Como traduzir a ordem das palavras na frase? Estudo interlinguístico sobre a
topicalização do complemento direto na tradução polaco-português
0. Introdução, objetivos do estudo e questões de pesquisa
O presente estudo, que se insere numa investigação mais alargada sobre técnicas
de tradução direta polaco-português[1], visa analisar a ordem dos constituintes
da frase no par de línguas em destaque, centrando-se nas construções de
topicalização (cf. Duarte, 1989 e 2014) na respetiva tradução portuguesa. No
seu âmbito geral, a investigação enquadra-se nos princípios teóricos dos
Estudos Descritivos de Tradução e remete para os conceitos de normalização e de
interferência enunciados por Toury (2012), bem como para a noção de técnica de
tradução de acordo com Molina e Albir (2002). No seu âmbito particular, a
análise contrastiva polaco – português centra-se nas técnicas linguísticas
utilizadas na tradução para dar conta das especificidades da ordem dos
constituintes da frase polaca, resultantes, na tradução portuguesa, em
construções de topicalização.
Na presente etapa de investigação, centramo-nos apenas na abordagem qualitativa
do fenómeno em apreço, deixando a respetiva abordagem quantitativa para uma
fase mais desenvolvida e aprofundada do estudo.
Atendendo aos objetivos acima expostos, e tendo em consideração que as duas
línguas em foco apresentam a ordem canónica SVO, mas mostram também outros
padrões de ordenação (OVS e OSV), surgem as seguintes perguntas de
investigação:
(i) As frases com ordem básica SVO em polaco são traduzidas para português com
a ordem canónica SVO?
(ii) As frases com ordens sintáticas alternativas em polaco, OVS e OSV, são
traduzidas para português com a ordem canónica SVO?
(iii) Se as frases em polaco com ordem OVS e OSV podem não ser traduzidas para
português com a ordem canónica SVO, então que ordem dos constituintes pode o
tradutor aplicar na sua tradução para português?
1. Enquadramento teórico-metodológico
1.1. Estudos Descritivos de Tradução
O presente estudo importa dos Estudos Descritivos de Tradução duas leis, a
noção de regularidade e a de técnica de tradução (cf. Toury, 2012; Pym, 2012;
Molina e Albir, 2002).
Toury (2012) denomina como law of growing standardization (traduzida para
português como “lei de normalização crescente” [Pym, 2012: 154]) o facto de a
linguagem das traduções tender a substituir relações textuais típicas da língua
do texto de partida, às quais chama textemas, por opções próprias da língua do
texto de chegada, denominadas repertoremas. Por outras palavras, a tradução
recorre a modelos da escrita da cultura de chegada e tende a ser
estilisticamente mais normalizada/padronizada do que o texto-fonte (Toury,
2012: 303-10).
Por sua vez, a lei da interferência refere-se à transferência de
características pertencentes à configuração do texto de partida para o texto de
chegada, ou seja, as traduções tendem a manifestar interferências linguísticas
da língua de partida (Toury, 2012: 310-2).
A identificação de fenómenos tradutórios implica, no presente estudo, a
comparação dos textos de partida e de chegada conducente, entre outros, à
observação de regularidades, que, neste caso, se manifestam no uso repetido de
construções sintáticas. Toury (2012: 10) aborda a questão em termos de
regularidades do comportamento do tradutor, observáveis na tradução e
necessárias à formulação de leis em tradução.
Ainda que, pelo seu caráter restrito, um estudo de caso não possa ambicionar
formular qualquer tipo de lei em tradução, pode, a partir das regularidades
observadas, almejar uma explicação provável à luz das leis da normalização e da
interferência enunciadas por Toury (2012).
Por fim, o conceito de técnica de tradução, adotado no nosso estudo, baseia-se
na definição apresentada por Molina e Albir (2002). As referidas autoras
definem técnicas de tradução como procedimentos tradutórios, identificados e
classificados com base na comparação dos textos de partida e de chegada, que
afetam microunidades textuais e, consequentemente, o resultado da tradução. As
técnicas de tradução são ainda de natureza (i) discursiva, porque são apuradas
no seio de um texto, (ii) contextual, visto que a sua aplicação depende do
contexto, e (iii) funcional, porque exercem determinadas funções no produto da
tradução (Molina e Albir, 2002: 509).
Do ponto de vista metodológico, o estudo de caso por nós aqui apresentado
baseia-se na análise qualitativa de um corpus de exemplos extraídos da novela
polaca Tommaso del Cavaliere de Julian Stryjkowski (1982) e da respetiva
tradução para português da autoria de Zbigniew Wódkowski (1990).
