Música como mundividência da estaticidade medieval à contemporânea
Numa reflexão sobre técnica e forma na música, Ligeti (1965: 5) sugere que as
linguagens tonal e serial encerram na sua origem o princípio da sua dissolução.
Assim, de acordo com Ligeti (1965: 5), é na alteração de notas em sensíveis na
musica ficta que tem origem, não só a harmonia funcional e, com esta, a
modulação, a forma e recursos expressivos que lhe estão associados, como também
a sua dissolução, com neutralização da funcionalidade tonal pela generalização
do princípio da nota sensível à harmonia e melodia. Do mesmo modo, quando se
aplicam à forma os princípios seriais introduzidos para ordenar o material
desprovido de funcionalidade tonal, desvanece a organização serial das alturas
que havia dado origem ao processo (Ligeti, 1965: 5). Com base nesses
pressupostos, e em considerações sumárias sobre íntima relação entre a
funcionalidade dos materiais e a direccionalidade da música nos modos
medievais, na tonalidade, e na atonalidade e serialismo, procurar-se-á mostrar
que a transformação de tais materiais e direccionalidade é acompanhada de uma
mutação da teorização cultural da temporalidade, evidenciando assim a técnica e
materiais musicais como caso particular do pensamento cultural.
Modos e tonalidade
Os modos medievais, caracterizar-se-iam designadamente, segundo Schulenberg
(1986: 306), por uma lenta e fragmentária teorização, reduzida funcionalidade '
tendo as notas finalis e tenor ou tom de recitação como dois pontos focais ', e
natureza melódica.[1] Tal conceção melódica dos modos, persiste mesmo na
composição polifónica, em que se verifica uma relativa liberdade individual das
partes, de forma que Schulenberg (1986: 308), se refere à polifonia do séc. XVI
como um espaço que, ao contrário da composição tonal, cuja unidade vertical é
evidenciada pelo baixo cifrado, não é coerente nem integrado. Com efeito,
escreve Schulenberg (1986: 322), a polifonia pré-tonal tenderá, após redução,
a revelar um campo estático de alturas dentro do qual as linhas gravitam, sem
progredir para, ou a partir de, alguns pontos focais.[2]
Partindo também da melodia, mas analisando o estilo a partir das curvas
formadas por esta, Jeppesen (1970: 49-50) aponta para algumas tipologias que
diferencia pela posição relativa do clímax e decréscimo de tensão,
especificando, em particular, uma em que o clímax é colocado no início e
seguido por um longo e gradual decréscimo de tensão, uma outra em que o clímax
é colocado a meio da frase, com um equilíbrio entre a parte ascendente e
descendente da melodia, e uma terceira, com um lento e longo crescimento de
tensão conducente ao clímax no final da frase, e seguido por um abrupto
decaimento da curva. Tais tipos de frase emergem em períodos históricos
diferenciados, associando Jeppesen (1970: 49-50) o primeiro ao cantochão, o
segundo, a Palestrina em particular, e o terceiro ao género dramático de Bach.
Embora Berger (2008: 12) contraponha que está patente em Bach uma dupla
temporalidade ' a linearidade relativizada por uma conceção cíclica do tempo
(seen from the absolute perspective of eternity), a progressiva deslocação do
clímax melódico do início, para o meio, e mais tarde para o final da frase
seria reflexo da evolução natureza e funcionalidade do próprio material
musical.[3] É nesse sentido que aponta Berger (2008: 10), segundo o qual, num
processo que remonta ao final do séc. XVII, designadamente, a Corelli, é no
estabelecimento de um centro tonal, e em particular, no afastamento e na
simétrica pulsão para esse centro na modulação, que reside a origem de uma
direccionalidade sem precedentes à música.
Também Tarasti (1984: 305) sugere que, ao invés da música do Renascimento, em
que um acorde podia ser seguido por qualquer outro, a música barroca inicia uma
direccionalidade, ordem na sucessão e, em suma, um programa, apresentando-se
o esquema harmónico I-V, V-I como paradigma do esquema sintático que viria a
generalizar-se no classicismo, transformar-se no romantismo, e constituir-se em
princípio fundamental na prática musical e discurso musicológico ' a
narratividade, cujo modernismo do séc. XX procura neutralizar, em favor do
princípio brechtiano do estranhamento (anti-illusionism) (Tarasti, 1984: 297).
