A literatura intercultural: desafios e canonização
1. Considerações prévias sobre o discurso do cânone
Atualmente, no âmbito da literatura intercultural contemporânea, há um debate
aceso em torno do conceito de literatura em si, no que diz respeito à formação
de cânones e processos de inclusão e exclusão, nomeadamente no sistema
educativo. Neste contexto, a crítica literária e a sua influência na vida
literária e noutras instâncias de mediação assumem um papel relevante. Deve-se
acrescentar a relação estreita entre o livro e a personalidade e biografia dos
autores e autoras, a qual, na literatura contemporânea, domina muitas vezes a
leitura e a interpretação.
De acordo com Treml (2009), o "cânone" entende-se normalmente como algo que
está em constante desenvolvimento: "O que se ‘desenvolveu’ existe, sem ficar
totalmente transparente quem tenha sido o agente e de que forma se tenha
efetuado este processo de desenvolvimento".[1] Segundo este autor, pode
recorrer-se a abordagens da teoria da criação e evolução para explicar melhor a
formação de cânones (Idem, 144) ou, nas palavras de Winko:
Regra geral, um cânone de textos literários não é um catálogo. É
antes algo que pode ser reconstruído a partir da presença de textos
literários e da comunicação sobre eles, que pode acontecer para
diversos cânones em diferentes instituições e meios. (Winko, 1997:
597)
Sob esta perspetiva teórica[2], a consideração da chamada Invisible hand
(Winko, 2013) pode contribuir de forma significativa para uma descrição dos
percursos complexos relacionados com os processos de valorização
(Wertschåtzung; Karg, 2013) que permitem perpetuar a relevância de certas
literaturas em diferentes contextos sociais (cf. Winko & Rippl, 2013).
No campo da literatura mais recente, é sobretudo a denominada literatura
intercultural que está sujeita a processos valorativos de exclusão. Contudo, o
fenómeno em si não é novo. A literatura intercultural já existia muito antes de
o próprio conceito ter surgido, porque o entrecruzamento e confronto de várias
culturas é um tema ancestral e a essência da literatura universal, tendo, por
conseguinte, já entrado em diferentes cânones.[3]
Os processos de seleção determinaram desde sempre e ao longo dos séculos a
interação entre a valorização de obras literárias e a formação de cânones. No
que diz especificamente respeito ao fenómeno da ‘interculturalidade’, esse já
se encontra nas literaturas ‘clássicas’, o que teve como consequência o
surgimento de um novo campo de investigação dentro dos estudos literários.[4]
Não será necessário passar pela referência obrigatória de West-östlicher Divan
[Divã Ocidental-Oriental] de Goethe, para se reconhecer na literatura de
séculos passados uma considerável diversidade de temas, motivos, caracteres,
modos de falar, conflitos, etc. que fazem referência, ainda que de forma apenas
implícita, a fenómenos de interculturalidade; contudo, a experiência
intercultural em sentido biográfico escasseia no repertório de autores
considerados clássicos. De modo geral, são as literaturas contemporâneas que se
deparam com o problema de se afirmarem perante as literaturas ‘clássicas’ ou
bem estabelecidas na vida literária, devido à falta ou à inadequação de
critérios valorativas.
Na maioria dos casos são as convenções, tradições e mecanismos de conservação
que mais contribuem para a génese e a permanência de um cânone, e estes fatores
dizem respeito a uma camada social privilegiada pelo seu acesso à educação
(cânones na educação, cânones académicos). Existem paralelamente alguns
subcânones, como o da literatura trivial, entre outros. Trata-se, em primeiro
lugar, de fornecer orientações e valorizações e, em geral, de estabelecer uma
comunicação com sentido (vd. Treml, 2009: 148): "A grande contingência na
produção de ideias leva à necessidade de marcações, a partir das quais os
sistemas sociais se orientam e são capazes de comprimir e sincronizar a sua
comunicação" (Idem, 149), – mais que não seja, para evitar a arbitrariedade.
