Os Memoráveis
RECENSÕES
Os Memoráveis. Lídia Jorge, Lisboa, D. Quixote / Leya, 2014
Isabel Cristina Mateus*
*Departamento de Estudos Portugueses e Lusófonos, Universidade do Minho, Braga,
Portugal.
icmateus@ilch.uminho.pt
Lídia Jorge é uma daquelas escritoras que consegue surpreender os leitores em
cada novo livro: desde O Dia dos Prodígios (1980) em que nos deu a conhecer o
mundo mítico, e ao mesmo tempo tão real, de Vilamaninhos (isolado e imune aos
ventos de mudança soprados pela Revolução de Abril), que a sua escrita vem
revelando, de romance para romance, uma notável capacidade de reinvenção e um
não menos notável caleidoscópio de olhares sobre a realidade portuguesa. Sem
ceder à tentação da moda ou à lógica imperativa dos mercados, a sua escrita
singularíssima impôs-se nacional e internacionalmente, como o comprova, para
além dos importantes prémios recebidos, o destaque concedido pela revista Le
Magazine Littéraire, em 2013, ao eleger o seu nome como uma das "10 grandes
vozes da literatura estrangeira", ao lado de escritores como Orhan Pamuk, Alice
Munro, Enrique Vila-Matas. Ou o facto de a escritora ter sido este ano a
homenageada da sexta edição da Escritaria, em Penafiel, evento literário que
conquistou já foros de acontecimento nacional, de verdadeira festa da
literatura.[1]
Vêm estas observações a propósito da publicação do último romance de Lídia
Jorge neste ano de comemorações da Revolução portuguesa, mesmo se a autora não
procurou (como publicamente afirmou) esta coincidência. Feliz coincidência,
dir-se-ia, já que Os Memoráveis constituem a mais portentosa pintura mural com
tinta de palavras, a mais poderosa, profunda e desassombrada análise sobre a
Revolução de Abril até hoje feita na literatura portuguesa. O romance arrisca
seriamente, como escreveu Miguel Real[2] no JL (16.04.2014), "tornar-se para o
25 de Abril como Viagens na Minha Terra para o Liberalismo, Os Maias para o
Constitucionalismo Liberal fontista, Húmus para a Iª República e O Delfim para
o Estado Novo".
Como primeira nota de leitura, importa sublinhar a novidade do ponto de vista
encontrado para contar a história desse que foi, nas palavras de Sophia, o "dia
inicial inteiro e limpo". Novidade que consiste não num olhar a partir do
passado sobre o qual escorre a melancolia do presente, mas antes num olhar a
partir do futuro, a partir de um tempo em que a memória da "metralha das
flores" já quase desapareceu. O leitor é assim confrontado com um olhar puro,
de certa forma inocente, de uma geração que não viveu os acontecimentos ou que,
tendo-os vivido, deles pouco se lembra ou deles se distanciou. Uma história
contada à distância, em perspectiva, a partir de um olhar exterior, em certo
sentido estrangeiro, sob a forma de documentário encomendado pela cadeia
televisiva americana CBS à jornalista portuguesa Ana Maria Machado. O
documentário, a pedido do embaixador americano em Washington (ex-embaixador em
Portugal logo a seguir ao 25 de Abril e, por esse dado histórico, passível de
identificação com Frank Carlucci), deveria constituir o primeiro episódio da
série "A História Acordada" cujo objectivo seria dar a conhecer um daqueles
raros momentos em que o "anjo da alegria" passa pelo mundo e a história da
incessante maldade humana, por breves instantes, se suspende. Para o
embaixador, a revolução das flores cujo nome não recorda ("How awful, it´s
carnations, of course, dear Bob!, p.19), ao som da batida dos passos de uma
canção country, é um desses momentos extraordinários, um intervalo ou "rasgão
no tempo" que merece ser contado para memória futura (a memória é, com efeito,
um tema central para a autora que ainda recentemente afirmou "só querer ser uma
cronista do tempo que passa"[3]).
De regresso a Portugal, em colaboração com dois antigos colegas de faculdade,
Margarida Lota e Miguel Ângelo, a jovem repórter de guerra irá entrevistar
vários protagonistas dessa noite e madrugada memoráveis, na tentativa de captar
a pureza original daquele momento único em que se abriam todos os possíveis e
todos os futuros, momento que convocou os deuses da beleza, do bem, da
solidariedade e da esperança.