1.2. Estudos linguísticos
Do ponto de vista da tipologia linguística, e em termos genéricos, a ordem dos
constituintes nas línguas constitui um dos temas mais destacados (e
fascinantes), mas também um dos mais difíceis de abordar. Desde o trabalho
pioneiro de Greenberg (1963/1990) sobre o assunto, passando pelos de Ruhlen
(1975) e Tomlin (1979 e 1986), a ordem dos constituintes na frase tem sido
estudada numa perspetiva comparativa, envolvendo um considerável número de
línguas que diferem quanto à rigidez e/ou flexibilidade da ordem das palavras
na frase. O inglês é o exemplo comummente referido para exemplificar uma língua
com uma ordem de palavras rígida, na medida em que as funções sintáticas são
ditadas pela posição dos constituintes na frase (Vellupillai, 2012: 281; cf.
Eliseu, 2008: 28, 83).
A caracterização da ordem de palavras básica é feita a partir da
observação de frases declarativas, afirmativas e não enfáticas. Em
todas as línguas, outros tipos de frase (como as interrogativas,
exclamativas, etc.) mostram diferentes padrões de ordenação. (Eliseu,
2008: 28).
Em tipologia linguística (Velupillai, 2012), a caracterização da ordem dos
constituintes da frase com base nas funções sintáticas de sujeito (S), verbo
(V) e objeto direto (O) é um dos critérios fundamentais aplicado para
classificar as línguas:
Word order typology seeks to map the basic constituent order in
languages, which is not as straightforward to determine as one might
initially think. First of all, in order to determine the basic word
order of a language, simple declarative sentences are sought, where
both arguments of the verbs are nominal (…) and not pronominal. This
is because pronominal arguments may follow different word order rules
from nominal arguments. In Italian, for example, the pronoun may pre-
cliticize to the verb, changing the word order from SVO to SOV. (…).
[T]he less marked sentence type, the declarative statement, is
considered to exhibit the more basic word order. Often, though by no
means always, this is also the most frequent word order in the
language. Frequency is, in fact, the most straightforward factor in
determining basic constituent order. (…) In most languages there is
likely to be a dominant word order, but (…) there are also languages
where two or more word orders occur with roughly the same frequency.
(Velupillai, 2012: 282-284).
A ordem dos constituintes da frase varia consoante as línguas, sendo dois os
principais padrões de ordenação:
As línguas do tipo do Latim, em que são aceitáveis diversas ordens,
exibem a chamada ordem de palavras livre, enquanto línguas como o
Português, em que existe um padrão de ordem básico, são línguas com
uma ordem de palavras fixa (o que não quer dizer que haja uma ordem
de palavras única. (Eliseu, 2008: 29) [Destaques do autor]
No que se convencionou chamar “ordem flexível” dos constituintes, mais visível
e frequente nas línguas com marcação morfológica nominal muito rica (como, por
exemplo, as línguas eslavas, em geral, e o polaco, em particular) convém
esclarecer que se trata de um termo com as suas próprias restrições:
A number of languages have so-called ‘flexible' (or ‘free') word
orders, where the order of the constituents is not determined by
syntactic roles, such as subject and object, but by some other
principle. In some languages the order is determined by semantic
factors such as animacy; in others by various pragmatic factors such
as topicality or focus or information structure, in yet others the
word order is determined by grammatical factors such as aspect. (…).
In [some] kinds of languages it is only accurate to label it
‘flexible' word order if the criterion is the position of
constituents according to grammatical relations, since they are only
flexible in the sense that constituents with various syntactic roles
may appear in different positions. However, the word order in the
above-mentioned languages may be said to be rigid with respect to
other criteria, such as animacy, pragmatic roles or whatever else it
is that determines the position of the constituents. (Velupillai,
2012: 300-302).
O nosso estudo parte da observação de que tanto o polaco como o português são
línguas de sujeito nulo (cf. definição do fenómeno em Raposo et al. 2014: 2311)
[2] e caracterizam-se pela ordem canónica SVO, embora apresentem, em grau
diferenciado, outros padrões de ordenação (cf. Cunha e Cintra, 1987: 162;
Mateus et al., 2003: 157; Bartnicka e Satkiewicz, 2010: 153-154).