Portanto, devemo-nos interrogar sobre a seguinte questão levantada por Winko:
Serão os cânones hoje em dia dispensáveis porque a sua unidade já não
é concretizável, ou já não serão desejáveis porque cada tentativa de
chegar a uma maior unidade tem o preço de uma ratio de exclusão
demasiado elevada? (Winko, 1997: 599)
Uma alternativa pode ser encontrada através da simultaneidade de cânones
tradicionais e novos que "corresponde ao pluralismo no âmbito da germanística"
(Ibidem):
segundo o modelo das escolas secundárias americanas, além dos cânones
tradicionais dos ‘autores masculinos e de raça branca’, existem
cânones novos de autoras e de diferentes grupos étnicos, cuja
integração foi defendida na forma de cânones de grupos coesos.
(Ibidem)
Com isso, um cânone literário "(…) constitui um fundamento importante para a
comunicação académica e, não em último lugar, para a auto-entendimento" (Idem,
600).[5]
2. Breve história do discurso sobre a ‘literatura intercultural’
A emigração e a globalização como marcas do mundo atual constituem, no fundo,
categorias extraliterárias. A produção literária relativa a estes fenómenos
desenvolveu-se a partir da chamada ‘literatura de trabalhadores-hóspedes’
(Gastarbeiterliteratur)[6], na década de 1960, passando pela ‘literatura de
migrantes’ (Migrantenliteratur), para chegar a um conceito aberto de
"literatura híbrida" (Bhabha, 2000). Nesta evolução espelham-se não só algumas
tendências socioculturais, mas também as orientações das políticas de
imigração. Perante a omnipresente globalização e a abertura de muitas
fronteiras, o debate sobre a literatura intercultural e a tentativa da
sistematização deste fenómeno em termos académicos é o campo de investigação
mais fértil na área da literatura contemporânea. No entanto, ainda não se
chegou a resultados conclusivos. Por isso, contentar-nos-emos em referir
algumas das posições mais destacadas que servirão de ponto de partida para uma
melhor descrição do objeto aqui tratado.
No início, dos anos 50 até aos anos 80, falava-se da Gastarbeiterliteratur,
também denominada Betroffenheitsliteratur, cuja tradução ‘literatura dos
afetados’ deixa entrever a maior ênfase no caráter autobiográfico e, em termos
coletivos, reivindicativo ou militante. Entretanto, foram-se desenvolvendo
formas de literatura híbrida produzida por autores e autoras residentes em
países de língua alemã com antecedentes de imigração (Migrationshintergrund).
O fenómeno a que se refere, porém, é já velho (…), tendo começado a
desenhar-se com os esforços literários da primeira geração de
‘Gastarbeiter’ – à letra trabalhadores-hóspedes – que chegaram à
Alemanha no princípio dos anos sessenta (embora os primeiros acordos
Estado a Estado para o recrutamento de trabalhadores estrangeiros
datem de 1955, com a Itália à cabeça). Chiellino, também autor de
vários contributos, teve ele próprio uma participação ativa na
configuração editorial e institucional desta nova literatura de
língua alemã produzida por autores/as estrangeiros radicados na
Alemanha, numa fase inicial com background migratório ligado ao
trabalho, hoje nem sempre, até porque inclui elementos da segunda
geração, já integrados na Alemanha, ou tendo lá chegado em criança.
(Idem, 17).
Estas novas formas não estão focadas no tema do sentir-se estrangeiro, nem se
ocupam primordialmente deste fenómeno, até porque um conceito de literatura
contemporânea que esteja baseado numa linha conservadora de estudos literários
que enfatize identidades nacionais essencialistas é sempre problemático.
