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EuPTHUHu0807-89672012000200021

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variedadeEu
ano2012
fonteScielo

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Melodia e imitação musical em Ensaio sobre a origem das línguas

Da música e da língua no Ensaio ' mimesis, artifício e racionalização Em Ensaio sobre a origem das línguas, em que se fala da melodia e da imitação musical (doravante, Ensaio), publicado postumamente em 1781, Rousseau (2001) elabora sobre a língua, enquanto fala e escrita, sobre a música, enquanto melodia e harmonia, bem como sobre o surgimento, a relação, e a evolução destas, apontando desde logo, para a sua comunhão originária. Com efeito, concorrem , na conceção de Rousseau (2001: 97), o ritmo, as inflexões e os acentos num ideal de comunicação expressiva que não distingue entre música e discurso ' De início, escreve Rousseau (2001: 97), não houve outra música que não fosse a melodia, nem outra melodia que não consistisse na variedade dos sons da fala. Similarmente, porém, à língua, e em íntima ligação com o aperfeiçoamento desta, segundo Rousseau (2001: 118), a música havia largamente perdido com desenrolar do tempo a sua força expressiva original, num processo de racionalização que, colocando ênfase nos processos físicos (Rousseau, 2001: 124) e na harmonia, em detrimento da melodia (Rousseau, 2001: 115; 124), neutralizara a sua expressividade.[1] Não sendo incompatível com a expressão (Rousseau, 2001: 106), a harmonia faria remeter a música para o âmbito das ciências exatas, enquanto na melodia, em que a imitação das paixões emerge com especial relevo (Rousseau, 2001: 103), radicaria não a superioridade como o lugar da música entre as belas-artes.[2] Nesse sentido, constata Rousseau (2001: 124):

( ) a música, circunscrita ao efeito meramente físico da ocorrência de determinadas vibrações, ( ) viu[-se] privada dos efeitos morais que a caracterizavam quando ela era redobradamente a voz da natureza.

Tal conceção da expressão reveste-se, em todo o caso, de uma natureza particular ' referindo-se aos sons como ( ) signo dos nossos afetos e dos nossos sentimentos (Rousseau, 2001: 107), Rousseau entende o processo imitativo, não como representação direta do objeto, mas como analogia, suscitando sentimentos semelhantes àqueles experimentados na presença do representado (Rousseau, 2001: 115). Rousseau (2001: 104) nota ainda de uma natureza convencional da relação mimética, sendo que a familiaridade com o vocabulário musical se lhe afigurava imprescindível para que se torne o agradável em voluptuosidade ' ( ) estamos diante de uma língua de que necessitamos de conhecer o dicionário, escreve Rousseau (2001: 104), e se tal é aplicável à melodia, com maior propriedade à harmonia, mais artificial.[3] Para além disso, remeter-nos-ia o entendimento de Rousseau para a mimesis na música enquanto imitação sem objeto. Na verdade, comparando a música à pintura Rousseau (2001: 114) constatava que Uma das grandes vantagens do músico consiste em poder dar-nos uma pintura do que por si nunca conseguiríamos ouvir, enquanto o pintor consegue representar o que pode ser visto.

Semelhante origem e percurso são teorizados relativamente à fala e à escrita, verificando-se desde logo, também , a primazia do sentimento ' de acordo com Rousseau (2001: 47): Não se começa por raciocinar mas por sentir. De modo involuntário, e, portanto, fora do âmbito da racionalidade, é a natureza que age na fala, imprimindo a marca das paixões que são o caso (Rousseau, 2001: 44). Excedendo o que seria requerido pelas necessidades elementares (Rousseau, 2001: 47-48), a emergência da fala radicaria na comunicação das paixões, aproximando o sujeito dos seus semelhantes ' Não foram nem a fome nem a sede, informa Rousseau (2001: 48), mas sim o amor, o ódio, a piedade ou a cólera que pela primeira vez soltaram a fala dos homens . Rousseau (2001: 51-53) concebe assim uma primeira língua como sendo mais próxima das exclamações naturais, inarticuladas, das imagens e dos sentimentos, onomatopaica, com poucas articulações e consoantes, variada nos sons a entoações, a fala integrava o acento das paixões, privilegiando a eufonia, na cadência, na harmonia e no encanto dos sons em detrimento da regularidade, normalização, e gramática.[4] Constatando que, com o tempo, as necessidades se sobrepõem às paixões (Rousseau, 2001: 91), não encontrava Rousseau, porém, no seu tempo, vestígio dessa língua expressiva. Num contínuo processo de racionalização da comunicação e uma consequente neutralização da expressão resultante do [ ] estudo da filosofia e o desenvolvimento do pensamento [ ] (Rousseau, 2001: 119), a língua tornara-se mais articulada, mais clara, mais fria (Rousseau, 2001: 53- 54), tendo ganho em clareza perdia o que perdera na força expressiva (Rousseau, 2001: 67). Menciona Rousseau (2001: 53) a esse propósito:

