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EuPTHUHu0807-89672012000200015

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variedadeEu
ano2012
fonteScielo

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Entre os deveres de justiça doméstica e global: uma questão de prioridade

Prólogo Sucintamente, começo por lembrar as raízes estóicas e kantianas da ideia de cidadão do mundo e, na sua esteira, por dilucidar as teses nela implícitas.

Este ponto de partida é tanto mais relevante quanto a proposta de Pogge sobre a justiça global informa a concepção clássica de comunidade humana e a concepção kantiana de sujeição de todas as crenças, relações e práticas ao teste de interacção voluntária e razão imparcial.

O cosmopolitismo surgiu inicialmente vinculado à negação de filiação local, à polis, em nome da filiação universal à razão humana. Mas foi essencialmente no sentido positivo, difundido pelo estoicismo, e não na concepção cínica, que a ideia de cidadão do mundo veio a ser retomada por Kant e apreendida na contemporaneidade; dado, neste sentido, permitir configurar os domínios social e político a partir da igualdade e sem olvidar a diferença - união que confere um carácter paradoxal à ideia de cidadão do mundo. Imbuídos de uma concepção ética que confere valor à vida de todo e qualquer ser humano, não obstante o seu género, a sua classe social, a sua nacionalidade, etc - ideia-chave do reconhecimento dos deveres de humanidade - os estóicos concederam ao cosmos a centralidade outrora atribuída à polisno horizonte político. O cosmopolitismo estóico revela-se na sua metáfora dos círculos concêntricos: cada pessoa encontra-se no centro de uma série de círculos concêntricos de associação e responsabilidade, que se dilatam do eu à família e amigos, à cidade e nação e, por último, à humanidade[1] (veja-se Simmons, 1998: 181).

Apelando à metáfora estóica dos círculos concêntricos[2], Kant apreendeu a ideia de "cidadão do mundo" - ilustrada pelo termo Weltbürger - como igualdade moral. Com ele a concepção de cidadão do mundo ganhou corpo, pelo enlace à inter-subjectividade ilustrada na ideia de uso público da razão, e o direito cosmopolita foi reconhecido como complemento do direito civil e político e do direito das gentes (Kant, 1795/6, 140). Ao limitar o direito cosmopolita [ao] direito de um estrangeiro a não ser tratado com hospitalidade em virtude da sua vinda ao território de outro (Idem: 137), o cosmopolitismo kantiano fica muito aquém das filosofias contemporâneas dos direitos humanos; conquanto ofereça em grande medida os seus fundamentos através da ideia de que a nossa obrigação moral para com os outros assenta na humanidade e não na pertença a uma determinada comunidade, cultura ou nação. Por outro lado, urge lembrar que o cosmopolitismo kantiano não se cinge à ideia de hospitalidade.

Kant refere-se ao cosmopolitismo num sentido mais amplo, como aspiração de criar uma sociedade de indivíduos independente dos Estados (Archibugi, 1995: 430). No encalço da ideia de uma história universal sob propósito cosmopolita, reconhece um estado de cidadania mundial como o seio em que se desenvolverão todas as disposições originais do género humano" (Kant, 1874: 35).

A máxima cada pessoa deve ser tida como igual na esfera moral da humanidade é hoje assegurada e fomentada por princípios que estabelecem a estrutura moral cosmopolita - como os do igual valor e dignidade, da agência activa (ou autodeterminação) e da responsabilidade e compromisso pessoal; por princípios que justificam a actividade individual - como os do consentimento, da deliberação sobre matérias públicas e da inclusão e subsidiariedade; e por princípios que estruturam a avaliação da prioridade de necessidade e conservação de recursos - como da revogação de danos (princípio de justiça social) e da sustentabilidade (veja-se Held, 2005: 12-16). Retenho-me aqui, especialmente, no princípio que constitui o axioma de todas as perspectivas cosmopolitas, o princípio do individualismo igualitário ou do igual valor - à partida, trata-se de respeitar a dignidade e a escolha de todo e qualquer ser humano, sem negar a sua diversidade cultural e diferença.