Durante algum tempo, as definições de "literatura de migração" ou "literatura
de imigrantes" terão sido entendidas como satisfatórias, apesar das suas
manifestas fragilidades concetuais.[7] A este respeito, Cerri levanta a
seguinte objeção:
A ‘literatura de imigrantes’ é um conceito puramente biográfico, que
exclui autores nascidos na Alemanha ou, como Feridun Zaimoglu, que
foram para a Alemanha ainda crianças e se veem a si mesmos como
alemães. Porque terão eles de ser etiquetados com um rótulo que diz
respeito à geração dos seus pais e não à deles próprios? (Cerri,
2009: 11-12)
Deixando de lado os conceitos que partem da imigração, prevalece "um debate
estéril sobre quem atribui a quê, quando e porquê os conceitos variados de
inter-, trans-, multi-culturalidade e afins, assim como, por outro lado,
abundam análises válidas de textos literários, que, isoladas, dificilmente se
articulam entre si" (Weinberg, 2011: 93). Segundo Chiellino, o romance
intercultural tem duas características: "uma perspetiva narrativa em língua
estrangeira e o sentido latente da linguagem" (apud Cerri, 2009: 16). Mas há
ainda outros critérios a considerar em relação ao fenómeno ‘intercultural’, uma
vez que "a interculturalidade em muito ultrapassa o fenómeno da imigração (…)"
(Seruya, 2005a: 19).
De acordo com Homi Bhabha (2000), as literaturas híbridas representam um
terceiro espaço, no qual se desenrolam processos sociais de negociação entre
‘nativos e estrangeiros’, o centro e a periferia. Apesar de as considerações de
Bhabha se basearem na situação (pós)colonial, podem ser transferidas com
proveito:
Assim, a ‘literatura de migrantes’ perde o seu estatuto de
‘literatura de chegada’. No novo contexto teórico a categoria
‘híbrido’ não se cinge ao migrante, mas refere-se também à sociedade
que acolhe; a ‘literatura de migrantes’ torna-se espelho do leitor
alemão, ele também tornado híbrido. (Weinberg, 2011: 97)
Outro tema recorrente nas literaturas de cunho intercultural e muitas vezes de
orientação explicitamente biográfica é o sentir-se estrangeiro. Trata-se de
textos que se interrogam ao nível estético, de forma temática e linguística,
sob o pano de fundo da migração, sobre uma vida que alterna entre duas ou mais
culturas e diferentes línguas. Wrobel constata:
O debate em torno da questão sobre se a literatura intercultural será
capaz de entrar no cânone não reflete somente as controvérsias dos
estudos literários ou didáticos. Os seus argumentos excedem-nos
largamente, estando diretamente relacionados com o discurso político-
social, as questões de imigração e integração, e a discussão acesa
sobre a multie interculturalidade. (Wrobel, 2008: 23)
3. Exemplos de autores interculturais ‘canonizados’
Podem ser elencados, numa escolha ordenada por ano de nascimento, os seguintes
autores e autoras, de língua alemã, que foram distinguidos e estão
estabelecidos no mercado literário[8]: Franco Biondi (*1947 em Forlì / Itália);
Rafik Schami (* 1946 em Damasco / Síria); Emine Sevgi Özdamar (*1946 em Malatya
/ Turquia); Sibylle Lewitscharoff (* 1954 em Stuttgart / Alemanha); José F. A.
Oliver (* 1961 em Hausach / Alemanha); Feridun Zaimoglu, (* 1964 em Bolu /
Turquia); Ilija Trojanow (* 1965 em Sofia / Bulgária); Wladimir Kaminer (* 1967
em Moscovo / Rússia); Terézia Mora (* 1971 em Sopron / Hungria); Lena Gorelik
(* 1981 em St. Petersburgo / Rússia).
A canonização destes autores processou-se por via de diversas formas e meios,
tais como a apreciação das suas obras em resenhas críticas, a obtenção de
prémios literários, sobretudo o Prémio Adelbert-von-Chamisso[9], distinção
concedida a autores que não têm o alemão como língua materna, mas escrevem no
idioma; de referir ainda as Poetikdozenturen, docências em torno da literatura
a convite de universidades, divulgações em antologias e, não menos relevante, a
presença dos autores e dos seus livros nos media. Com a consolidação da
‘literatura intercultural’, esta canonização passa também pela sua
referenciação nas obras mais recentes de história da literatura assim como pela
adoção dos seus textos em propostas didáticas e programas letivos nas escolas e
universidades nos países de língua alemã.
