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variedadeEu
ano2012
fonteScielo

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O Estado e a Cultura: coisas de que os homens (não) falam

1. Num texto admirável, Estas Coisas de que os Homens Falam”,[1] Fernando Gil fala-nos, com a acústica inconfundível do seu pensamento, da importância das mediações e do modo como estas, nalguns casos, como aconteceu em 1997 com a morte da princesa Diana de Gales, podem dar origem a uma eficácia da compaixão. Estaríamos assim perante uma ideia que se torna sensível graças a uma imagem (ou a uma sucessão de imagens) e que acaba, no limite, por se con- fundir com a própria ideia que a tornou sensível. Quer dizer nós não teríamos imagens da piedade, mas sentaríamos a piedade por causa das imagens.

Apresentando dois breves exemplos: o retrato de Lewis Pane, um condenado à morte que exibe um rosto de uma serenidade difusa, resistente e inquietante, na fotografia de Alexander Gardener, de 1865 comentada primeiro por Barthes e depois Rancière (1) Ou, bem mais recentemente, a fotografia de Kevin Cárter (1993) que a redundância das mediatizações glorificou, ao acentuar a dupla tragédia que a caracteriza: a pequena criança moribunda, no deserto do Sudão, dobrada sobre si e uma ave de rapina a escassos metros. Entre a moral da estória (o fotógrafo vencedor de um prestigiadíssimo prémio acabou por se suicidar) e uma História sem moral (a indiferença do olhar coletivo perante o espetáculo catastrófico do mundo a ruir, tal como uma linguagem que se desmorona), abre-se a brecha da compaixão.

É muito difícil manifestarmos interesse pelas coisas relativamente às quais não dispomos de mediação, pois essa é a condição (como esclarece Fernando Gil) para elas pertencerem às nossas vidas, tornarem-se próximas e partilháveis, e assim serem comparadas a pontes entre a existência individual e o que nos é contado. Para que alguma coisa faça parte de mim eu tenho que a ir buscar sob a forma de narrativa. A esfera da proximidade produz os seus efeitos, um dos mais importantes é a apropriação que se manifesta pela vontade de citar. Como, por exemplo, acontece agora com esta proposição da Ética de Espinosa: Os homens podem diferir em natureza, na medida em que são dominados por afeções que são paixões; e, ainda nessa mesma medida, um e o mesmo homem é variável e inconstante”.[2] Esta diferença e a alteridade relativa a cada um, não explica apenas pequenos ou grandes desvios de humor, como o prazer ou o sofrimento provocado pelas imagens e pelo nível de conhecimento individual com que as encaramos. Pois como salienta o filósofo, na demonstração da sua proposição, tantas espécies de cada afeção, quantas são as espécies de objetos pelos quais somos afetados.

Não é a nossa natureza que explica o que nos acontece, mas a natureza das coisas externas combinadas (em composição) com a natureza de cada um.

Do mesmo modo, a apropriação de uma ideia por uma imagem, levaria à transformação de uma coisa interna numa coisa externa, logo visível, propícia à mediação e, nessa medida, capaz de produzir um sentido pessoal, garantir uma atribuição de significado que se torne ação e não contemplação. Desse agir faz parte a esperança redentora (que Fernando Gil evoca como uma espécie de condição pós-trágica). A nossa possibilidade redentora passaria então, na minha hipótese, por uma ética das imagens.

Aristóteles, na Poética (1450a), observa que o pensamento e o caráter são as duas causas das ações. O enredo é a imitação de uma ação. A mediação proporciona enredos, imita ações, substituías por ficções. Pensar a compaixão é assim ter compaixão, o que equivaleria a deixar-nos numa situação de imagem.

Imaginarmo-nos naquela imagem.

Perante os filmes, as fotografias, as televisões e os ecrãs em geral, o homem contemporâneo experimenta agora uma orfandade essencial, algo talvez comparável a um vazio psicanalítico em relação às origens. Por isso é que o texto de Fernando Gil, ao ser suscitado pelo tema dos milenarismos, recentra a cultura na dificuldade em lidar com o desfasamento perturbante, tanto maior quanto mais longe se está dos centros da modernidade, entre a contextualização tribal no imediato e a universalidade abstrata da globalização (Gil, 1998: 313).