O ideal de cidadão do mundo incorpora duas teses centrais ao cosmopolitismo: a tese da identidade e a tese da responsabilidade. Como tese da identidade, o cosmopolitismo enuncia que cada um de nós é uma pessoa marcada ou influenciada por uma variedade de culturas; como tese da responsabilidade, guia o indivíduo quanto às suas obrigações locais e às suas obrigações para com todos aqueles, que conquanto lhe sejam absolutamente estranhos e distantes, se vêm afectados pelas suas acções. A primeira tese é enfatizada pelo cosmopolitismo sobre a cultura e a identidade social individual, a segunda pelo cosmopolitismo sobre a justiça - dois dos muitos e variados filões do cosmopolitismo moral contemporâneo, que não se excluem mutuamente (veja-se Scheffler, 1999).

O cosmopolitismo sobre a cultura sustenta a ideia de fluidez da identidade individual; ou seja, reconhece a capacidade das pessoas para forjarem novas identidades, pela recorrência a diferentes fontes culturais, e o seu consequente florescimento. Logo, opõe-se à ideia de identidade individual decorrente da filiação a um determinado grupo cultural, circunscrito e estável, advogada por algumas formas de nacionalismo, multiculturalismo, comunitarismo e liberalismo. A ambiguidade inerente à ideia de cidadão do mundo perpassa o cosmopolitismo sobre a cultura sob a forma do seguinte dilema: reivindica-se a desnecessidade dos indivíduos se situarem no seio de uma tradição cultural singular em vista do seu florescimento ou afirma-se que as pessoas não se podem desenvolver dessa forma. A sustentar o segundo termo da alternativa, a via extrema nega que a adesão a valores e tradições de uma comunidade particular constitua um rumo viável na contemporaneidade; diferentemente, em apoio do primeiro termo, a via moderada considera que, conquanto a prosperidade individual não implique necessariamente a pertença a uma cultura, as pessoas podem-se manter no contexto de uma determinada cultura particular.

Por sua vez, o cosmopolitismo sobre a justiça concerne ao alcance da justiça; alude aos deveres de justiça independentemente das culturas de cidadania e de autodeterminação, em demanda da igualdade global - sucinta e genericamente, defende que a distribuição dos bens materiais e recursos entre os indivíduos deve ser decidida independentemente das fronteiras nacionais no seio das quais se encontram. Opõe-se, deste modo, a toda e qualquer teoria que advogue que os princípios de justiça distributiva se aplicam primeiramente, ou senão mesmo exclusivamente, às sociedades domésticas - esta ideia de exclusividade é veiculada por Rawls em The Law of Peoples (1999), defraudando as expectativas dos defensores do princípio da diferença global, como Beitz e Pogge, entre outros. Na concepção rawlsiana as obrigações da justiça de um indivíduo para com um outro substanciam deveres de concidadania e não deveres para com os membros de outras sociedades domésticas. Isto não significa que não tenham obrigações morais para com eles - na Lei dos Povos Rawls assinala a obrigação cosmopolita de se respeitar os direitos humanos (Rawls, 1999: 37).

O cosmopolitismo sobre a justiça coloca-se, assim, nos antípodas da teoria política que divide o trabalho moral entre os níveis doméstico e internacional, atribuindo privilégio moral à sociedade doméstica - conferindo a esta a responsabilidade primeira pelo bem-estar dos seus cidadãos e à sociedade internacional a responsabilidade pela manutenção das condições de fundo sobre as quais as sociedades domésticas se desenvolvem e florescem (veja-se Rawls, 1999). Descendente da via da moralidade dos Estados, esta teoria substancia um liberalismo social, e não cosmopolita, que perde de vista factos determinantes da justiça internacional coeva - como são os da desigualdade e a pobreza globais; da interdependência económica cada vez mais complexa; da articulação entre os regimes e as instituições internacionais; e do desenvolvimento da sociedade civil internacional (veja-se Beitz, 1979 e 1999).