Em português, como nas demais línguas românicas, predomina a ORDEM
DIRECTA, isto é, os termos da oração dispõem-se preferencialmente na
sequência: SUJEITO+VERBO+OBJECTO DIRECTO+OBJECTO INDIRECTO ou
SUJEITO+VERBO+ PREDICADO. (Cunha & Cintra, 1987: 162) [Destaques
dos autores]
O Português é uma língua SVO, ou seja, é uma língua em que a ordem
básica de palavras é Sujeito – Verbo – Objecto(s). (Mateus et al.,
2003: 157) [Destaques das autoras]
Por sua vez, Bartnicka e Satkiewicz (2010) descrevem a ordem das palavras na
frase polaca do seguinte modo:
A ordem do sujeito e do predicado na frase não é fixa, pode mudar. As
frases que apresentam o sujeito em primeiro lugar representam a ordem
neutra, estilisticamente não marcada. A alteração da ordem do sujeito
e do predicado pode ser motivada pela intenção de realçar um dos
membros da frase que transmite uma informação mais importante. (…)
Assim, a ordem do sujeito e do predicado na frase polaca pode ser
definida como livre, ainda que não seja totalmente livre. (Bartnicka
e Satkiewicz, 2010: 153-154) [Tradução nossa][3]
De uma maneira geral, e com base nas gramáticas académicas consultadas nas duas
línguas, verifica-se que o português é descrito como uma língua canonicamente
SVO, com uma morfologia verbal rica, enquanto o polaco, apesar de também
apresentar a ordem básica SVO, é descrito como uma língua com uma ordem de
palavras mais livre que o português, mas com uma morfologia extremamente rica,
tanto a nível verbal como a nível nominal.
O polaco, tal como o latim, apresenta uma ordem de palavras mais livre do que o
português, porque as funções sintáticas são nele marcadas através de uma
codificação morfológica pelas desinências nominais e pronominais das
declinações (cf. Eliseu, 2008: 29)[4].
No português, pelo contrário, não se conservou o sistema das declinações do
sintagma nominal (mantendo-se apenas algumas marcas de caso ao nível
pronominal); as funções sintáticas são sobretudo ditadas pela posição dos
constituintes na frase: assim, na ordem SVO, por exemplo, o sujeito precede o
verbo e o objeto ocorre após o verbo. O polaco com as suas sete declinações
(nominativo, genitivo, dativo, acusativo, instrumental, locativo e vocativo)
apresenta uma morfologia extremamente rica tanto a nível do nome como do
pronome (o que inclui não só os pronomes pessoais, mas também os
demonstrativos, os interrogativos e os relativos ‘que'), permitindo uma ordem
mais flexível de palavras na frase. Deste modo, verifica-se uma relação entre a
riqueza morfológica (tanto nominal como verbal) de uma língua e o seu padrão de
ordenação mais ou menos flexível (cf. Eliseu, 2008: 29). Comparativamente, o
polaco, tal como as outras línguas eslavas, sendo uma língua mais rica
morfologicamente, surge como uma língua com uma ordem de palavras mais livre do
que o português:
A extraordinária riqueza do sistema morfológico das Línguas Eslavas
está na origem de uma Sintaxe relativamente flexível quanto à ordem
dos constituintes. Assim, embora a ordem de base da frase eslava seja
SVO, as ordens alternativas OVS ou OSV surgem com frequência, embora
com cargas pragmáticas diferenciadas. (Batoréo, 2010: 82)
A fim de se perceber melhor como funciona a tradução da ordem dos constituintes
polaco-português, atente-se no seguinte exemplo apresentado em Batoréo (2010:
82):
Se traduzirmos palavra-a-palavra as três frases polacas acima citadas, obtemos,
em português: (i) uma frase gramatical e fiel ao original: ‘A Barbarazinha
gosta do Joãozinho'; (ii) uma frase não-gramatical (a agramaticalidade,
indicada pelo asterisco, inverte o sentido da frase, atribuindo os respetivos
papéis temáticos de modo diferente do que no original): *'O Joãozinho gosta da
Barbarazinha', por fim, (iii) obtemos uma frase também agramatical (indicada
pelo asterisco) tanto a nível sintático como semântico: *'O Joãozinho a
Barbarazinha ama'
2. Análise qualitativa do corpus reunidoe descrição dos fenómenos linguísticos
observados
A pergunta de investigação colocada acima, na seção (1): As frases com ordem
básica SVO em polaco são traduzidas para português com a ordem canónica SVO?
parte do pressuposto de que não haverá alteração sintática quanto à ordem dos
constituintes da frase polaca traduzida para português, uma vez que se trata da
ordem não marcada em ambas as línguas. Após a comparação dos textos de partida
e de chegada, observou-se a regularidade esperada, conforme a ilustração nos
dois exemplos seguintes, (1) e (2)[5]:
No exemplo (1), Stryjkowski (1882: 42) e Wódkowski (1990: 46), a ordem
sintática polaca SVO é mantida na tradução literal para português. O exemplo
apresenta ainda a técnica de tradução da amplificação, que consiste na
introdução de detalhes ausentes no texto de partida, neste caso, o determinante
possessivo “a sua”, o que se entende à luz da lei da explicitação.