[4] No mesmo sentido, Ligeti (1965: 16) salienta que na música tonal, quer a
pulsação métrica, quer a relação de um determinado elemento com o que o precede
e o que lhe sucede, permite ordenar os eventos, por vezes paralelos, ou
localmente contraditórios, numa direção única ( ) no tempo, o que aproximaria
a música da linguagem.
Não obstante, Ligeti (1965: 17) identifica já em Beethoven processos que, sem
paralisar o fluir do tempo, criam uma dissociação' deste, ao apresentar
simultaneamente o sucessivo.[5] Por outro lado, nota Kramer (1981: 541), com a
profusão do cromatismo e modulação na música do final do séc. XIX, o clímax é
diluído, eventualmente adiado ou não materializado, sendo a definição tonal
remetida para níveis estruturais mais elementares e a função de prolongação
tendencialmente assegurada pela superfície melódica.
Atonalidade e serialismo
Do mesmo modo que Ligeti (1965: 17), que apresentava a montagem em Stravinsky
como generalização da simultaneidade do sucessivo pontualmente identificada em
Beethoven, Kramer (1981: 541-2) propõe que, com a diluição da funcionalidade
tonal, consumada na música atonal de Schönberg, a continuidade e progressão na
música passa, na ausência de previsibilidade, a ser assegurada por aquilo que
designa de linearidade não-direcionada, ou, mais radicalmente, a assumir um
carácter não-linear ou descontínuo.[6] Kramer (1981: 545) propõe ainda, com
particular incidência na música contemporânea, as categorias de (1) tempo
múltiplo (multiple time) (pressupondo uma linearidade que permita a perceção e
reordenamento das partes); (2) tempo-momento (moment time), assim designado
na sequência da formulação de Stockhausen (moment form) (Kramer, 1981: 546-51),
em que é radicalizada a descontinuidade, com uma segmentação marcada, podendo
as partes ser relacionadas, mas não ligadas por uma transição e; (3) tempo
vertical (vertical time), cuja audição compara a contemplar uma peça de
escultura, e em que, nomeadamente, não se verifica na organização temporal,
nem a criação, nem a resolução de expectativas, sendo o contraste e hierarquia
minimizados ' uma música não-teleológica (Kramer, 1981: 551).[7]
Tal ausência de direccionalidade não é estranha àquilo que Ligeti (1965: 16)
designa de espacialização do tempo (spacialization of the flow of time').[8]
Essa espacialização emerge mais intensamente com o serialismo integral que,
de acordo com o compositor, nasceu sob o signo do totalmente estático ao
serem desativadas as forças que conduzem [drive] o fluir do tempo (Ligeti,
1965: 16).[9] Também Schulenberg (1986: 322) aponta para a relevância da noção
de espaço, particularmente, na música do séc. XX.[10] Um ou mais espaços
podem constituir-se aí como princípio formal, segundo Schulenberg (1986: 323),
sendo que, dentro de um dado espaço, ou na passagem de um espaço a outro
apresenta-se frequentemente não uma articulação direcionada, mas uma stasis, em
que podem não ser diferenciados pontos focais e não focais.[11]
Como ilustração de um aspeto técnico particular, a um nível elementar, da
neutralização da direccionalidade e desenvolvimento temático, poder-se-ia
apontar, como é o caso em Webern, a construção de séries em espelho, com um
eixo de simetria, ou a reciprocidade da série original e da retrógrada que
implicam, segundo Ligeti (1965: 16), uma reversibilidade [interchangeability]
das direções temporais. Sem prejuízo da irreversibilidade do tempo, os
palíndromos exibem uma reversibilidade da estrutura ou inversão espacial que,
como indica Trippett (2007: 523), embora esporadicamente presente em música
anterior, proliferam na música pós-tonal do século XX.[12]
Música e cultura
Se até ao final do sé. XVIII, aventa Berger (2008: 9), a sucessão das partes
não tem subjacente uma clara direccionalidade temporal, a partir daí
dificilmente se compreende a música sem recurso à linearidade e ordenação
temporal, sendo tal desenvolvimento reflexo da mutação cultural que é a
modernidade e da conceção do tempo histórico que a acompanha ' a passagem de