A obscuridade inerente à ideia de cidadão do mundo também se faz sentir no cosmopolitismo sobre a justiça; sob a forma de confronto com a dificuldade de saber se existe algo que os membros de uma sociedade doméstica particular devam uns aos outros que não devam a estranhos. Ou seja, coloca sob suspeita a existência de normas cuja aplicação se restrinja aos indivíduos de uma determinada sociedade doméstica. No âmbito da força dos princípios requeridos pela justiça cosmopolita, a filosofia cosmopolita contemporânea assume duas posições amplas: a espessa (thick) ou forte (strong) e a fina (thin) ou fraca (weak) (veja-se Beitz, 1999; Miller 2000; e Held, 2005). A primeira considera que os princípios de justiça distributiva locais são igualmente globais e que, consequentemente, não temos o direito de usar a nacionalidade como pretexto de comportamentos discriminatórios. Diferentemente, para um defensor do cosmopolitismo fraco existem algumas obrigações extra-nacionais que têm algum peso moral. Mas o debate filosófico cosmopolita não cobre apenas os seus requerimentos normativos, estendendo-se à concepção moral desses requerimentos (veja-se Tan, 2004: 12), à discussão entre as vias moderada e extrema - como previamente anunciei relativamente ao cosmopolitismo sobre a cultura e a identidade social individual.

O cosmopolitismo moral moderado, como assinalado por Scheffler (1999), assume a existência de obrigações especiais que não são moralmente justificadas em termos cosmopolitas - ser cidadão do mundo significa, neste sentido, que para além das suas relações pessoais e filiações a grupos particulares, o indivíduo mantém uma relação ética com outros seres humanos em geral. Diferentemente, uma via reducionista dos cuidados e obrigações especiais, como a via extrema do cosmopolitismo moral, considera que as responsabilidades especiais são justificáveis e apenas à luz de princípios e fins cosmopolitas. O que se torna visível, neste debate, é a dificuldade em se articular o compromisso com a igualdade - a ideia de que todas as pessoas têm um valor igual - e o reconhecimento de responsabilidades especiais - estas pressupõem a anuência de que algumas pessoas têm mais valor que outras. Consequentemente, no âmbito da justiça questiona-se a prioridade do dever de ajudar alguém pelo simples facto de pertencer a uma determinada sociedade doméstica e não a outra.

A tese da prioridade de dever de ajudar os compatriotas não implica a negação da existência de direitos básicos universais, cuja satisfação é essencial à satisfação de qualquer outro direito, como o direito de subsistência e o direito à segurança, mas nega que qualquer dever de ajudar correlativo seja universal ou mesmo transnacional (Shue, 1996: 132). Neste sentido, as mesmas pessoas que, em caso de guerra, têm o dever de arriscar a vida em nome da pátria, podem nunca vir a ser obrigadas a ajudar pessoas que se vêm privadas de bens essenciais à subsistência, pelo simples facto de não serem suas compatriotas. Mas, como sublinha Shue, intuitivamente, é plausível que se possa ter a obrigação de compartilhar recursos com pessoas relativamente as quais ninguém teria qualquer obrigação de arriscar a própria vida (Idem: 134).

A nossa consciência de pertença à humanidade revela-se especialmente quando somos confrontamos problemas que colocam em risco a subsistência dos indivíduos - tais como o facto de se ter nascido no seio de uma sociedade sem recursos.

Nesse caso, acção humanitária será suficiente? A menos que se queira perpetuar as razões profundas da insustentabilidade da grande maioria da população mundial, a questão não deve ser colocada ao nível das nossas obrigações para com os estrangeiros, de deveres humanitários, mas ao nível dos nossos deveres de justiça para com qualquer indivíduo do mundo. É precisamente a este nível que Thomas Pogge desenvolve a sua proposta em vista da erradicação da pobreza extrema.

I Na esteira deste prólogo, detenho-me no cosmopolitismo moral de Pogge. Assente na noção de que cada ser humano tem um valor como unidade última do cuidado moral, a variante do cosmopolitismo moral de Pogge é formulada em termos de direitos humanos com agregação interpessoal directa (Pogge, 2002: 176).

Enraizada na ideia de que todas as pessoas se encontram comprometidas umas com a outras, na exigência do respeito mútuo que impõe limites às condutas pessoais e às diligências de estruturação de esquemas institucionais, trata-se de uma via que desafia as perspectivas que tomam o Estado, a nação, a comunidade ou mesmo o povo como titulares de responsabilidades específicas, distintas e justificadas separadamente das responsabilidades gerais ou globais.