Passar pela imagem, ou pelo objeto artístico, em vez de a transportar em nós, equivale à incapacidade de fazer da imagem passado. reside em grande parte o drama de uma atual orfandade das origens. Ou como constata Godard a propósito da televisão, estamos cercados pela produção de esquecimento. O pensamento está ameaçado pela indiferença. Sem lugar ao enredo, sem lugar à imitação aristotélica, a imagem torna-se fraudulenta. Deparamos com o contrário da imagem intolerável de que nos fala Rancière. Fora do jogo da culpabilidade e do testemunho a imagem desliga-se do vestígio.[3] Ao perder a ligação àquilo que a tornava de facto intolerável, fosse o sublime ou o sofrimento, a imagem aliena- se. Inviabiliza qualquer tipo de eficácia, pois deixa de haver lugar ao amor no quadro da relação estética. Não nos referimos aqui aos fragmentos de um discurso sobre o amor (Barthes), compatível com a reconfiguração do eu suscitada pelos atributos do Romantismo e pela vertigem de uma enciclopédia pessoal, mas ao excesso, tal como Espinosa o enuncia na sua proposição XLIV da Ética, livro III: O amor e o desejo podem ter excesso. [4] A dimensão estética, o lugar da arte, corre hoje um sério risco de se (deixar) ficar no imediato da contextualização tribal, e dispor-se a uma amplificação mediática que apenas lhe acentua os contornos, que a torna folclórica, hedonista, que a banaliza baralhando a indistinção Pop entre a cópia e o original, ele próprio de si uma réplica, na prateleira de um qualquer supermercado.

Portugal tende a torna-se num lugar de passagem (e de emigração, como agora se volta a dizer), em vez de ser um destino (tal como poderíamos entender o país, à maneira de Eduardo Lourenço). Em discursos recentes sobre este país navio perpassa por vezes o fantasma de uma encarnação do mal à qual, recorrendo a uma metáfora pessoana, um super Camões seria capaz de fazer frente. Tanto Camões como Pessoa escrevia Jacinto do Prado Coelho cantores da pátria, são poetas da ausência. Poetas do que foi ou do que poderá vir a ser (Coelho, 1978:308). Conter essa tendência para nos encontrarmos num local de passagem, (em vez de sermos passageiros de uma longa viagem, como o soubemos ser) implica, em termos culturais, a valorização ética do que em nós é origem e genialidade. Paradigma de um gesto artístico fundador, por outros identificado e vivenciado. O cinema de Manoel de Oliveira ou de Pedro Costa, a arquitetura de Siza ou de Souto Moura, alguma da nossa literatura (de Agustina a Saramago, de Vasco Graça Moura a Herberto Hélder), são disso mesmo exemplo.

2. Nas duas últimas décadas a promoção dos nossos valores culturais tem sido fomentada, sobretudo a partir de duas conceções políticas. Uma, de feição tecnocrática, assente numa perspetiva redutora de gestão das artes, limita-se a fazer destas objeto de curiosidade turística mais ou menos espalhafatosa. Com frequência, os resultados decorrentes deste entendimento traduzem-se numa espécie de sacralização da representação (mediática) do objeto artístico, fundada numa obsessão demagógica por estatísticas, quantidade de exibições, respostas dos públicos.

A outra (que não é inconciliável com a anterior) consiste numa euforia ideológica, monopolizadora da administração simbólica da Cultura em nome de supostos grandes valores da tradição da esquerda europeia, que na prática procuram impor um consenso totalitário, logo negação da instabilidade utópica que George Steiner tanto valoriza quando diz que a esperança é a gramática (Steiner, 2001:106).

A gramática utópica das linguagens artísticas articula espaços improváveis de um futuro que se desloca no presente através de uma cartografia do desconhecido (Steiner). É esse desconhecido que verdadeiramente importa. ele traz essa condição da Estética contemporânea onde a arte implica a realidade, reclamando-a como uma matéria prima, para melhor nos poder falar, sempre de um mundo deslocado, de uma universalidade em crise de representação, de uma entidade ontológica de novo no encalço do seu imaginário individual.

Esta esperança na arte, não depende em primeira instância de programas de apoio governamentais, nem de diretrizes de partidos que promovem a criação como veículo doutrinário e exibem os autores como troféus nas cíclicas disputas eleitorais. Depende antes de mais da conjugação entre educação e vontade de poder ( Nietzsche).