uma conceção cíclica para uma conceção linear do tempo.[13]
Também segundo Kramer (1981: 539), a tonalidade emerge como caso particular da
linearidade que domina o pensamento ocidental da Idade do Humanismo à
primeira Guerra Mundial, coincidindo o apogeu da tonalidade (desenvolvida
particularmente a partir de 1600, e decaindo no final do séc. XIX) com o da
linearidade na teoria cultural (enquanto progresso) e científica (enquanto
mecanicismo e evolucionismo, marcados por Newton e Darwin). Para além disso, e
no sentido de salientar a especificidade cultural do sistema tonal e do tempo
como construção, Kramer (1981: 539-41) recorda que tal linearidade não é
universal mas antes culturalmente construída, como mostra uma análise
comparativa de música não europeia em que está esta ausente e que, ao implicar
familiaridade com o idioma, constitui esta comportamento aprendido (Kramer,
1981: 540).[14]
Não deixaria do mesmo modo a desintegração de tal linearidade no séc. XX de ser
entendida como homologia estrutural' (Berger 2008) entre o tempo histórico e o
musical (Kramer 1981; Trippett, 2007).[15] Por outro lado, e com particular
relevância para a contextualização daquilo que Ligeti (1965: 16) designa de
espacialização do tempo, Jameson (2003: 695-7) propõe que, com o fim da
modernidade, se verifica na cultura do séc. XX a primazia da teorização do
espaço (como sinónimo de exterioridade) em detrimento do tempo (como sinónimo
de interioridade, subjetividade e lógica), identificando este como objeto
moderno e aquele como pós-moderno.[16]
Sumário e discussão
Como referido, os modos medievais, definidos por um âmbito, dois pontos focais
e natureza melódica, conformam, designadamente na polifonia, um espaço
estático (Schulenberg, 1986). A tonalidade, por sua vez, que domina a produção
musical do séc. XVII ao séc. XIX, apresenta-se como um material dinâmico, cuja
natureza marcadamente hierarquizada e funcional é suscetível de uma articulação
direcionada em formas extensas com um desenvolvimento orgânico. Na sequência da
dissolução da funcionalidade tonal e da atonalidade, no início do séc. XX, o
serialismo integral apresenta-se como totalmente estático concorrendo para
aquilo que Ligeti (1965: 16) designa de espacialização do tempo. No caso
elementar da construção melódica, verifica-se uma evolução do perfil, em que o
clímax é progressivamente deslocado do início (canto gregoriano) para o final
da frase (Bach) (Jeppesen, 1970), a que corresponde uma progressiva importância
da direccionalidade, criação de expectativas e aumento de tensão (adiamento da
resolução). No palíndromo, encontraríamos uma metáfora para a dissolução da
tensão e direccionalidade do próprio material musical, no caso particular do
serialismo integral. Verifica-se assim uma transformação dos materiais e
práticas composicionais que se caracteriza pela criação e diluição de
direccionalidade, passando sucessivamente de uma configuração estática, a uma
dinâmica, e à neutralização da direccionalidade na espacialização do tempo
(Ligeti).
Tomando como certa a especificidade cultural da direccionalidade na música
(Kramer, 1981), constatar-se-ia uma homologia estrutural (Berger, 2008) entre
essa construção e o contexto cultural em que emerge, verificando-se em ambos os
domínios a passagem de uma conceção cíclica a uma conceção linear do tempo,
consolidada nos séc. XVIII e XIX (Kramer 1981; Berger, 2008), e finalmente, à
sua diluição e à primazia da teorização do espaço (objetividade) em detrimento
do tempo (subjetividade), que corresponderia a um pensamento pós-moderno
(Jameson, 2003).
Pensando a história das proporções na representação da figura humana, Panofsky
(1989) toma como pressuposto que não há evolução técnica, no sentido de
substituição de uma técnica menos eficaz por uma mais eficaz, mas sim uma
alteração de mundividência que a técnica plasma. A técnica é aí não um domínio
autónomo, mas ela própria um dado cultural, e, desse modo, objeto de reflexão.
Foi esse raciocínio que se procurou demonstrar na historicidade dos materiais
musicais.