O exemplo (2), Stryjkowski (1882: 42) e Wódkowski (1990: 47), ilustra uma
tradução literal e como tal mantém a ordem dos constituintes da frase polaca. O
facto de a tradução portuguesa conter mais palavras do que o original polaco
(‘o', ‘um', ‘de') prende-se com diferenças estruturais entre as duas línguas: o
polaco não tem artigos e, na expressão de posse/ pertença, emprega o caso
genitivo, quando o português precisa da preposição ‘de', como em ‘grito de
alegria'. Por conseguinte, em (1) e (2), as duas frases constituem exemplos
daquela que é a prática tradutória esperada, ou seja, a ordem SVO em polaco é
preservada na tradução para português.
A segunda pergunta de investigação por nós inicialmente apresentada parte da
hipótese de que as frases com ordens sintáticas alternativas em polaco, OVS e
OSV, sejam traduzidas para português com a ordem canónica SVO, uma vez que a
tradução literal (palavra-a-palavra) pode resultar em frases agramaticais ou
marcadas, que desvirtuam o sentido.
Em busca de exemplos ilustrativos desta hipótese no seio do nosso corpus,
deparámo-nos com várias ocorrências, que ilustram a tradução polaco-português
através da técnica OVS ou OSV (PL) → SVO (PE), de entre as quais destacamos
duas, os exemplos (3) e (4):
No exemplo (3), Stryjkowski (1882: 14) e Wódkowski (1990: 18), a ordem dos
constituintes básicos da frase em polaco apresenta a sequência OSV,
correspondendo à tradução portuguesa com a ordem canónica SVO, tal como
esperado. O complemento direto polaco takiego zaszczytu (‘tal distinção')
encontra-se em polaco no genitivo, porque a forma negativanikt nie dostąpił
(‘ninguém gozou') obriga ao uso deste caso.
No exemplo (4), Stryjkowski (1882: 20) e Wódkowski (1990: 23-24), a frase
apresenta ordem OVS em polaco, sendo que a sua tradução para português é também
efetuada com a ordem canónica esperada SVO. Na tradução deste enunciado,
verifica-se ainda o uso da técnica da transposição (Molina e Albir, 2002: 499)
que consiste em alterar a classe das palavras: Kościoła ‘da Igreja' (nome,
marcado pelo genitivo) – ‘eclesiásticos' (adjetivo).
Os exemplos (3) e (4) acima apresentados ilustram uma prática tradutória
esperada e respondem afirmativamente à nossa pergunta de trabalho i.e., quando
a frase polaca apresenta a ordem OSV ou OVS, a sua tradução para português pode
realizar-se com a ordem canónica SVO. Trata-se da aplicação de uma técnica de
tradução denominada inversão (Molina e Albir, 2002: 500).
A seguir, iremos abordar a terceira questão de investigação por nós
inicialmente apresentada: Será possível traduzir para português as frases com
ordens sintáticas alternativas em polaco, OVS e OSV, com outra ordem que não
seja a ordem canónica? Se sim, então que ordem/técnica pode o tradutor aplicar
na sua tradução para português?
Efetivamente, a tradução das frases polacas com as ordens OVS e OSV para
português através da ordem canónica SVO poderá não constituir uma norma nas
técnicas de tradução polaco-português porque, em português, a ordem dos
constituintes da frase não é tão rígida como, por exemplo, no inglês. Cunha e
Cintra (1987) advertem que
(…) [a]o reconhecermos a predominância da ordem directa em português,
não devemos concluir que as inversões repugnem ao nosso idioma. Pelo
contrário, com muito mais facilidade do que outras línguas (do que o
francês, por exemplo) ele nos permite alterar a ordem normal dos
termos da oração. (Cunha & Cintra, 1987: 162)
Seguidamente, os autores exemplificam vários tipos de construções que designam
como inversão, entre as quais se encontra o caso que constitui o objeto do
nosso estudo:
(…) orações que se iniciam pelo predicativo, pelo objecto (directo ou
indirecto) ou por adjunto adverbial. (Cunha & Cintra, 1987: 165)
Noutra passagem, os autores oferecem uma explicação e classificação para a
deslocação do complemento direto:
Quando se quer chamar a atenção para o OBJECTO DIRECTO que precede o
verbo, costuma-se repeti-lo. É o que se chama OBJECTO DIRECTO
PLEONÁSTICO, em cuja constituição entra sempre um pronome pessoal
átono: Palavras cria-as o tempo e o tempo as mata. (José Cardoso
Pires). [Destaques dos autores] (Cunha e Cintra, 1987: 165)
Mateus et al. (1989) distinguem na estrutura frásica dois princípios:
(…) um texto fala sempre de um ou mais assuntos – o(s) tópico(s) – e,
em geral, o que diz acerca dele(s) – o comentário – acrescenta
elementos cognitivos adicionais ao que constituía o nosso
conhecimento anterior desse objecto. [Destaques das autoras] (Mateus
et al., 1989: 148)
Mais adiante, as autoras (1989: 151) acrescentam que:
[e]m geral, numa frase declarativa não marcada, à estrutura
sintáctica sujeito-predicado corresponde a estrutura temática tópico-
comentário. (…) nas frases não marcadas o sujeito tem, em geral, a
função pragmática (ou textual) de tópico e o predicado constitui o
comentário acerca desse tópico. [Destaques das autoras] (Mateus et
al., 1989: 151)
Tópicos não marcados são, por conseguinte, os tópicos das frases com ordem
canónica SVO, nas quais o sujeito e o tópico coincidem. Porém e tal como as
autoras advertem
[e]xistem estratégias que permitem seleccionar como tópico frásico um
constituinte distinto do sujeito:
(13) (a) Esse livro, o João leu. (…)
(14) (a) Esse livro // o João leu-o. (…).