À medida que crescem as necessidades, que as relações se confundem e que as luzes se estendem, a linguagem muda de carácter: torna-se mais precisa e menos apaixonada, os sentimentos são substituídos pelas ideias e ela em vez de se dirigir ao coração passa a dirigir-se à razão.

O mesmo processo de racionalização emerge na escrita, equiparado por Rousseau aos [, ] três estados sob os quais se pode considerar a vida dos homens agrupados numa nação (Rousseau, 2001: 55). Em particular, enquanto num primeiro estádio a escrita, equivalente à linguagem das paixões, se constituía na pintura dos objectos, como seria o caso da mexicana e egípcia (Rousseau, 2001: 54), num momento ulterior passa a representar através de uma pintura dos sons, palavras e frases por sinais convencionais, como seria o caso da escrita chinesa (Rousseau, 2001: 54), para, num último momento, consistir na decomposição elementar dos elementos da fala ' Não se trata bem de uma pintura da fala mas da sua análise, refere Rousseau (2001: 55) a propósito deste. De assinalar que a escrita não é entendida como processo neutro de notação da fala, mas antes como um processo que altera e racionaliza esta, contaminando-a com a ausência de expressão ' de acordo com Rousseau (2001: 60-61): A escrita, que parecia dever fixar a língua, é precisamente o que a altera; ela não muda as palavras mas sim o génio das línguas; ela substitui expressividade por precisão. Quando falamos, transmitimos os nossos sentimentos, mas são as nossas ideias que transmitimos quando escrevemos. ( ) Os meios de que nos servimos em substituição desses [sons, acentuações, inflexões] estendem e alongam a língua escrita e, passando dos livros para o discurso [oral], influenciam a própria fala. Se disséssemos todas as coisas tal e qual as escrevemos a fala confundir-se-ia com a leitura.

Rousseau (2001: 64) reforça esse argumento, sugerindo mesmo que a notação dos acentos na escrita não denota os da fala, mas antes pressupõe o seu desaparecimento, registando a esse respeito:

Hoje não temos qualquer ideia de uma língua que se simultaneamente sonora e harmoniosa, quer nos fale tanto através dos sons como por meio das entoações. Se quem julgue poder substituir as entoações pelos acentos, engana-se; se recorre aos acentos quando a entoação foi perdida.

Assim, em suma, de acordo com Rousseau (2001), num estado em que linguagem e música não estavam ainda diferenciadas, são as paixões que agem na fala e na melodia e determinam o seu surgimento. Com o tempo, porém, e como resultado de um mesmo processo de racionalização, verificava Rousseau quer a separação entre melodia e fala, quer uma articulação progressiva de cada um dos domínios. Em particular, na música, em detrimento da melodia, ‘signo' das paixões, Rousseau dava nota de uma progressiva ênfase na harmonia, do domínio da razão e do cálculo. Não obstante, a relação mimética entre música e ‘paixões' (em primeiro lugar, da melodia, e subsidiariamente, da harmonia), é tida como convencional, sendo necessário a familiaridade com o idioma e o conhecimento do seu ‘dicionário' para ser sensível a um domínio em que é representado algo que por si não tem existência própria. Na linguagem, por seu lado, constatava Rousseau (2001) o progressivo aperfeiçoamento da gramática e articulação do pensamento e da escrita. Se, na fala, tal evolução resultava num carácter mais racional, preciso, ´frio' e ‘claro', afastando-se esta de uma origem na expressão das paixões, na escrita, manifestava-se na passagem de uma ‘pintura dos objetos', a uma ‘pintura dos sons' e se finalmente, à notação da análise e decomposição dos elementos da fala, concorrendo para a racionalização da fala, em vez de constituir-se no seu suporte neutro. Desse modo, verifica-se no entendimento de Rousseau (2001) um processo racionalização que, acompanhando a separação do racional e do mimético, com privilégio do primeiro, se apresenta na separação da linguagem e da música e na transformação em cada um destes domínios.

