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EuPTHUHu0807-89672012000200025

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variedadeEu
ano2012
fonteScielo

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Galegos, galego-portugueses ou espanhóis? Hipóteses e contributos para a análise das origens e funções da imagem atual da Galiza e dos galegos em Portugal

Este estudo[1] tem por objetivo contribuir para a análise da imagem contemporânea da Galiza e dos galegos em Portugal partindo, em primeiro lugar, do imaginário português de fins do século XIX e primeiras décadas do XX[2]. Na segunda parte deste artigo, lançaremos algumas hipóteses que pensamos viáveis como contributos para ulteriores pesquisas, nomeadamente no que diz respeito à imagem da Galiza e os galegos das elites culturais portuguesas.

Metodologicamente, esta abordagem nutre-se de ferramentas e orientações desenvolvidas por, nomeadamente, Machado e Pageaux 2001 e Beller e Leerssem 2007. Assim, entendemos que as imagens, (i) apesar da fragmentação do conhecimento em curso, estão inscritas essencialmente na cultura de uma determinada comunidade ou país, não sendo, portanto, elaborações individuais; (ii) são basicamente ideias, crenças ou discursos que intervêm significativamente no relacionamento com o outro[3], tendo consequentemente uma importante influência no plano (inter)cultural (mas também económico, político, etc.); e, por sua vez, (iii) as suas origens e funções podem ser diversas, não são unívocas, podendo ser compostas, e apresentam uma alta resistência à mudança e/ou desativação. Interessa ressaltar, por último, os vínculos existentes entre a imagologia e a produção cultural; isto é, a elaboração e divulgação de imagens tem nos campos culturais um espaço privilegiado, tanto ao nível das heteroimagens como das autoimagens (cfr. Beller e Leerssem 2007: 26).

A imagem portuguesa da Galiza e dos galegos A imagem portuguesa da Galiza e dos galegos de fins do século XIX e primeiras décadas do século XX pode ser, em nossa opinião, entendida a partir da noção de imageme de Joep Leersem[4], porquanto apresenta uma composição dual, constituída de vários elementos antagónicos ou, no mínimo, incompatíveis.

No período fixado, e com raízes nos séculos anteriores, o imaginário português a respeito dos galegos estava presidido pelo que denominámos imagotipo negativo. A sua origem estaria vinculada no essencial ao fenómeno migratório galego em Portugal, em Lisboa nomeadamente[5]. A posição/função social que os galegos emigrados exerceram até, grosso modo, meados do século XX, vai alimentar repertorialmente o imaginário português. Deste modo, os galegos seriam grosseiros e brutos, ignorantes e avarentos, trabalhadores não qualificados, em ocasiões alcoólicos, ingénuos mas desconfiados, utentes de uma variedade linguística própria e de uma vestimenta peculiar, sem vínculos aparentes com Portugal; podem aparecer designados como gallegos, tuyanos ou vigoenses. A vitalidade deste imagotipo negativo aqui descrito ficou patente em inúmeros produtos culturais: desde a literatura, passando pelas caricaturas de Rafael Bordalo Pinheiro e a fotografia, até ao incipiente cinema português das décadas de 30 e 40[6]. Um exemplo notório (e controverso na altura, aliás) de uma ativação deste imagotipo é o seguinte excerto das páginas d'O Paizde 1912:

Todavia, o mais refinado ladrão n'esta especialidade é o gallego tasqueiro, taberneiro carvoeiro e merceeiro. Este figurão vindo do norte, cheio de ronha e porcaria, é aceite em Lisboa como homem honesto e de trababalho [...] Feitas as contas e bem analysado á luz da critica clara, nem ele nunca foi honesto, nem respeitador das nossas leis, nem grato á hospitalidade que lhe dispensamos, nem util por qualquer motivo ao nosso meio industrial [...] O gallego vulgar, o que anda para ahi em certos misteres, é uma especie de judeu do que respeita a negocio. Se a sua actividade se encaminha para a taberna ou para o café, o gallego falseia todos os productos que vende; assim como se compraz em nucna dar a medida cabal dos liquidos vendidos nem o peso certo das cousas que se lhe compra [...] Além d'isso, na maior parte dos casos é imoral e porco, uma espécie de toupeira que tanto fura por um montão de esterco como por outro solo mais hygienico [...] A questão é de dinheiro, e o gallego, a trôco d'este metal presta-se a tudo (Moraes 1912).