(Mateus et al., 1989: 152)
Nos enunciados supra citados, o tópico, o primeiro constituinte da frase, não
coincide com o sujeito; este tipo de tópico é denominado pelas referidas
autoras como tópico marcado.
Estudos sobre estruturas frásicas, desenvolvidos nos últimos anos em Portugal,
apontam para a ocorrência de enunciados que não obedecem à ordem SVO,
considerada, em português, canónica ou não marcada. Estes enunciados
construídos de acordo com a ordem tópico-comentário, são denominados
“construções de topicalização” (CT) na Gramática do Português de Raposo et al.
(2014: 401-426). Na referida gramática, o capítulo sobre Construções de
Topicalização é da autoria de Inês Duarte[6], a quem se devem os primeiros
estudos sobre este fenómeno em português, com a dissertação de doutoramento
intitulada A Construção de Topicalização na Gramática do Português. Regência,
Ligação e Condições sobre Movimento (1989).
Segundo Duarte (2014: 401), o interesse pelas construções de topicalização
reflete as tendências da análise sintática, iniciadas pelos estruturalistas
checos, que criaram as noções de “tema” e “rema”, mais tarde transformadas pelo
linguista Charles F. Hockett em “tópico-comentário”. A introdução do termo
“tópico” resultou da observação de que o primeiro constituinte da frase nem
sempre coincide com o sujeito, o que, por sua vez, conduziu à necessidade de
complementar a distinção aristotélica entre sujeito e predicado com a distinção
entre tópico e comentário, sendo tópico definido «como a expressão linguística
sobre que se diz alguma coisa» (Duarte, 2014: 401).
No caso das frases SVO, o sujeito coincide com o tópico e o predicado com o
comentário. Retomemos o exemplo (4):
Se aplicarmos uma construção de topicalização à mesma frase, obtemos o seguinte
enunciado:
Tal como se depreende dos exemplos supra apresentados, as estruturas sujeito-
predicado e tópico-comentário podem coincidir, mas isto nem sempre acontece.
Assim, o elemento inicial é o tópico da frase que coincide em (4.a) com o
sujeito da mesma, tal como o predicado coincide com o comentário. No entanto,
em (4.b) o elemento inicial é o tópico, embora não seja o sujeito da frase;
este surge logo a seguir ao tópico, constituindo o comentário. Ainda assim, as
frases (4.a) e (4.b) são ambas exemplos de construções de tópico-comentário.
Mateus et al. (1989) classificam frases do tipo (4.a) como construções de
tópico não marcado e do tipo (4.b) como construções de tópico marcado. As
primeiras obedecem à ordem SVO e as segundas constituem o objeto do nosso
estudo (cf. Duarte, 2014: 401-426).
Na senda dos estudos acima referenciados e retomando o estudo da ordem das
palavras na frase no seio do nosso corpus, verificamos que o tradutor, para
além de aplicar a técnica de tradução da inversão, que consiste em verter uma
frase polaca com ordem sintática OVS ou OSV para português, utilizando a ordem
canónica SVO, pode optar, também, pela topicalização do complemento direto da
frase.
Duarte (2014) descreve assim a construção da topicalização:
Uma das construções de tópicos marcados característica das línguas
românicas envolve a retoma do tópico marcado por um pronome clítico,
(…) havendo um nexo gramatical muito forte entre este e aquele. Esta
construção denominada, na literatura, Deslocação à Esquerda Clítica,
está ilustrada em (34):
(34) a. A mim, ninguém me contou essa versão da história.
b. Os gerentes, trata-os como se fossem míseros contínuos. [Destaque
da autora] (Duarte, 2014: 412)
Analisando o exemplo (34.b) assinalado acima, observamos que o tópico marcado é
‘os gerentes' e o comentário é ‘trata-os como se fossem uns míseros contínuos'.