Representante da via cosmopolita neo-rawlsiana que se focaliza na justiça económica e social, compreendida como promoção da igualdade de oportunidades e da distribuição de bens sociais primários, Pogge não se limita a reconhecer o princípio da diferença como o princípio de justiça distributiva global mais adequado, dado que da sua aplicação à escala global resulta uma redistribuição fortemente igualitária dos recursos mundiais, como defende o seu primado relativamente ao princípio da diferença doméstico. Neste sentido, num tom crítico à teoria da justiça rawlsiana, escreve: tendo em conta a aparente complexidade do problema da justiça de fundo, é imperativo tomar a perspectiva global desde o início, ajustar as nossa reflexões morais sobre a organização interna das sociedades e sobre as restrições adequadas à conduta individual à luz da nossa aspiração para uma estrutura básica global justa e estável (Pogge, 1989: 256).

Na concepção de Pogge as desigualdades entre os indivíduos do mundo é justificada apenas quando beneficie aqueles que menos têm - a justiça distributiva tem um alcance global dado o igual valor moral dos indivíduos. Ao defender a justiça global, considera o bem-estar dos indivíduos como prioritário aos valores e interesses da sociedade e que é em sua vista que se deve proceder às reformas institucionais; e, sob esse intuito, alerta para a interdependência complexa entre as estruturas básicas domésticas e a estrutura básica global, reconhecendo a existência de um sistema internacional de cooperação formado por regras, instituições e práticas. Neste sentido, avaliando a erradicação da pobreza extrema - compreendida como uma violação dos direitos humanos[3] - como a questão prioritária da justiça global, lembra que os cidadãos mais ricos dos países mais influentes são activamente responsáveis pela maior parte da pobreza que ameaça a vida no mundo; que nestes países a luta contra a pobreza não é tida, pelas práticas governamentais, como uma obrigação moral ou legal[4]. Em vista da erradicação da pobreza extrema, Pogge advoga que os indivíduos têm o dever de não causar dano a qualquer outro (a), o dever de evitar o dano que o seu comportamento passado possa causar no futuro (b) e de não compactuarem com um sistema institucional que lese os mais pobres (veja-se Pogge 2002; 2005).

Esta perspectiva assenta na convicção de que quando está em causa reclamar o cuidado constante, os deveres negativos (a) e intermédios (b) - positivos porque requerem a acção do agente e negativos na medida em que o seu requerimento é contínuo com o dever de evitar causar dano nos outros (veja-se Pogge, 2005: 94) - são mais rigorosos que os deveres positivos, visto gerarem obrigações positivas apenas pela conduta voluntária. Esta argumentação ganha terreno no seguimento do fraco acolhimento do apelo aos deveres positivos em vista da erradicação da pobreza extrema (Peter Singer, Henry Shue, Peter Unger e outros) entre os cidadãos dos países mais influentes. Logo à partida, evidencia o seu compromisso com instituições sociais que produzem tais privações, dado beneficiarem das enormes desigualdades por elas produzidas. Ou seja, Pogge acentua a necessidade de se romper com a lógica que amplia ininterruptamente o poder económico das elites e que se revela moralmente arbitrária; que se desculpabiliza dos danos que causa nos cidadãos dos países mais pobres pela implementação de políticas de assistência internacional.

Criticando a tese da causalidade puramente doméstica da pobreza, que acolhe a adesão da maioria dos indivíduos do mundo desenvolvido e explica, em grande medida, a persistência das elites brutas e corruptas nos países mais pobres (veja-se Pogge, 2004: 538-541), Pogge considera que a pobreza extrema se fica a dever, em grande medida, à ordem económica global - modelada para reflectir os interesses dos países ricos, dos seus cidadãos e das suas corporações (Idem, 537). Mostra, sobretudo, que a tolerância e cooperação com a corrupção instituída nas autoridades dos países subdesenvolvidos e os privilégios concedidos pela comunidade internacional aos governos dos países - de acesso aos recursos naturais e de acesso a empréstimos da banca internacional - causam danos nos mais desfavorecidos (Pogge, 2001: 20s; 2002: 29s; 118s; 2004: 543s).