4. Comunicação intercultural e consequências didáticas
A comunicação intercultural é hoje uma competência-chave nas diferentes
relações de interdependência em vastos domínios no âmbito profissional,
internacional, político-económico e inclusivamente emocional. As exigências por
parte de instituições pedagógicas denotam uma clara orientação para o
poliglotismo, para o fortalecimento de competências linguísticas e também para
a formação intercultural, configurando assim um enquadramento para o
desenvolvimento de diversas formas e meios didáticos nesse sentido:
Assim propagam há séculos as instituições e grémios europeus, que a
pluralidade de línguas e culturas (inclusivamente aquelas faladas e
vividas pelos migrantes) fazem a identidade europeia e devem ser
integradas, não assimiladas. (Allemann-Ghionda, 2010: 8)
No contexto das aulas de língua, não se deve subestimar o duplo significado dos
textos interculturais contemporâneos, quer como meio de motivação para a
leitura e escrita, quer na sua função cognitiva. Por um lado, representam um
importante contributo para o diálogo que conduz à distinção entre cultura e
estereótipo (Ipsen, 2009); por outro, consubstanciam um motivo para a reflexão
sobre as experiências individuais de cultura e identidade, podendo também ser
utilizados para desenvolver determinadas competências linguísticas ao nível da
receção e produção.
As análises críticas a partir de narrativas como as referidas até agora podem,
na nossa opinião, contribuir para uma atitude mais reflexiva e sugerir assim
mudanças de perspetiva originadas pela tomada de consciência, assente numa
apreciação comparativa que inclui o reconhecimento da existência de outras
experiências, maneiras de ver e critérios valorativos. As literaturas
interculturais estão ligadas a um processo hermenêutico de procura de
identidade e ao questionamento dessa identidade na complexidade dos contextos
históricos e socioculturais, o que as torna atraentes para os estudos
literários, designadamente no que se refere à comparação com outros géneros,
épocas, etc.. Segundo Stratthaus (2005), o conceito da interculturalidade
significa mais uma prática interpretativa geral do que uma abordagem definida
por um determinado corpus literário.
Na didática das línguas estrangeiras, foi só a partir dos anos sessenta do
século XX que se começou a investigar a relação tensa entre auto e hétero-
perceção:
Deu-se maior atenção aos processos simultâneos de adquirir
consciência da cultura própria e de compreender a cultura
estrangeira; mas também aos aspetos emocionais da perceção do outro,
assim como à relevância dos preconceitos; todos estes aspetos
entraram no âmago da investigação da didática das línguas
estrangeiras. (Hallet & Königs, 2010: 76).
A perspetiva intercultural também adquire uma importância crescente nas
recentes obras didáticas do alemão como língua estrangeira (Deutsch als
Fremdsprache – DaF). Na área dos estudos literários, os trabalhos de alguns
autores dedicam-se ao uso adequado da literatura nesse domínio com o objetivo
de alcançar uma melhor compreensão e uma competência de diálogo intercultural
mais abrangente. A partir do início deste século estas contribuições são
publicadas na série intitulada Gießener Beitrågen zur Fremdsprachendidaktik e
consideradas muito fecundas para melhorar a didática das línguas estrangeiras.
[10] A literatura é um meio ideal para apreender e aprofundar a competência
numa língua estrangeira:
(…) são precisamente os textos literários que, graças à sua dimensão
ficcional, refletem em particular as mentalidades, normas e valores
culturais da língua-alvo. Mais ainda, refletem aqueles codes of
behaviour que são muitas vezes encobertos e difíceis de perceber, no
entanto essenciais para a transferência da competência intercultural.