Paralelamente, no último terço do século XIX e primeiras décadas do XX, a imagologia portuguesa a respeito da Galiza e dos galegos experimenta uma complexificação notável ao despontar um novo imagotipo que denominámos de afinidade. Em sintonia com a oitocentista planificação galeguista de, por exemplo, Manuel Murguia (interessada em vincular-se culturalmente a Portugal [7]), Teófilo Braga, nomeadamente, Leite de Vasconcelos, Oliveira Martins ou Alexandre Herculano (Torres 1999a), vão introduzir na sua produção a Galiza como espaço geo-humano individualizado (a respeito do espanhol/castelhano), pondo em valor uma série de elementos de variada natureza, designadamente a respeito da vinculação entre a Galiza e Portugal: identidade/afinidade de língua, alma, passado, raça, paisagem, etc.[8]; contestam, por sua vez, o imagotipo negativo.

A partir da trajetória do enclave galego de Lisboa tentámos demonstrar como por volta da década de 20 do século passado, o imagotipo negativo passa a partilhar o imaginário português com uma nova visão da Galiza e dos galegos (remetemos novamente para Pazos 2012). As tomadas de posição de destacados membros da colónia de Lisboa, ao descobrirem que a sua origem galega poderia retribuir-lhe outros capitas além do económico (capital social e cultural, mormente), indicam, em nosso entender, que uma outra forma de imaginar a Galiza e os galegos, em concorrência com o imagotipo negativo, cristaliza em Portugal seguindo o caminho traçado por grupos e agentes galegos e portugueses interessados, por distintos motivos, em fortalecer as relações galego- portuguesas. Neste sentido, são vários os eventos que, com maior ou menor sucesso, têm lugar neste período (até 1936) encenando os vínculos galego- portugueses (vid. Marco 1996: 201-202). Aqueles contribuem necessariamente para uma exposição da Galiza e os galegos, por exemplo na imprensa periódica, em termos bem afastados do imagotipo negativo (cfr. Cunha 2007). É nestes estado de coisas que se entende, por exemplo, a que talvez seja a intervenção mais explícita e incisiva a impugnar o imagotipo negativo neste período; afirmava Alfredo Guisado, outrora órfico, desde as páginas do Diário de Notícias de 1929:

Como conheço bem a Galiza e como conheço tambem o que são e o que valem os galegos, lamento que, por vezes, nós, portugueses, sejamos tão desagradaveis para com eles.

Sim, porque temos de confessar, a palavra ‘galego' anda constantemente cercada no nosso vocabulario dum grande desprezo e dum profundo ridiculo. Sucede muitas vezes, quando se chega ao insulto, atirar com essa palavra por se supôr que ela encerra uma das mais agressivas e violentas ofensas. até tem acontecido aparecer nas colunas de alguns dos nossos diarios como o termos encontrado que melhor pode amesquinhar determindado cidadão.

[...] Ridicularizar, portanto, os galegos, pela sua lingua, o mesmo será que ridicularizar-nos a nós proprios, falando do nosso glorioso passado literario (Guisado 1929).

Resumindo, as intervenções de destacados membros do enclave galego e de membros das elites culturais portuguesas e galegas, em sintonia com a tomada de posição de Alfredo Guisado[9], evidenciam, em nosso entender, uma nova forma de imaginar a Galiza e os galegos a funcionar socialmente, efetivamente. Este novo imagotipo, não é representação exclusiva de um grupo humano, como o negativo; é representação de indivíduos (os galegos em geral) e, especialmente, da Galiza (território com caraterísticas próprias). Por outro lado, enquanto o imagotipo negativo está vinculado ao fenómeno migratório galego em Portugal e é ativado no espaço social português sobretudo para provocar o riso, o imagotipo de afinidade responde ao labor planificador de galegos e portugueses e pode funcionar, por exemplo, para ativar as relações entre a Galiza e Portugal no plano cultural[10] ou servir de plataforma aos imigrantes galegos para aquisição de outros capitais além do económico.

Da invisibilidade e a imageme: algumas hipóteses Quanto e quê desta imageme, desta imagem lusa da Galiza e dos galegos ficou após a implantação do Estado Novo e da Ditadura franquista com o consequente apagamento das possibilidades de intervir cultural e politicamente de muitos dos interessados no contacto galego-português[11], de muitos dos empenhados na ativação do imagotipo de afinidade, é questão de difícil resposta. Apenas podemos lançar aqui algumas hipóteses que no melhor dos casos poderiam contribuir para um programa de pesquisa futuro.