No nosso corpus, apuraram-se algumas frases do tipo (34.b), ou seja, verificou-
se que a tradução de frases polacas com as ordens OVS e OSV também pode ser
executada para português com a topicalização do complemento direto.
Selecionámos cinco enunciados que topicalizam o complemento direto na tradução
polaco-português. Os exemplos de (5) a (9), que seguidamente analisamos,
enquadram-se no âmbito do fenómeno linguístico descrito por Duarte (2014: 412).
Seguem-se alguns dos enunciados construídos com base na topicalização do
complemento direto, retomado pelo clítico marcado com o caso acusativo,
observados na tradução portuguesa de Tommaso del Cavaliere.
No exemplo (5), Stryjkowski (1882: 10) e Wódkowski (1990: 14), o tópico – ‘este
poema' - éo complemento direto do enunciado e encontra-se deslocado para a
esquerda. O tópico não coincide com o sujeito da frase (que é nulo). O
comentário é ‘encontrei-o depois entre os sonetos e madrigais'. No comentário o
tópico é retomado pelo pronome clítico ‘o'.
No exemplo (6), Stryjkowski (1882: 10) e Wódkowski (1990: 14), o tópico é
‘todos os papéis do Artista' e o comentário ‘tirámo-los de uma arca'. No
tópico, verifica-se que o tradutor usou uma técnica de tradução, classificada
como amplificação (Molina e Albir, 2002: 510), ao introduzir um detalhe não
formulado no texto de partida: ‘do Artista'. No comentário ‘tirámo-los de uma
arca', o pronome clítico ‘os' retoma o tópico.
No exemplo (7), Stryjkowski (1882: 30) e Wódkowski (1990: 34), o tópico é ‘as
últimas seis liras'. Nesta frase, o caso genitivo aplicado ao nome lirów
‘liras' é regido pelo numeral. O tópico é retomado no comentário com o pronome
clítico ‘as'. A tradução emprega ainda uma técnica denominada modulação, em que
se traduz wziął (‘levou') – 3.ª pessoa do singular do tempo passado– como'dei'
– 1ª pessoa do singular do Pretérito Perfeito –, e que consiste numa mudança de
ponto de vista (perspetivação) em relação ao texto de partida (Molina &
Albir, 2002: 510). Esta técnica faz com que o verbo e o sujeito do enunciado
sejam diferentes no texto polaco (em que é o artesão que leva o dinheiro) e na
tradução portuguesa (em que é o autor que dá o dinheiro ao artesão).
No exemplo (8), Stryjkowski (1882: 32) e Wódkowski (1990: 36), o tópico, ‘as
suas cartas e os seus panfletos, reproduzidos em numerosas cópias', é alvo de
amplificação (Molina & Albir, 2002: 510) na tradução com o acréscimo de ‘em
numerosas cópias'. O tópico é retomado pelo pronome clítico ‘os'. Por sua vez,
o complemento ‘por toda a Itália' relativamente ao texto polaco sofre uma
explicitação (Molina e Albir, 2002: 500), uma técnica de tradução que consiste
em tornar explícita informação que no texto de partida é implícita: ‘por todo o
país'.
No exemplo (9), Stryjkowski (1882: 82) e Wódkowski (1990: 87), o tópico ‘a
nossa vida' é retomado pelo pronome clítico ‘a'.
Os exemplos acima apresentados ilustram a Deslocação à Esquerda Clítica e têm
em comum as seguintes propriedades segundo Duarte (2014: 415):
(i) a retoma do tópico é obrigatoriamente um pronome clítico; (ii)
existe entre ambos identidade referencial e concordância em traços de
pessoa, número e género; e (iii) o tópico tem a mesma forma que teria
se ocorresse no interior do comentário com a função sintática
desempenhada pela sua retoma clítica.
(Duarte, 2014: 415)
Para além das características referidas por Duarte (2014), outras propriedades
comuns evidenciam-se nos exemplos de 5-9: (i) o primeiro constituinte da frase
é o tópico marcado e não coincide com o sujeito da mesma; (ii) o tópico
marcado, numa frase com ordem SVO, seria o complemento direto.
Duarte (2014: 404) refere ainda que:
[o] estatuto periférico destas posições é assinalado na escrita
através de uma vírgula ou, em certos casos, de reticências; na
oralidade, as expressões que ocupam estas posições apresentam-se
sempre demarcadas entoacional ou ritmicamente do resto da frase.
(Duarte, 2014: 404)
Todavia, nos enunciados do nosso corpus, a vírgula foi dispensada.
Na Tabela 1 sintetizamos a estrutura das construções frásicas supra descritas,
reunidas nos exemplos de (5) a (9).