A este propósito, valeria a pena examinar os argumentos que pretendem justificar o modelo civilizacional da chamada democratização cultural. Embora esta se exiba cada vez mais como equívoco. Um equívoco, alimentado pelo Estado e por boa parte dos interesses institucionais privados na Cultura. No que toca às artes plásticas, observe-se, por exemplo, a moribunda Fundação Elipse com ligações ao Banco Privado de João Rendeiro ou a cedência da coleção Berardo ao Estado via Centro Cultural de Belém (CCB),[5] com toda a lógica de dependências e clientelas daí decorrentes, ambas realidades típicas de uma falácia animada por interesses especulativos. Estes, nada tem a ver com sinalização de instrumentos simbólicos que permitam encadear histórias e a sua duplicidade, na esteira do que Godard designa como a fraternidade das metáforas, e que convoca cada um na diversidade e inconstância das suas paixões a aproximar-se de si, e, tanto quanto possível de outros.

Em vez disso, o que temos é a substituição da emoção estética - e do trabalho de solidão que esta exige, afinal a base da mundividência comum ao gesto artístico e à fruição hermenêutica -, pela decoração cosmopolita, pela instantaneidade de formas de estar em vez da insistência em formas permanecer.

O espectador, o visitante, o leitor, tropeça com frequência na trivialidade do objeto artístico, mascarado por um protocolo de dignidade (a sala do museu, o auditório ou festival onde se exibe o filme, a sala de teatro onde a performance decorre), em vez de participar na construção intelectual necessária para que o acontecimento artístico seja apreendido na sua enigmática genealogia. Em suma, confundir a promoção da cultura com a promoção das instituições culturais é um erro enorme, mas talvez sem correção possível.

A discussão promovida pela agenda jornalística relativa ao facto da Cultura dever, ou não dever ser tutelada por um ministério, constitui um bom exemplo desta artificialidade. Curiosamente, em 2002 aquando da campanha para as legislativas, os dois principais partidos que alternam a presidência dos sucessivos governos concordavam que devia ser um ministério a tutelar a cultura. As razões eram diversas (e não podemos entrar agora na sua análise detalhada), porém os motivos apontados na ocasião pelo PSD eram basicamente os seguintes: a cultura deve um ministério não tanto por uma questão de operacionalidade (...) mas por uma questão de dignidade (fórmula que na recente campanha não foi oficialmente equacionada). Esta mesma tese acabou por ser agora veementemente defendida por alguns especialistas (conotados com a esquerda designadamente em declarações ao diário Público por ocasião da campanha eleitoral de para as eleições legislativas de junho de 2011).

Diferente era a posição do economista Augusto Mateus, personalidade de grande notoriedade na área socialista e principal responsável por um marcante relatório sobre o setor cultural e criativo em Portugal.[6] Face a esta diversidade de questões, filosóficas e sociais, em que ficámos? Na exposição apresentada pelo Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Às Artes Cidadãos, [7] protagonizada por artistas nascidos depois de 1961, ano em que surgiu o Muro de Berlim, via-se uma peça do coletivo Claire Fontaine: um néon, (que podia ser observado junto a um dos muros do parque que envolve o museu) com a frase Capitalism Kills Love. A peça funcionava como símbolo de um gesto artístico e a sua ambiguidade textual remetia para um amor assassinado, e/ou para o amor como assinatura, a selar uma declaração contra o capitalismo porventura mortal. Em qualquer das hipóteses trata-se de trazer ao quotidiano de uma realidade urbana (neste caso o Porto), com as suas aparências e contradições, a ilusão de uma frase irredutível.

Serve este exemplo para situar o papel do Estado na Cultura, caso seja aceite a metáfora aqui proposta: o ministério (a instância política) deve escolher entre o capitalismo e o amor, ou deve, como muitos entendem que devia ser, deixar essa escolha para os cidadãos (os verdadeiros entes políticos)? E nesse caso não serão os cidadãos (isto é, os espectadores) essa terceira instância, onde um mal estar se instalada pelo diferendo entre o ato de assistir (participar no espetáculo) e a atitude emancipadora de olhar para ele. Em suma, a dignidade encontra-se em primeiro lugar na criação, e depois nas instituições que a devem servir, sem subserviência nem dirigismo.