(Volkmann, 2008: 101)
Torna-se determinante a possível articulação desta funcionalização da leitura
do texto literário com a aprendizagem da língua através de interações, um
método que ficou revalorizado nas teorias recentes da didática das línguas
estrangeiras:
Quando os textos literários nos apresentam ações e experiências que
nos estimulam a ativar ideias e sentimentos, isto significa também
que nós reagimos e damos valor ao que nasce através do processo da
leitura. (Bredella, 2010: 47)
Portanto, não se trata de uma interpretação literária objetivamente ‘correta’,
mas de uma permuta dialógica sobre o que a literatura provoca no leitor e as
experiências que ela pode ativar[11], no entanto sem deixar de prestar atenção
– acrescentaríamos – aos condicionalismos socio-históricos. Escritores oriundos
de diferentes culturas e que escrevem em alemão dispõem hoje em dia de mais
identidades culturais e linguísticas e não estão tematicamente presos às suas
origens culturais individuais. Os espaços intermédios tornaram-se múltiplos e
mais abertos. No entanto, o domínio da língua mantém-se um tema central, seja
de forma afirmativa, irónica ou transfigurada, para causar alheamento, ou
delimitativa, encontrando a sua expressão própria nas respetivas obras. Já não
se trata de ultrapassar as dificuldades da (in)compatibilidade linguística, que
tem sido um dos temas centrais da literatura de migração e cuja utilização
irónica aparece nas primeiras publicações de Feridun Zaimoglu, numa perspetiva
fragmentada:
Neste contexto, a língua constitui um aspeto específico da
Kulturnation alemã, (…) sendo possível distinguir-se a marginalidade
linguística, a segmentação, a assimilação e a inclusão múltipla. A
marginalidade linguística seria então um caso de ‘bilinguismo
limitado’ no qual nenhuma das línguas seria dominada de maneira
competente, como no caso do language shift entre os filhos de
imigrantes de camadas sociais inferiores, que (já) não têm o domínio
correto da sua língua materna (...). (Esser, 2006: 26)
No seu livro intitulado Sie können aber gut Deutsch! Warum ich nicht mehr
dankbar sein will, dass ich hier leben darf, und Toleranz nicht weiterhilft
[Mas que bem que fala alemão! Por que não quero ser mais grata por poder viver
aqui e por que tolerância não ajuda], Lena Gorelik (2012) aponta críticas
violentas à perceção restrita a que são sujeitos os autores de proveniência
estrangeira no contexto da língua alemã. É expetável que, no seio da
germanística e da área da docência do Alemão, o debate sobre o cânone continue
a manter-se controverso. A área do alemão como língua estrangeira e a
germanística intercultural oferecem novas abordagens da literatura em língua
alemã que representam um inquestionável potencial de estímulo para esta
disciplina:
A defesa de um ‘currículo nuclear’ para a disciplina é problemática,
porque o ensino de literatura com orientação intercultural foca não
só o tema de experiências antropológicas básicas, como também tem em
conta textos que, indo além da abordagem histórica, possibilitem aos
estudantes a assimilação do mundo em que vivem. (Wrobel 2008: 25)
Na nossa opinião, o objetivo dos estudos literários e da didática atual não
deve consistir no confronto duma literatura com outra[12], porque cada uma tem
a sua relevância histórica e, portanto, cultural, e deve ser avaliada em
conformidade. Para os estudos literários interculturais e comparativos como
também para a atual didática da literatura no âmbito da língua estrangeira, há
campos de atividade ainda longe de estarem totalmente explorados.
5. Panorama da literatura luso-alemã
A experiência da emigração para a Alemanha nos anos 60 e 70 não teve quase
nenhum reflexo na produção literária portuguesa, com raras exceções como a obra
Floresta em Bremerhaven (1978) de Olga Gonçalves, que parece ser
simultaneamente um texto de ficção e um estudo sociológico sobre a emigração,
dando voz aos próprios emigrantes.