A equipa de jornalistas terá como ponto de partida da investigação (e de
construção do argumento) uma fotografia datada de 21 Agosto de 1975, mais de um
ano decorrido sobre os acontecimentos: a fotografia de um jantar no restaurante
Memories que reúne alguns dos principais actores e testemunhas da revolução,
com desenho e legendas no verso da actriz Rosie Honoré, e resgatada por Ana
Maria da poeira que cobre a estante do escritório do pai. Sem que a jornalista
o saiba, o instantâneo de Tião Dolores (Sebastião Alves) constitui, de algum
modo, a "Última Ceia" fotográfica do "dia original": nele estão presentes não
apenas os "apóstolos" da revolução, como nele se fixa e oculta um segredo, um
momento que a investigação virá revelar ter sido decisivo, também ele
memorável, para a viragem no curso da Revolução. Da mesma forma que nele se
oculta e, paradoxalmente, dá a ler, a narrativa das origens de Ana Maria, o
capítulo inicial da sua (auto)biografia ou nela se reflecte a sombra e o
silêncio da relação com o pai, reputado jornalista no meio lisboeta.
Partindo de um registo testemunhal (que a escrita de Lídia Jorge frequentemente
convoca), a investigação procurará reconstituir a narrativa desse momento de
euforia colectiva, a crónica dessa utopia primordial, traçar a sua cartografia
no tempo e no espaço, acompanhar os gestos dos seus actores, num constante
estilhaçar e entrelaçar de histórias na História que mantém o leitor suspenso.
Tudo isto ao ritmo das grandes séries televisivas americanas e através do olhar
neutro, nómada e distanciado de Ana Maria, em permanente desacerto com o
relógio parado do seu país e com o relógio familiar. Através, igualmente, do
olhar aberto sobre o mundo, sobre o mundo global que é o nosso (e destes
jornalistas, em particular) mas também sobre o mundo europeu e internacional,
sobre os Estados Unidos ou os países árabes, abertura que é, mesmo se
provisoriamente, uma das conquistas da Revolução de Abril: o momento em que
deixámos de ser um país periférico, uma "toalha" estendida e esquecida à beira
mar da "praia lusitana", para nos tornarmos o ponto focal do olhar do mundo.
Ao longo deste processo de recuperação e de re-escrita da memória, a equipa de
jornalistas procederá àquilo que podemos chamar "leitura da poeira", procurando
limpar, como Ana Maria faz à fotografia do escritório do pai, o pó acu>mulado
pela passagem do tempo, removendo ou decapando nesse gesto, como se fossem de
tinta, as camadas de poeira que lentamente ocultaram a matéria e cor originais,
desocultando histórias à espera de ser contadas (a repórter de guerra, convém
notá-lo, "aprend[era] no deserto que na poeira se encontram escritos livros
inteiros", ela, a quem um velho árabe ensinara "que toda a vida passada e toda
a vida futura se encontram escritas no pó", p. 59).
Leitura do pó, decifração de signos e de sulcos inscritos no tempo, arqueologia
da memória que, não evitando a melancolia do arquivo (fiel e exemplarmente
percorrido pela autora neste romance), faz igualmente apelo à imaginação, à
ficção e, de um modo genérico, à arte como auxiliares indispensáveis na
reconstituição do passado: porque a ficção, como a arte, é a câmara que melhor
nos retrata por dentro, a sonda das nossas mais invisíveis e indizíveis
sombras, a ilusão que nos redime e nos reconcilia com o tempo. O que torna
particularmente significativa a leitura teatral inscrita nos desenhos e
legendas de Rosie Honoré no verso da fotografia do Memories registando o
momento único, "tendo sido todos muito felices". Rosie, a actriz que "não vivia
no teatro do mundo, vivia o mundo do teatro" (p. 54), simultaneamente actriz e
espectadora no palco dos acontecimentos. Inscrevendo a ilusão no palco da
história, o espelho na realidade, os nomes dos actores e os petits noms do
mito.
À procura da história original, do "coração da fábula", a equipa de jornalistas
registará o testemunho do Oficial de Bronze cuja prodigiosa memória não apenas
reconhece a fotografia do Memories (que, de resto, nunca vira), como é capaz de
reconstituir o local, as circunstâncias, os gestos, de desocultar sinais e fios
narrativos: "Tenho a certeza, foi tirada a vinte e um de Agosto de setenta e
cinco, aposto a minha mão direita. (…) Garanto-vos que esta foi uma noite em
que factos extraordinários aconteceram" (p. 92). Escutando o guardião da
memória, os repórteres julgarão estar "a ouvir a história a escrever-se a si
mesma" (p. 93).