O fenómeno tradutório observado e ilustrado pela estrutura linguística da
Deslocação à Esquerda Clítica do complemento direto – indica que, não obstante
a preferência demonstrada pela ordem canónica SVO, a língua portuguesa oferece
aos tradutores de polaco-português uma alternativa ao uso da ordem canónica. Na
tradução de Tommaso del Cavalieri, a ocorrência da topicalização do complemento
direto com a respetiva retoma clítica poderá ser interpretada como uma
regularidade e como um fenómeno tradutório, revelador da sensibilidade do
tradutor face à variação do padrão de alinhamento sintático do texto de
partida, bem como do seu desejo de o imprimir no texto de chegada.
3. Fenómenos tradutórios apurados e discussão dos resultados da análise
efetuada
A análise apresentada com base no corpus escolhido para o estudo mostra que, do
ponto de vista da tradução polaco-português e no que respeita à ordem dos
constituintes da frase, existem três tendências ou regularidades que podem ser
enunciadas de modo seguinte:
(i) quando a frase polaca apresenta a ordem SVO, a tradução para português
realiza-se com a mesma ordem SVO;
(ii) quando a frase polaca apresenta a ordem OVS ou OSV, a tradução para
português pode realizar-se com a ordem canónica SVO;
(iii) quando a frase polaca apresenta a ordem OVS ou OSV, a tradução para
português pode também realizar-se com a topicalização do complemento direto,
originando uma Deslocação à Esquerda Clítica.
A reflexão decorrente da observação das regularidades acima apresentadas
conduz-nos aos Estudos Descritivos de Tradução, designadamente a Toury (1995:
11), autor que preconiza uma análise conjunta dos três aspetos inerentes à
tradução: (i) função, (ii) processo e (iii) produto:
The three aspects have interdependencies we must take into account if
we are ever to gain insight into the intricacies of translational
phenomena. (Toury, 1995: 11)
Efetivamente, é vantajoso estabelecer a distinção entre processo e produto de
tradução. Assim, o processo prende-se com as opções que o tradutor leva em
consideração aquando da tradução e, em última instância, implica uma tomada de
decisão entre as opções disponíveis. Pelo contrário, o produto é o resultado do
processo de tradução, é o fenómeno tradutório observável no texto de chegada.
Ao efetuar a análise comparativa entre o texto de partida e o texto de chegada,
apuramos determinados fenómenos tradutórios, que podem ser descritos e
explicados em si; no entanto, se quiséssemos recorrer ao processo de tradução
para explicar os fenómenos tradutórios, tal implicaria recorrer à entrevista
com o tradutor, prática pouco aplicada na análise do produto da tradução no
âmbito dos Estudos Descritivos de Tradução (Brownlie, 2003: 106). Assim,
podemos apenas tecer considerações acerca dos procedimentos e das opções do
tradutor conducentes a determinadas escolhas – o produto da tradução.
A identificação de regularidades na tradução polaco-português a nível da ordem
dos constituintes da frase aponta para um processo de tradução, no qual o
tradutor, consciente das possibilidades existentes, aplicou tanto a ordem
canónica da frase SVO como a Deslocação à Esquerda Clítica. A ordem alternativa
com topicalização do complemento direto pode ser interpretada como tendo raízes
na língua de partida, apesar de se apresentar como uma estrutura específica do
português.
Do ponto de vista dos Estudos Descritivos de Tradução, se a regularidade
observada OVS ou OSV (PL) → SVO (PE)[7] constitui um traço característico da
lei da normalização em tradução (Toury 1995: 275), já a segunda regularidade
observada no processo de tradução OVS ou OSV (PL) → Deslocação à Esquerda
Clítica (PE) parece ter origem em características do texto de partida,
nomeadamente no facto de o primeiro constituinte da frase polaca ser o
complemento direto. Por conseguinte, esta técnica de tradução pode ser
interpretada como uma interferência da estrutura sintática do polaco no
português, que deixa transparecer um procedimento denominado decalque (Molina e
Albir, 2004: 499). O facto de o tradutor ser falante nativo do polaco também
poderá estar na origem desta interferência, que culmina com o uso da
topicalização do complemento direto.
Se, por um lado, o uso da topicalização do complemento direto na tradução
portuguesa pode ter as suas raízes na ordem OVS e OSV na língua de partida, que
– neste caso – é a língua materna do tradutor, e assim numa eventual
interferência da sintaxe polaca no texto alvo em português, por outro lado, o
uso da construção Deslocação à Esquerda Clítica em português com a respetiva
cliticização exige um conhecimento (quase) nativo da língua alvo.