Nos países de língua alemã, a literatura de minorias (Minderheitenliteratur)
dos anos 80 empenhou-se na comunicação intercultural, fomentando – por exemplo
através de concursos – a criação literária nas línguas de origem dos imigrantes
e a sua tradução para alemão, entre as quais destacamos os seguintes, no nosso
contexto:
– revistas literárias como: Peregrinação. Revista de Artes e Letras
da Diáspora Portuguesa. Baden, Suíça (1983/89);
– antologias (por exemplo, as organizadas por Irmgard Ackermann, Als
Fremder in Deutschland. Berichte, Erzåhlungen, Gedichte von
Auslåndern (1982) e In zwei Sprachen leben. Berichte, Erzåhlungen,
Gedichte von Auslåndern (1983), nos quais se encontram textos de
Manuel Salvador Campos, Elizabeth Gonçalves, João da Costa e, talvez
a que mais se tenha afirmado posteriormente numa vida cultural luso-
alemã, Luísa Costa Hölzl (* 1956, Lisboa).
O tema principal destes textos são as controvérsias pessoais das experiências
de vida entre culturas. O jogo de transformar e misturar as línguas materna e
estrangeira encontra no ultra-doitsh, criado por Zé do Rock, um brasileiro há
muito tempo a residir na Alemanha, a sua expressão mais radical. Numa espécie
de alemão ‘crioulizado’ pela língua brasileira, submetem-se os estereótipos
culturais a uma paródia, como acontece, por exemplo, em Deutsch gutt sonst Geld
zurück. a siegfriedische und kauderdeutsche lerund textbuk (2002). A perspetiva
inversa, ou seja a de uma falante materna do alemão a viver no Brasil, é
representada por Doris Kloimstein, no seu volume de narrativas intitulado
Blumenküsser. Kurzgeschichten aus dem Atlantischen Urwald Brasiliens (2006) que
versa sobre as experiências duma professora de alemão austríaca.
6. Breve re?exão ?nal sobre a didática no contexto luso-alemão
Até à atualidade, na vida literária dos países de língua alemã não se tem
afirmado autores de origem portuguesa que escrevem literatura em alemão.
Perante esta ausência pode-se interrogar sobre os motivos, nomeadamente quando
há cada vez mais jovens portugueses, com formação superior e com competências
de alemão antes de emigrarem.
Ainda em 1997, Martina Merklin manifestou o seu ceticismo em relação à
possibilidade de se aplicar a perspetiva intercultural no alemão como língua
estrangeira e nas obras didáticas no contexto do ensino em Portugal:
Aqui podiam-se mencionar as diferenças culturais que se manifestam
nas obras didácticas portuguesas e alemãs. Do lado português existe o
desejo de acordo e harmonia e evitar desentendimentos, como se pode
ver na escolha de materiais didácticos e nos métodos seguidos. Os
autores alemães preferem as distinções, a troca de opiniões e
principalmente a importância das discussões. Daqui se sente
seguramente o ímpeto esclarecedor da didáctica alemã e em especial o
conceito de ensino intercultural, bem como a "cultura da discussão"
[Streitkultur] alemã. (Merklin, 1997: 98)
A autora deixa bem claro que as diretrizes de um curso de língua não materna
devem assentar num amplo domínio de experiências, com a inclusão de perspetivas
interculturais, e sugere que seria "da maior importância a tematização da
reflexão sobre o Outro, a sua compreensão e as suas contribuições nas aulas
(talvez até na sua língua materna)" (Idem, 100).
O facto de qualquer linguagem ser culturalmente condicionada, o encontro de
diferentes culturas e a sua expressão literária são temas que, desde sempre,
portanto em épocas anteriores à atual globalização e vagas migratórias, tiveram
ocasião de entrar em obras que permaneceram no cânone literário. O desafio
aliciante que hoje se coloca é a análise das suas mais recentes manifestações.