Ao conferir à elite no poder direitos de propriedade legais sobre os recursos do seu país, o privilégio internacional de acesso aos recursos naturais incentiva a luta anti-democrática pelo poder político e tem por consequência a correlação negativa entre a riqueza de recursos e o rendimento económico.

Consequentemente, tem efeitos desastrosos em países subdesenvolvidos com amplos recursos naturais. Por sua vez, os males decorrentes do privilégio internacional de empréstimos não são menores: hipoteca o futuro dos cidadãos em prol de interesses pessoais da classe governante; debilita a capacidade de implementação de reformas estruturais e de programas políticos inovadores dos governos democráticos posteriores; e, porque constitui um bónus adicional para os detentores do poder coercivo, estimula as tentativas golpistas.

Sob o desígnio de acabar com a desigualdade radical entre os indivíduos mais ricos e mais pobres do mundo, uma arbitrariedade mantida coercivamente à custa da violação de um dever negativo de justiça, Pogge propõe a aplicação à escala global de um princípio suficiente que tem por base a ideia de que as desigualdades são aceitáveis desde que as populações estejam acima da suficiência definida (...) como um rendimento acima de um dólar por dia (Rosas, 2006: 547). Recomenda neste sentido, e na esteira das cláusulas inerentes à noção de apropriação lockeana[5], a criação de um imposto sobre o uso dos recursos naturais - dividendo de recursos global. Trata-se de um imposto que, recaindo sobre os cidadãos dos países mais influentes, visa constituir um fundo a distribuir pelos cidadãos dos países mais carenciados - um pequeno imposto sobre os fósseis combustíveis bastaria, nesta perspectiva, para acabar com a fome no mundo.

Esta proposta assenta na ideia de que aqueles a quem as nossas acções causam dano devem ser compensados - desenvolvida pelo liberalismo libertário (veja-se Nozick, 1974: 78-84) - de modo a rectificar-se a desigualdade radical - resultado cumulativo de décadas e séculos em que as sociedades e grupos mais prósperos usaram das suas vantagens em capital e conhecimento para expandi-las ainda mais (Pogge, 2002: 211). Aqueles que, involuntariamente, usem menos os recursos do planeta devem ser compensados por aqueles que os consomem exaustivamente. Esta ideia não implica a compreensão dos recursos globais como propriedade comum da humanidade a ser partilhada igualmente, mas um concepção mais modesta - trata-se de deixar para cada governo o controle dos recursos naturais do seu território. Neste sentido, a taxa global incide sobre a exploração dos recursos e não sobre a posse de recursos, quer se lhes ou não uso - distancia-se neste sentido, das propostas que visam um igualitarismo global compatível com as políticas de autodeterminação, como a de Cécile Fabre (2005).

Os direitos de propriedade funcionam como constrangimento da acção; ou seja, o direito de propriedade do indivíduo A sobre x impõe um dever negativo geral a todos os outros indivíduos de não usarem x sem permissão de A. Todavia, em caso de situações de emergência pode-se usar um bem de alguém sem o seu consentimento, desde que seja compensado totalmente pela transgressão - o dever negativo implica uma obrigação positiva cujo conteúdo é independente do seu consentimento. Em analogia a esta compensação, Pogge crê que os direitos humanos devem ser compreendidos como geradores de reivindicações morais mínimas contra aqueles que participam na imposição de instituições sociais (Pogge, 2007: 24). Neste sentido, conquanto aceite a perseverança libertária sobre o constrangimento mínimo que os deveres dos direitos humanos podem impor - que não causemos dano aos outros em certas vias; a sua compreensão institucional não pressupõe, como aquela via, a desvalorização dos direitos humanos sociais e económicos - direitos que gerem reivindicações contra os indivíduos que impõem sobre nós uma ordem institucional coerciva que restringe a nossa liberdade de acesso às necessidades básicas. Assim sendo, todos os agentes humanos têm um dever negativo de não cooperar com uma ordem institucional injusta, a menos que seja compensatória, protegendo as suas vítimas ou trabalhando em vista de reformas.