Todavia, ao longo da investigação, os repórteres-detectives irão cruzar-se e
confrontar-se com os tantos outros olhares dos entrevistados e testemunhas dos
acontecimentos, num perspectivismo que permitirá uma constante, e nem sempre
pacífica, re-avaliação, interrogação e re-interpretação dos factos. Dessa
forma, serão confrontados com a desfiguração introduzida pelo tempo, com um
conjunto de personagens que vivem o presente como um lugar de exílio,
desterrados na névoa de melancolia e de irrealidade que sobre eles o tempo
teceu: o chefe Nunes remetendo-se ao mutismo do presente, mas adquirindo voz no
relato do filho que há-de evocar o grito de júbilo do pai ao ver avançar as
colunas militares na manhã de Abril: "Levem-me a mim, pessoal, arranquem-me a
cabeça do corpo e façam dela uma bala"; o Major Umbela escondendo a sua mão
direita e arrastando-se em processos jurídicos contra aqueles que lhe sujaram a
honra; Salamida fechado no seu quarto de eterno adolescente à procura de uma
senha futura, uma nova canção; o fotógrafo Tião Dolores despedindo-se do seu
acervo fotográfico para não ceder à miséria. A viúva de Charlie 8 procurando
manter viva a memória do marido num país que atribui pensões a antigos membros
da polícia política mas recusa atribuí-la a Charlie 8 porque "os seus actos de
abnegação e coragem cívica não cabem no artigo 444, barra, oitenta e dois". Ou
mesmo El Campeador, pairando já nas brumas do mito, montado num cavalo
lusitano, à beira mar, em pose de estátua equestre para um filme que ninguém
realizará. São personagens quixotescas, algumas no limiar da loucura, todo um
cortejo de humanas fraquezas, contradições, vaidades, hipocrisias, silêncios,
traições, que permite interrogar, por dentro, na penumbra da intimidade, o
curso dos acontecimentos da madrugada de Abril.
Nesse processo de descoberta vão passando do desconhecimento inicial a um
deslumbramento progressivo que Margarida Lota, com a sua inteligência e
sensibilidade, corporizará. Quando Ana Maria lhe pergunta, no final das
entrevistas, se "está feliz", Margarida responde: "Como não, se eles falam
verdade? Podem não coincidir nos detalhes, mas coincidem nos factos principais,
e isso é quanto basta" (p. 299).
Num percurso que é também de aprendizagem identitária, individual e colectiva,
o encontro com o passado traz consigo a pacificação no presente, o gérmen do
futuro: Margarida envolver-se-á com Salamida, desejando que dessa relação possa
nascer um filho, semente de Abril que há-de florescer no futuro. Da mesma forma
que Ana Maria acabará por vencer o fosso de silêncio edipiano que a separa do
pai, compreender o drama que o esmaga e evitar, pela palavra, a tragédia
anunciada:
"Abra, por favor, abra. Pedi, durante duas horas, em voz baixa, para que os
vizinhos não ouvissem. Depois pedi alto, e pedi de todas as maneiras que sabia
e de que era capaz. Pedi-lhe continuadamente, para que nunca deixasse de ouvir
uma voz que o chamava. Disse-lhe, através da porta, todas as palavras que nunca
lhe tinha dito. (…) Eu não podia deixar o meu pai. Agora sim, eu tinha chegado
ao coração do coração da fábula. E ela me retinha para si" (p. 329).
O romance Os Memoráveis é assim uma forma de resgatar do deserto de poeira que
o tempo foi acumulando, da teia de interpretações e de contradições, dos
perigos e fascínios do mito, os nomes e os rostos dos actores do ‘milagre
português’. Sem incorrer na tentação fácil da epopeia e do culto dos heróis,
antes sublinhando a sua humana condição (gesto simbólico patente na Escada de
Jacob que Ana Maria desce para retirar da estante do pai a foto do jantar),
evitando o registo dramático (trágico ou cómico), procurando antes o registo
lírico, emotivo, intuitivo: no fundo, aquele que melhor pode dizer o dia em que
"a poesia saiu à rua", parafraseando os célebres versos de Sophia que a pintura
de Vieira da Silva transformará numa das imagens simbólicas do 25 de Abril.
Uma narrativa lírica, capaz de iluminar, com a sua visão interior, o propósito
documental que subjaz à criação da série, capaz de auscultar e de sentir o
latejar dos conflitos e dramas individuais como só a literatura pode fazer. Uma
narrativa capaz de dar rosto e nome aos cinco mil homens que, na madrugada de
Abril, "estavam a fazer rodar as agulhas sobre o mostrador da história". Dando
corda a esse relógio que, no arco da Rua Augusta, parecera parado a Charlie 8,
ao olhar para trás, quando a coluna militar avançava em direcção ao Carmo. O
mesmo relógio que há-de vir a ser a imagem de abertura do documentário da CBS,
produzido por Bob Peterson, cujo guião encerra o romance. Numa palavra, uma
narrativa capaz de combater as sombras e tornar esses homens Memoráveis, antes
que sobre eles caia o manto do esquecimento, a poeira do deserto, a abstracção
do mito.
(por opção pessoal, de acordo com a antiga ortografia)
Notas
[1]Esta recensão surge na sequência da apresentação do romance Os Memoráveis
que teve lugar na Biblioteca Pública de Braga, a convite do Conselho Cultural
da Universidade do Minho, em 7 de Maio de 2014.
[2]"Um Dia Puro", Jornal de Letras, 16 a 29 de Abril de 2014, p. 28.
[3]Escritaria, 5 de Outubro de 2014.
Campus de Gualtar
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