Em primeiro lugar, como hipótese, cremos que hoje, nos inícios da segunda década do século XXI, a análise da matéria proposta deverá equacionar primeiramente a invisibilidade da Galiza e os galegos desde Portugal no meio de um emergente todo espanhol. Após a queda dos regimes autoritários e o posterior ingresso dos dois estados, o português e o espanhol, na hoje denominada União Europeia, o modo de relações intra-peninsulares parece ter mudado significativamente. Neste panorama, apresentam-se particularmente substantivos os indícios que apontam para uma modificação relevante na posição do estado vizinho e os seus cidadãos no imaginário português. Aparentemente, face a uma imagem historicamente marcada pelo antiespanholismo ou o fantasma ‘iberista' (Lourenço 1994: 82)[12], o imaginário português atual parece nutrir-se também de uma aberta admiração, não mas também, cultural para com a Espanha[13]. Repare-se, por exemplo, na irrupção vertiginosa da língua espanhola no sistema de ensino obrigatório português desde meados da década de 90[14]; dado este que deverá destacar-se em futuras pesquisas imagológicas hispano-portuguesas, e igualmente no relativo às galego-portuguesas.

Por outro lado, o facto de Portugal (os portugueses) se imaginar(em) a si próprio(s) como uma cultura homogénea, espaço histórico cultural sem ‘diferenças' em palavras de Eduardo Lourenço (1994: 82), propenso a equações do tipo 1 país = 1 capital = 1 cultura = 1 língua = etc., aparentemente pode ter contribuído para a menor visibilidade da heterogeneidade doutros estados, neste caso a do Estado espanhol onde, como é sabido, se insere a Galiza.

Parece, em todo o caso, inevitável atender ao relacionamento hispano-luso, à imagologia hispano-lusa no estudo da imagem portuguesa da Galiza como mais um fator não prescindível.

Paralelamente, as investigações a fazer sobre a imagem atual da Galiza e dos galegos em Portugal terão necessariamente, em nossa opinião, de problematizar a linha de análise, preponderante no âmbito dos estudos das relações galego- portuguesas historicamente consideradas, que entende estas como umas relações assimétricas (cfr., p. ex., Villares 1983, Vázquez 1995, Medeiros 2003 e 2006 ou Tarrío 2004)[15] e questionar se a dita assimetria está direta ou indiretamente vinculada à invisibilidade antes aludida.

Em segundo lugar, entendemos que a imagem atual da Galiza em Portugal também pode ser perspetivada, como hipótese de trabalho, a partir da imageme descrita mais acima. Assim, observamos indícios, na atualidade, de vínculos entre o imaginário português a respeito da Galiza e dos galegos (e consequentemente o modo de se relacionar com estes) e o imagotipo de afinidade referido. Assim, a ideia ou crença da Galiza e dos galegos como comunidade e indivíduos que mantém algum tipo de afinidade com Portugal e os portugueses parece funcionar culturalmente, socialmente, pelo menos para algumas elites culturais portuguesas. Apesar dos entraves que contrariaram ostensivamente as possibilidades de (inter)comunicação entre galegos e portugueses durante várias décadas do século XX[16], podem ser encontrados sinais de alguma vigência deste imagotipo em, por exemplo, produtos literários com presença repertorial galega, ou nos discursos políticos emanados de instituições galego-portuguesas.

Em 1999, Elias Torres analisava a matéria galega em quatros romances portugueses da década de 90[17] concluindo que a Galiza ficcionalizada estava:

esvaída de identidade comum a Portugal, híbrida de ruídos e sombras sobrepostos que impedem enxergá-la com clareza, vai aparecendo a olhos do leitor como qualquer coisa próxima mas alheia, nutrida de pequeninas pegadas partilhadas a ambos os lados do Minho, mas imersa numha confusom, onde interessa o tópico e o exotizante a custa da realidade, em obras de expressa índole documental na sua diegese [...] É difícil resumir a perspectiva que estes livros oferecem da Galiza como entidade lingüística e cultural. O contacto galego- português fica presidido pola distáncia (Torres, 1999b: 304-305; itálico e negrito no original).

Assumindo a análise anterior, poderíamos citar o Prémio Maria Ondina Braga de 2011, O eremita galego (Rocha, 2011), onde a representação da Galiza, sem deixar de veicular uma realidade próxima (uma das personagens, p. ex., explicita que entre galego e português, A diferença também não é muita), aparece toldada desta confusão, onde mistério, morte e religião surgem como elementos centrais. Diga-se de passagem que neste romance, além dos óbvios paralelismos com a trágica história do eremita de origem alemã Man, parece pairar a mediática emergência do Caminho de Santiago e os discursos à volta dele elaborados (cfr. Torres 2011).