Como assinalado, Pogge evidencia a relevância dos factores institucionais - notavelmente, das regras que governam as interacções económicas nos contextos nacional e internacional - no conjunto de causas determinantes da pobreza extrema[6]. Esta importância fica-se a dever ao seu enorme impacto na distribuição económica no seio da jurisdição a que se aplica (Idem: 26); à sua enorme visibilidade e ao facto de ser mais fácil sustentar regras moralmente bem sucedidas que condutas moralmente bem sucedidas. Consequentemente, a proposta de Pogge para a erradicação da pobreza - dividendo de recursos global - pressupõe uma reforma institucional global cuja realidade e sustentabilidade se depreende das seguintes razões: em primeira instância, face ao seu enorme contributo para evitar a pobreza extrema os montantes e os custos de oportunidade que cada cidadão influente impõe a si mesmo para a suportar são mínimos; em segundo lugar, assegura que estes sejam compartilhados equitativamente entre os mais ricos; e, por último, uma vez implementada, não exige ser repetida, ano após ano, através de dolorosas decisões pessoais (veja- se Idem, 29). Esta via rompe com as estratégias que visam manter a configuração da ordem económica global coeva; olvidando-a ou, senão mesmo, negando-a como causa determinante da crescente evolução da pobreza extrema, conquanto lhe atribua um papel relevante na luta contra este flagelo.

A argumentação de Pogge em prol da justiça global, desenvolvida numa linguagem dos direitos humanos, encurta a distância entre as vias igualitária e o libertária, tanto pelo apelo ao direito de propriedade lockeano como pelo reconhecimento de que, como assinalado, os deveres negativos, como o dever de não causar dano aos mais pobres, são mais rigorosos que os positivos, dado gerarem obrigações positivas apenas pela conduta voluntária (Pogge, 2002: 132).

Da mesma forma, a sua proposta é justificável nas terminologias contratualista e consequencialista. Mas para além da recorrência a uma estratégia ecuménica - que começa por mostrar como o mundo é pervertido pela desigualdade radical e concernente a todos os aspectos da vida humana e visa tornar o dividendo sobre os recursos naturais razoável a qualquer via do pensamento político ocidental - o filósofo recorre a uma estratégia normativa e empírica que remete para a ideia de responsabilidade causal - os cidadãos dos países desenvolvidos têm obrigações especiais de acabar com a pobreza, dado contribuírem significativamente para a sua existência. Assim sendo, a responsabilidade causal da comunidade internacional pela génese e perpetuação de desigualdades injustas, que condenam algumas populações à mais profunda pobreza, pressupõe a ideia de responsabilidade directa das pessoas.

A referência à responsabilidade causal emerge, inicialmente, ligada à argumentação de Pogge em defesa do alcance global da aplicação do princípio da diferença, como desenvolvida em Realizing Rawls (1989). Neste ensaio, o filósofo evidencia como a responsabilidade causal pela ordem global origem à responsabilidade moral, a uma responsabilidade colectiva pela estrutura básica global que precisa o artigo 28º da Declaração Universal dos Direitos Humanos - cujo enunciado reconhece o reino de uma ordem social e internacional, que efective os direitos e liberdades nela enunciados, como um direito das pessoas.

Neste sentido, a responsabilidade colectiva causal pela perpetuação de instituições sociais injustas recai sobre aqueles que delas retiram vantagens; conferindo-lhes uma responsabilidade moral por dificultarem o acesso daqueles que se encontram numa situação mais desvantajosa, frequentemente resultante de factores arbitrários, aos bens de primeira necessidade.

O cosmopolitismo moral de Pogge envereda por uma variante institucional (e não interaccional) que conduz a uma moralidade mais pertinente e global, na qual os direitos humanos são tidos como constrangimento às condutas pessoais e o seu cumprimento como sendo da responsabilidade dos agentes colectivos e individuais. Esta variante moral, distintamente da interpessoal, assinala a responsabilidade directa das pessoas pelo cumprimento dos direitos humanos; dado todos os seres humanos participarem na ordem institucional global, que envolve instituições estatais, um sistema legislativo e diplomático internacional, um sistema global de capitais, bens e serviços. Assim sendo, cada pessoa tem o dever de não cooperar com uma ordem institucional injusta - dever que desencadeia obrigações de proteger as vítimas e de promover reformas institucionais em vista de uma maior observância dos direitos humanos. Trata-se de uma responsabilidade partilhada que se estende da ordem institucional doméstica à ordem institucional global; relativa tanto ao que estabelece e autoriza quanto aos seus efeitos - como escreve, no mínimo os cidadãos mais privilegiados e influentes dos países mais poderosos e aproximadamente democráticos suportam a responsabilidade colectiva do papel do seu governo na concepção e imposição dessa ordem global e a sua falha em reformá-la em vista de uma maior cumprimento dos direitos humanos (Pogge, 2002: 179). Neste sentido, o filósofo opõe-se às tácticas que visam limitar a relevância prática da responsabilidade partilhada - à estratégia filosófica que olvida os efeitos decorrentes das instituições sociais; e à estratégia empírica que enfatiza as explicações locais dos direitos humanos e da sua distribuição.