Comentário e excurso A relação entre a música e linguagem tem sido amplamente explorada na teorização da comunicação musical, quer do ponto de vista da interpretação, quer do ponto de vista da perceção musical. Desde logo, é com base na teoria generativa da linguagem (Chomsky 1956; 1957; 1965) que é desenvolvida a teoria generativa da música (Lerdahl & Jackendoff, 1983), instrumento referência na teorização de modelos de interpretação e na investigação empírica da perceção musical, designadamente, de música tonal (e. g., Clarke, 1985; 1988; Friberg, 1991; Martingo 2005; 2006; 2007a; 2007b; Repp, 1990; 1992a; 1998a; 1999; Smith & Cuddy, 2003; Todd, 1985; 1992; 1995) e da teorização da representação cognitiva da tonalidade (e. g., Lerdahl 1988; 2001). A pertinência teórica e pregnância empírica da teoria generativa, para além da demonstração da analogia dos princípios cognitivos no processamento da língua e da música, permitiria sustentar um entendimento da interpretação e receção musical como interiorização da estrutura musical. Por outro lado, se admitirmos, como Meyer (1956; 1967; 1973; 1989) propõe, que a emoção na receção musical assenta na realização ou frustração de expectativas, a que está pressuposto a familiaridade como idioma, e juntarmos a essa teorização a consistência intencional (Gabrielson, 1987; Repp, 1992a; Friberg & Batel, 2002), ou involuntária, mesmo (Repp, 2003), com que os intérpretes usam os recursos expressivos (desvios na dinâmica ou agógica), bem como a interiorização destes desvios pelos ouvintes (Repp, 1992b; 1995; 1998a; 1998b; 2003), seríamos conduzidos a um entendimento da interpretação e receção musical como um processo comunicativo assente numa linguagem estruturada e estruturante (Bourdieu, 1989), e da interpretação musical como ação racionalizada, na aceção de Weber (2003: 218), enquanto adequação de meios a fins. Como compreender nesse contexto, não obstante o pendor ora teórico, ora empírico dos dados avançados, a crítica do processo de racionalização e a imitação das paixões como paradigma expressivo colocadas por Rousseau? Num brilhante ensaio sobre a conceção de ‘natureza' e ‘natural' na teorização da ópera no século XVIII Vieira de Carvalho (1999: 72ss) mostra, porém, que a teorização da expressão, debate em que se situa também o Ensaio, não se deixa desvelar sem uma análise mais detalhada ' tratava-se a exigência do ‘natural' na comunicação musical, não da renúncia ao artifício, mas da sua completa interiorização ' uma art caché, que se fizesse esquecer a si própria (Vieira de Carvalho 2009a: 8), ou, dito de outra maneira, em questão estava não arrancar a máscara, mas antes colá-la à cara (Vieira de Carvalho, 1999: 129). [5] Vieira de Carvalho (1999: 115ss) sugere por isso que se reverte a mimesis em pensamento instrumental, propondo como chave para a compreensão dos argumentos o paradoxal entendimento de ‘natureza' como sinónimo de ‘negação da natureza':

( ) em meados do século XVIII ( ) a arte devia apresentar-se como sendo a própria natureza. Tratava-se, a partir de então, de fazer da dominação da natureza a aparência do seu contrário (Vieira de Carvalho, 1999: 117).