Neste sentido, o estudo da imagem portuguesa da Galiza e dos galegos, terá também de atender, em nossa opinião, ao ruído que em não poucas ocasiões preside o relacionamento galego-português. Exemplificamos: em Portugal, temos assistido ao singular encontro entre turista ou viajante galego (muitas vezes castelhano-falante) e empregado de mesa ou funcionário do posto de turismo em que o primeiro, ativando o seu imaginário, se expressa no seu galego(nhol) e o segundo, fazendo o próprio, em portunhol. Além do caricata e até risível, a situação demonstra os défices que galegos e portugueses acumularam durante as últimas décadas ou, dito por outras palavras, é expressão de discordâncias imagológicas dos dois lados do rio Minho[18].

Outro âmbito de pesquisa onde o imagotipo de afinidade teve e tem, presumivelmente, uma certa vitalidade é o relacionado com a nova arquitetura institucional surgida após a entrada dos dois estados na União Europeia. A partir dos inícios da década de 90 do século passado, vão tomando corpo, de forma pioneira no contexto peninsular (cfr. Herrero 2000: 270), duas instituições transfronteiriças galego-portuguesas: a Comunidade de Trabalho Galiza-Região Norte de Portugal e o Eixo Atlântico do Noroeste Peninsular. Os processos de constituição assim como o desenvolvimento posterior de ambas as instituições apresenta-se acompanhado, nos casos observados, de discursos que recorrem à ideia ou crença, elaborada desde o século XIX como vimos, de afinidade de variado tipo entre a Galiza e Portugal. Exemplificando: num dos primeiros documentos fundacionais da primeira das instituições, é notório o recurso a esta ideia quando se alude às históricas afinidades socio- económicas, culturais e lingüísticas entre a Galiza e a Região do Norte de Portugal (Xunta de Galicia e Comissão de Coordenação da Região Norte 1991: 1).

Mais expressivamente, o recurso a estas históricas afinidades é o elemento central do discurso em Galiza, Norte de Portugal: duas regiões, uma euro-região construindo a Europa dos cidadãos, uma das publicações do Eixo Atlântico (2004). O primeiro dos três apartados de que é constituído o livro, Duas regiões europeias, desenvolve alguns dos elementos que enformam o imagotipo de afinidade: o passado / a história, a língua, a cultura popular, a paisagem, etc. [19]. Nestes casos, o imagotipo de afinidade, quanto às funções, parece estar ao serviço de políticas públicas de planificação ( não estritamente cultural mas) económica, no âmbito das políticas emanadas da União Europeia, mostrando assim a diversidade de funções que esta imagem pode efetivamente desenvolver desde a sua elaboração mais de um século.

Por último, e voltando à imageme, caberia ainda pergunta-se sobre o percurso do aqui denominado imagotipo negativo. Em função dos dados manejados, tudo parece indicar que esta visão da Galiza e dos galegos estaria hoje fossilizada na fraseologia do português europeu. Assim, ditados do tipo Trabalhar como um galego, Debaixo de galego, um burro, Cinquenta galegos não fazem um homem ou Ver-se galego[20] teriam hoje no espaço social português uma ocorrência menor ou residual e estariam esvaídos da sua função humorística, até porque o fenómeno migratório galego em Portugal deixou de ter continuidade em meados do século XX.

A partir do até aqui exposto e a modo de conclusões, entendemos que as hipóteses aqui levantadas podem contribuir para um programa de pesquisa futuro, cujas questões investigadoras sejam, resumidamente:

a) Qual é o grau de (in)visibilidade da Galiza e dos galegos no imaginário português atual? Como e quanto é condicionada esta (in)visibilidade pela radical mudança na posição da Espanha e dos espanhóis no imaginário português nas últimas décadas? b) Em que medida a atual imagem portuguesa da Galiza e dos galegos tem as suas raízes, nomeadamente no relativo ao imagotipo de afinidade, nas elaborações fixadas por galegos e portugueses entre o último terço do século XIX e as primeiras décadas do XX? c) E em seguimento da questão anterior: quais são as (novas e potenciais) funções da imagem da Galiza e dos galegos (distancia e/ou aproxima) no Portugal atual?


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