De que forma esta perspectiva cosmopolita - moral institucional - se relaciona com a noção de justiça distributiva? Trata-se, segundo Pogge, de saber como escolher ou projectar as regras de condução da economia que regulam a propriedade, a cooperação e as trocas e, assim, as condições de produção e distribuição. Ou seja, defende-se a procura de uma ordem económica sob a qual todos os que nela participam satisfaçam as suas necessidades sociais e económicas básicas. Neste sentido, a resolução das injustiças da ordem económica não pressupõe a existência de uma comunidade de pessoas primeiramente comprometidas com o que partilham entre si, mas a justiça económica global exige e suporta a realocação da autoridade política ' esta constitui, a par da paz e da segurança, da redução da opressão e da ecologia e democracia (compreendida como o direito humano de participação política), um dos sustentáculos da sua defesa de uma soberania vertical dispersa.

A promoção da justiça exige a existência de instituições sociais, políticas e económicas de alcance global, pois os Estados, como os conhecemos, não são suficientes a esta promoção (veja-se Jones, 2005: 15). Contra a premência da ideia de autonomia territorial do Estado e a condensação da soberania no nível estatal e, consequentemente, em detrimento de um Estado Mundial, Pogge propõe a dispersão vertical da soberania, uma ordem soberana de multicamadas. Segundo esta concepção, as pessoas podem estar filiadas a uma variedade de unidades políticas de tamanhos distintos, sem que alguma delas seja dominante e contribuindo todas elas para o seu conforto e identidade política. As fidelidades das pessoas dispersam-se pelas diversas unidades políticas ' o bairro, a cidade, o distrito, a província, o Estado, a região e, mesmo, o mundo em geral. O cosmopolitismo moral institucional de Pogge antevê, deste modo, uma ordem global pluralista ' como escreve, uma tal ordem institucional é compatível com unidades políticas em que os membros sejam homogéneos com respeito a algumas características não escolhidas partilhadas (nacionalidade, etnicidade, língua nativa, história, religião, etc), e pode certamente engendrar essas unidades. Mas deve fazê-lo apenas na medida em que as pessoas escolham partilhar a sua vida política com outras semelhantes a elas neste aspecto. Mas isso não lhes daria o direito de partilharem na vida política umas das outras pelo simples facto de partilharem características não escolhidas (Pogge, 2002: 199).

II Na senda da teoria da justiça como equidade (Rawls 1971) e contra os princípios de justiça internacional enunciados por Rawls na Lei dos Povos (Rawls, 1999), Pogge não defende o princípio da diferença como o princípio de justiça distributiva global mais adequado, como a primazia da sua aplicação relativamente ao princípio da diferença doméstico. Todavia, como salienta Samuel Freeman, não logra esclarecer convenientemente a ideia de que primeiro se deva estruturar as instituições económicas globais de modo a maximizar-se a situação dos mais carentes do mundo e em seguida se deva passar à estruturação das instituições económicas e jurídicas das sociedades domésticas, a fim de se melhorar a situação daqueles que nelas se encontram na pior posição (veja-se Freeman, 2006: 63).

Ao defender o alcance global da justiça social distributiva e nos remeter para os ajustamentos institucionais (económicos e políticos) necessários à erradicação da pobreza, o liberalismo igualitário de Pogge incorre num impasse.