Desse ponto de vista, a exigência de uma expressão que voz às paixões reclamada por Rousseau constituiria um reforço do processo de racionalização que identifica na evolução da música. A contradição torna-se aparente, apenas, se considerarmos a transformação sociológica subjacente à teorização de Rousseau. Com efeito, o entendimento de música, linguagem, expressão e razão, e da relação entre estes, plasmada no Ensaio, bem como a polémica mais ampla que veio a ser conhecida como Querelle des Buffons, desenvolvida em Paris entre 1752 e 1755, revelam, ao mesmo tempo que dão forma, como nota Vieira de Carvalho (2009a: 11-12), a uma transformação estrutural na função e modelo comunicacional da ópera no século XVIII associados à emergência de uma esfera pública burguesa ' a passagem de um modelo de distanciamento a um modelo de identificação, e de uma função recreativa e representativa a uma função educativa.[6] Desse ponto de vista, segundo Vieira de Carvalho (2009a: 11-12), não se trataria no essencial a Querelle des Buffons de um confronto entre música francesa e italiana mas entre dois entendimentos da comunicação musical e da função social da música. No mesmo sentido, Qvortrup (2001: 113) salientando a incidência social da teorização musical de Rousseau, entende haver uma identidade entre o pensamento político e o musical, avançando mesmo, a outro passo, a teorização da música como metáfora da sua filosofia (Qvorturp 2001: xii).[7] Considerando essa dimensão social da teorização de Rousseau, designadamente, na assunção da íntima relação entre processos civilizacionais e musicais, e na tematização das transformação histórica da música a partir da ideia de racionalização, não surpreenderia a presença de Rousseau na teorização sociológica da música. Desde logo, encontramos em Adorno, cuja formação em música lhe permitiu, como Rousseau, empreender na composição, o processo de racionalização e a dicotomia mimesis-razão que, presente Ensaio, é transversal à teorização da modernidade em Horkheimer e Adorno (1973), bem como, em particular, à teoria adorniana da interpretação musical (cf. Vieira de Carvalho 2009b).[8] A este propósito, é notável que Adorno estabeleça uma relação entre a notação musical e o gesto expressivo no qual radica a obra a mesma relação que Rousseau estabelece no Ensaio entre a fala e a escrita ' se para Rousseau (2001: 60-61), não a escrita, ao invés de constituir suporte neutro liquida a expressão racionalizando-a, como também, não a notação dos acentos não substitui aqueles da fala, como emergem apenas no oblívio estes (Rousseau, 2001: 64), na teoria adorniana da interpretação musical (Vieira de Carvalho, 2009b: 83ss), o impulso mimético subjacente à obra musical é recuperável apenas pela interpretação, sendo irredutível racionalização e socialização da prática na notação, que fixa o gesto mimético no seu desaparecimento. Similarmente, Kaden (2003), apresenta a notação como processo de racionalização da prática musical que acompanha o processo de restrição de liberdade, regulação social das práticas musicais no quadro de análise do que constitui um dos campos de análise privilegiados da sociologia da música ' a interação e estruturas de interação que as práticas musicais evidenciam.

Em suma, a investigação empírica apresentada sobre interpretação e receção musical permite pensar a comunicação musical como fenómeno racionalizado, estruturado e estruturante que, para além da pertinência na analogia estabelecida no Ensaio com a linguagem, encontra similitude na familiaridade e convencionalidade da comunicação musical para que aponta Rousseau, revelando-se o entendimento deste da expressão como ‘signo' das paixões, considerada a refinada análise de Vieira de Carvalho à discussão em torno do ‘natural' na ópera do século XVIII, aparentemente desfasado desse carácter racionalizado da comunicação musical. Por outro lado, ao radicar em fundamentos civilizacionais a sua reflexão, Rousseau torna-se seminal para a estruturação da atual teorização sociológica da música, que convoca uma perspetiva ecológica, por oposição a um entendimento autorreferencial, no seu paradigma explicativo (cf. Vieira de Carvalho, 2003). Desse modo, se a pertinência do Ensaio resulta desde logo do facto de se constituir a obra como agente e reflexo de transformação do social na música à altura da sua produção, fica igualmente evidenciada a atualidade do quadro conceptual em que é estruturada a reflexão.


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