Seguindo a argumentação de Toury (1995: 267), podemos considerar a
possibilidade de esta eventual interferência da língua de partida, o polaco,
sobre a língua de chegada, o português, ser uma interferência positiva, na
medida em que o tradutor acaba por recorrer a uma estrutura que dá origem a uma
construção característica do português – a Deslocação à Esquerda Clítica. Por
isso, Toury (1995:267) também ressalva que nem toda a interferência é negativa
e que as duas leis, a da normalização e da interferência, se encontram
interligadas.
Relativamente à função que as regularidades identificadas desempenham na
tradução, tudo indica que a aplicação da técnica OVS e OSV (PL) → SVO (PE) se
insere na lei da normalização, que Toury (1995:267-274) enunciou grosso modo
como a perda de características e variações da língua de partida na medida em
que a tradução obedece às normas da língua de chegada. Porém, a aplicação da
técnica de tradução que consiste na Deslocação à Esquerda Clítica parece
assumir ainda outras funções, tal como o sugerem Cunha e Cintra (1984/1987)
[d]os factores que normalmente concorrem para alterar a sequência
lógica dos termos de uma oração, o mais importante é, sem dúvida, a
ênfase. (Cunha & Cintra, 1984/1987: 162)
Deste modo, a Deslocação à Esquerda Clítica pode ainda ser encarada como uma
técnica de tradução de natureza e função estilístico-literária, já que chama a
atenção para o complemento direto, destacando-o sintaticamente.
Por seu lado, Mateus et al. (1989) salientam o envolvimento de outras funções
na construção frásica com Deslocação à Esquerda Clítica:
[e]m geral, um tópico tem a função cognitiva de seleccionar e activar
um elemento existente na memória passiva do alocutário, transferindo-
o para uma memória activa em que possa ser combinado com novos
elementos cognitivos introduzidos pelo comentário. Esta função
cognitiva dos tópicos determina que, habitualmente, os seus
referentes tenham sido apresentados no discurso anterior ou sejam, na
situação concreta em que o texto está a ser produzido e interpretado,
acessíveis ao locutor e ao alocutário — ou seja, o tópicos são em
geral, co(n)-textualmente dependentes. [Destaques das autoras]
(Mateuset al.,1989: 149)
Se, tal como afirmam Bartnicka e Satkiewicz (2010: 154), em polaco, a ordem do
sujeito e do predicado é condicionada por fatores discursivos (lógicos),
psicológicos (emocionais) e estilísticos (rítmicos), a tradução para português
das frases polacas OVS e OSV com ordem SVO implica a perda de fatores de
natureza enfática. Já a aplicação da Deslocação à Esquerda Clítica na tradução
polaco-português pode, pelo menos, menorizar as referidas perdas, em termos da
sua motivação.
4. Conclusões
Em conclusão, observámos que, apesar da expetativa inicial de que uma maior
flexibilidade sintática da língua polaca em relação à língua portuguesa pudesse
constituir uma dificuldade tradutória, que acarretasse a perda de valores
discursivo-estilísticos, verificou-se que a língua portuguesa dispõe de uma
estrutura sintática que em certos contextos pode equivaler às ordens
alternativas polacas OVS e OSV – a Deslocação à Esquerda Clítica (DEC). A
figura abaixo apresentada sintetiza a forma como a frase polaca é traduzida
para português no corpus estudado.
A Tabela_2 apresenta, resumidamente, as respostas qualitativas às três
perguntas de investigação inicialmente colocadas: (i) as frases com ordem
básica SVO em polaco são traduzidas para português com a ordem canónica SVO;
(ii) as frases com ordens sintáticas alternativas em polaco, OVS e OSV, são
traduzidas para português com a ordem canónica SVO; (iii) as frases com ordens
sintáticas alternativas em polaco, OVS e OSV, também podem ser traduzidas para
português com a estrutura sintática Deslocação à Esquerda Clítica.
Assim, a construção da Deslocação à Esquerda Clítica, em termos de processos
tradutórios, estrutura-se como uma técnica na tradução direta polaco-português,
obedecendo às características enunciadas por Molina e Albir (2002: 509): (i)
está patente no resultado da tradução; (ii) é classificada por comparação com o
original; (iii) afeta microunidades do texto; (iv) é discursiva e contextual e
(v) tem uma função própria.
Ainda que o presente estudo apresente uma abordagem qualitativa sobre a
tradução polaco-português da ordem das palavras na frase, existe a necessidade
de aprofundar os resultados apurados através da realização do estudo
quantitativo correspondente, numa fase mais avançada da investigação.
De igual modo, em aberto e para um estudo posterior, permanece, neste momento,
a questão de saber se a Deslocação à Esquerda Clítica é uma técnica de tradução
comummente empregue por vários tradutores de polaco-português por interferência
da língua polaca ou se é, antes, uma marca quer do tradutor do corpus por nós
aqui analisado quer, eventualmente, do revisor português que efetuou a
verificação final do texto da tradução.