedeu efectivamente no decreto que, a 25 de Fevereiro de 1869, converteu em libertos todos os escravos das províncias ultramarinas portuguesas. A data estabelecida para a extinção da condição de liberto era a de 29 de Abril de 1878. Nesse dia os antigos escravos passariam a ser, formalmente, cidadãos portugueses66.

A condição excepcional e transitória da escravatura e dos estados a ela associados foi, finalmente, afirmada por quase todos os juristas portugueses da época que se pronunciaram sobre o problema da escravatura nas colónias. Todos salientaram que a escravatura não existia no reino em virtude do princípio do "solo livre", que consideravam estar inscrito nos alvarás pombalinos de 19 de Setembro de 1761 e de 16 de Janeiro de 177367, e que mesmo no ultramar, onde era ainda tolerada, se preparava a sua extinção. Manuel Maria da Silva Bruschy (1814-?), um dos mais importantes civilistas da época, considerava adequada a condição de liberto e as restrições civis e políticas que lhe estavam associadas, porque entendia que "[ ] transformar de repente em cidadãos libérrimos os semibrutos habitantes dos sertões de África é um absurdo jurídico, porque as leis concedem direitos em vista da capacidade dos indivíduos [...]", mas achava igualmente que essa transformação era possível e desejável: "a educação moral e portanto religiosa, é unicamente quem pode operar esta transformação [...]". Por isso, concluiu as suas considerações sobre o tema afirmando que a condição de liberto era um "caminho aberto para a emancipação" (Bruschy, 1868, pp. 31-32).

Conclusão A conjugação de um discurso universalista sobre os direitos e a preservação ou a criação de situações de desigualdade civil e política no ordenamento jurídico oitocentista deu origem a uma tensão interna "constitutiva" do discurso liberal dessa época sobre a cidadania, com efeitos de sentido diverso.

Por um lado, o postulado igualitário e universalista, de matriz jusnaturalista e iluminista, permitiu, pelo seu elevado grau de generalidade e neutralidade (face à raça, género, estatuto socioeconómico ), omitir situações de desigualdade e de subordinação que eram problemáticas do ponto de vista daquele postulado. Por outro lado, a necessidade de fundamentar as desigualdades do presente favoreceu a multiplicação de discursos em que a diferença foi quantificada, o que contribuiu para reforçar a legitimidade da sua concretização normativa e, com isso, a sua reprodução social. Mas, finalmente, aquele postulado e a sua referência à igualdade fizeram também com que as diferenças no acesso aos direitos, políticos ou civis, fossem cada vez mais difíceis de legitimar (Costa, 2000, p. 77). Neste último registo situa-se o que considero serem as potencialidades expansivas do conceito oitocentista de cidadania68.

Como tentei mostrar neste texto, a ideia de progresso, ao garantir num futuro indeterminado o acesso de todos à cidadania plena, ajudou a resolver aquela tensão. Todos seriam incluídos, embora apenas à medida que as condições económicas, educacionais e/ou civilizacionais o permitissem. Os direitos políticos e civis não eram, nesta narrativa, direitos "anteriores", "naturais" ou "universais" que se impusessem aos governos e aos quais todos os indivíduos devessem ter igual acesso. Eram direitos que os governos deviam conceder, sabiamente guiados pelo conhecimento que tinham do "estádio" de desenvolvimento (económico, educacional, civilizacional) das sociedades que governavam69. Até que, no fim desse processo, mais dependente de uma lei de "necessidade histórica" do que de políticas voluntaristas desses governos, a cidadania se universalizasse.


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