Um ministério podia ser útil se, em vez de uma atividade voltada para os programas de atribuição de subsídios, para a legitimação ritual das organizações que atribuem prémios, para o exercício do poder de escolher quem o representa nas fundações, para o estabelecimento de uma rede interna de pequenos poderes, (que vai da nomeação dos diretores gerais ao diretores artísticos, e por fora), começasse, isso sim, por concretizar uma estratégia coerente e credível de preservação dos patrimónios e de estímulo à difusão e circulação plural da criação artística contemporânea. O desafio às políticas culturais no caso de um país como Portugal passa por fazer delas um instrumento de irradiação, uma plataforma de permutas, uma garantia de pluralidade esteticamente exigente.

3. A questão da promoção da cultura não pode ser equacionada a partir de um lugar exterior, falsamente utópico e falsamente político, que seria supostamente o espaço técnico da administração da arte pelos especialistas.

Desde a década de 90 do século passado que a cultura experimenta uma espécie de limite histórico do qual decorre o desconforto terrível de se lhe aplicarem modelos (de leitura, de difusão, de codificação) que não correspondem à experiência que dela é feita. Um dos sintomas mais interessantes disso mesmo consiste na sua utilização como meio de diagnóstico para uma crise civilizacional que, sabemo-lo agora, se tornou muito mais grave e assustadora do que se podia imaginar uma dúzia de anos atrás. Neste momento temos a certeza, parafraseando Herman Hesse (pela via de uma sedutora epígrafe de Eduardo Lourenço), não existir em parte alguma uma unidade, um centro, um ponto à volta do qual a roda gire.

Esta perda de unidade é, em primeiro lugar a perda de unidade da cultura como sistema que permitia conectar saberes e disciplinas e organizar uma espécie de entretenimento erudito que, consoante fosse socialmente alargado, melhor garantia uma dinâmica de progresso e qualificação. Oscilando entre o consumo e a melancolia o sujeito culto da atualidade parece relegado à situação minoritária de um gosto excedentário.

Mas a ausência de um centro, a desmultiplicação de géneros, a homogeneização das atitudes estéticas, a par de um domínio cada vez maior da economia pela cultura, tem como principal consequência uma perda de autonomia que passa em muitos casos a fazer parte do fenómeno artístico, o qual é sempre uma crítica da linguagem, e por consequência do sujeito.

No âmbito da aqui mencionada exposição Às artes, cidadãos! a realizadora de cinema Hito Steyerl faz uma constatação que corrobora perfeitamente esta ideia, ao afirmar que com exceção do trabalho doméstico e de assistência, a arte é a indústria com o maior número de trabalhadores sem salário”.[8] Claro que a arte contemporânea também se alimenta de migalhas de uma redistribuição que opera a partir das grandes refinarias da cultura, esse petróleo em deflação, exemplificadas nos mega-museus globais, espécie de Guggenheim planetário. Esta situação, praticamente impensável nos gloriosos anos 80, é ela própria uma consequência da banalização artística e de uma diluição da estética na antropologia urbana. Depois de ter sido um sistema hierarquizado no classicismo, a arte deu lugar a todas as indefinições e fez dessa uma das suas principais qualidades distintivas. As outras duas seriam manter a prerrogativa sobre a ficção (o que deixou ser completamente verdade) e elaborar uma ontologia do imaginário (no sentido de possibilitar a identificação individual equivalente ao que na conceção freudiana remete para uma relação de semelhança relativa à que ocorre com o sonho). A arte como se fosse a vida.

Face a esta última anotação, e na moldura sociológica atual, a promoção da cultura fica restrita a uma lógica de mercado. Não basta comprar. É também necessário saber o que fazer com os bens (neste caso culturais) que se consomem. Até porque o contágio nocivo do termo promoção, associado a toda uma gama de descontos, saldos e feiras, com os media a cobrirem a celebração pelas minorias ideológicas dos grandes acontecimentos oferecidos às maiorias sociológicas, pode ter um desfecho: a desvalorização do sujeito. Ou, como escreve Eduardo Lourenço (1988:61), ao analisar o nosso desacerto com a Europa, ou o desacerto dela connosco, a Cultura é o sujeito como realidade. Aquilo a que assistimos hoje é à perda da razão iluminista, qual ferida narcísica, que pode suturada pelo regresso ao texto, a cada um dos textos, tomados subjetivamente por necessários. Nesse caso, os homens falariam talvez de outras coisas e a compaixão podia, finalmente, desembaciar as imagens.


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