Logo à partida, esbarra na dificuldade em implementar universalmente deveres de justiça cuja justificação moral assenta numa concepção de pessoa estranha a culturas políticas (morais) não liberais. Qualquer indivíduo compreende o dever de não causar dano a qualquer outro, mas isso não significa que se tenha como moralmente responsável por qualquer dano que cause a alguém do outro lado do mundo. Poderá dar-se o caso da estrutura moral, cultural e política da sua sociedade doméstica não o reconhecer como pessoa livre e igual ou, ainda, de não identificar a vítima do dano como seu semelhante. No seguimento deste raciocínio, sou levada a questionar a possibilidade de se defender a prioridade de deveres de justiça global que ignoram as particularidades das sociedades domésticas a que os indivíduos pertencem. Este pressuposto parece minimizar propositadamente a tese cosmopolita da identidade - como assinalado, esta ilustra como cada um de nós é uma pessoa influenciada por uma variedade de culturas - em prol da sobrevalorização da tese cosmopolita da responsabilidade, da ideia de que a responsabilidade de cada pessoa se estende muito para além do seu círculo restrito, do bairro ao mundo.

Ao longo da sua proposta, Pogge argumenta que nós somos responsáveis pela pobreza no mundo, referindo-se ao nós enquanto agentes que tomam decisões em nome próprio e na posse da informação completa. Mas nem sempre as escolhas são feitas dessa forma - no âmbito da representatividade as escolhas pressupõem que outros decidam por nós. Ora, nem sempre quem decide o faz de acordo com as nossas convicções - as decisões governamentais são disso paradigmáticas. Neste sentido, como assinala Debra Satz (2006), a argumentação de Pogge peca por falta de esclarecimento sobre a distinção entre a responsabilidade pessoal - que contempla a ideia de indivíduo cumpridor dos fins a que se propõe - e a responsabilidade civil - enraizada ao dever de cada cidadão não de participar no processo político como de vigiar as práticas políticas, fazendo o possível para que se guiem à luz da razão pública. Podemos apontar a responsabilidade civil dos cidadãos de uma sociedade doméstica quando o seu governo, eleito democraticamente, não cumpra os seus compromissos. Todavia, é difícil avaliar o seu grau de responsabilidade quando passam a estar em causa representações mais indirectas. Poderemos responsabilizar, da mesma forma, todos os cidadãos dos países influentes pelas políticas de instituições internacionais, como o FMI e o Banco Mundial? Na verdade, a orgânica destas instituições assenta num debate político cujo conhecimento é restrito aos mais altos representantes desses países e que, naturalmente, é do desconhecimento de qualquer cidadão comum. Assim sendo, e em coerência com a terminologia de Pogge, não faz sentido que estes sejam responsabilizados pelas injustiças decorrentes das práticas políticas destas instituições internacionais.

Pogge aponta responsabilidades aos cidadãos dos países mais desenvolvidos pela pobreza extrema, dado estes países ditarem as políticas económicas e financeiras da comunidade internacional. Mas acaba por acentuar a responsabilidade directa das pessoas pelas instituições que integram e causam dano aos mais desfavorecidos, como se cada indivíduo tivesse o mesmo grau de responsabilidade na ordem social global e beneficiasse nos mesmos moldes do esquema de cooperação global. A concepção de justiça global, decorrente desta enfatização da responsabilidade, assenta numa visão demasiado crédula no igual valor de cada pessoa na esfera moral de toda a humanidade. Ao se estender a aplicação da justiça social distributiva a todos os indivíduos do mundo pressupõe-se que estes sejam igualmente considerados, quando na realidade não o são. Por isso mesmo, a supervisão do cumprimento dos deveres de justiça global afigura-se uma empresa incomensurável, senão mesmo utópica. Exige não uma reforma profunda da estrutura económica global, como a atenção constante e equitativa da comunidade internacional sobre todas as sociedades domésticas, pressupondo que qualquer indivíduo do mundo esteja nela representada de forma igual.

Concluo, assim, que o liberalismo igualitário de Thomas Pogge não logra escapar ao infortúnio cosmopolita, pois ao romper com as formas de apoio social que estruturam e sustentam a responsabilidade individual, cai no isolamento moral - como assinala Sheffler, arrisca-se a demolir o mundo social que doa sentido ao estatuto de cidadão do mundo (1999: 125).


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