Orações parentéticas introduzidas por ‘como': contributos para a sua
caracterização semântico-pragmática
0. Introdução [1]
Um dos filões centrais da investigação linguística contemporânea é a análise
dos diferentes tipos de articulações de orações, quer ao nível da frase, quer
ao nível do discurso/texto. Ao nível da frase complexa, é consensual que há
diferentes graus de integração sintática, na frase matriz, das orações
subordinadas adverbiais, o que levou à distinção entre subordinadas integradas
e subordinadas periféricas (cf., para o português, Lobo 2013). Na minha
opinião, esta distinção é relevante e válida nos casos em que o objeto final
resultante da conexão é ainda frásico (cf. testes propostos em Peres 1977 e
retomados em Mendes 2013), o que corresponde a uma proposição complexa do ponto
de vista semântico e a um só enunciado do ponto de vista pragmático.[2] A
descrição e explicação dos diferentes tipos de articulação de orações que
transcendem o nível da frase é hoje largamente tributária das teorias sobre a
coerência discursiva/textual, que, independentemente das divergências e/ou das
flutuações terminológicas, convergem no seguinte ponto: há relações discursivas
que articulam coerentemente os distintos enunciados que integram um discurso/
texto, correspondendo cada um desses enunciados a atos de fala autónomos, e
essas relações operam em diferentes domínios ou planos de estruturação do
discurso/texto. Dois desses domínios parecem-me recolher um consenso alargado:
o domínio ideacional ou do conteúdo, tradicionalmente explorado e privilegiado
no âmbito das teorias semânticas denotacionais ou referenciais, e o domínio
interpessoal, dominantemente explorado no âmbito das abordagens pragmático-
funcionais do discurso. O primeiro domínio mencionado prende-se com os usos da
linguagem em que é dominante a função de representação do mundo sócio-físico; o
segundo envolve os usos que modelizam raciocínios e avaliações do falante e
plasmam as dimensões sócio-interacionais da comunicação humana (cf. Halliday
1973, Mann & Thompson 1988, Sweetser 1990, Sanders et al. 2001, e.o.).[3]
Por outro lado, parece hoje também razoavelmente consensual a ideia de que
muitas das relações discursivas que interligam enunciados no âmbito de um texto
podem ser explicitamente marcadas por conectores ou apenas inferidas no
processamento.
Tendo como pano de fundo estas considerações, proponho-me contribuir, com este
estudo, para a caracterização semântico-pragmática de algumas orações
introduzidas por ‘como' no português europeu contemporâneo (PEC), escassamente
contempladas nas gramáticas disponíveis.[4] Como é sabido, há construções muito
distintas que envolvem orações introduzidas por ‘como': construções
comparativas (1), construções que envolvem orações de modo (2), e construções
que agruparei sob a designação de orações parentéticas (ou ditas de
comentário), ilustradas em (3) (4) e (5):
(1) O Rui é tão trabalhador como o irmão.
(2) O Pedro falou como o pai teria falado.
(3) Estou desempregado, como sabes.
(4) “Algumas repúblicas da CEI já manifestaram interesse em criar moeda
própria, como é o caso da Ucrânia (…)”.
(5) “O trabalho de dramaturgia, a cargo de Miguel Romeira, procura, como diz o
próprio encenador, «conferir ao texto um novo impacto e actualidade»”.
Centrar-me-ei nas orações paradigmaticamente ilustradas pelos exemplos (3) a
(5), às quais acrescentarei outros exemplos.[5]Serão utilizados neste artigo
dados empíricos recolhidos aleatoriamente no CETEMPúblico (sempre assinalados
por aspas) e alguns exemplos construídos. A estrutura do trabalho é a seguinte:
na secção 1, analisam-se brevemente aspetos de natureza sintática; na secção 2,
a análise incide nas funções semântico-pragmáticas das orações em apreço; na
secção 3, apresentam-se as principais conclusões do estudo.
1. Aspetos sintáticos: breves considerações
As orações introduzidas por ‘como' que constituem o cerne desta pesquisa têm
vindo a ser designadas de orações parentéticas (ou de comentário), com base em
critérios de natureza essencialmente sintática, nomeadamente a não integração
sintática na oração com que se articulam, coadjuvados por critérios prosódicos
[6]. Vejam-se então algumas propriedades sintáticas das estruturas em apreço.
Em primeiro lugar, têm mobilidade ou flexibilidade posicional, podendo ocorrer
em posição final (3), inicial 3(a) ou interpolada 3(b):
3. (a) Como é sabido, estou desempregado.
3. (b) Estou, como é sabido, desempregado.
No entanto, verifica-se que a mobilidade sofre restrições em casos como (4).
Como se atesta em 4 (a), a oração introduzida por ‘como' não pode ocorrer em
posição inicial:
4. (a) *Como é o caso da Ucrânia, algumas repúblicas da CEI já manifestaram
interesse em criar moeda própria.
Já 4 (b) é perfeitamente aceitável:
4. (b) Algumas repúblicas da CEI, como é o caso da Ucrânia, já manifestaram
interesse em criar moeda própria.
A rejeição da posição inicial em 4 (a) deve-se ao facto de a oração introduzida
por ‘como' expressar uma relação de exemplificação, como se verá na secção
seguinte. Em (5), a mobilidade da oração introduzida por ‘como' não sofre
qualquer restrição.
Por outro lado, o produto resultante da conexão não parece ser uma frase
complexa, como se pode comprovar pelos testes avançados em Peres (1977):
3. (c) *O Rui acredita [que [estou desempregado, como é sabido.]]
3. (d) *Infelizmente, [estou desempregado, como é sabido.]
4. (c) *O Rui acredita [que [algumas repúblicas da CEI já manifestaram
interesse em criar moeda própria, como é o caso da Ucrânia.]]
4. (d) *Infelizmente, [algumas repúblicas da CEI já manifestaram interesse em
criar moeda própria, como é o caso da Ucrânia.]]
5 (c) *O Rui acredita [que [o trabalho de dramaturgia, a cargo de Miguel
Romeira, procura, como diz o próprio encenador, «conferir ao texto um novo
impacto e actualidade».]]
5 (d) * Infelizmente, [o trabalho de dramaturgia, a cargo de Miguel Romeira,
procura, como diz o próprio encenador, «conferir ao texto um novo impacto e
actualidade».]]
O asterisco, em 3 (c), significa que a oração ‘como sabes' não funciona como
complemento do verbo ‘acreditar'. Ou seja, a crença do Rui apenas envolve o
conteúdo proposicional ‘estou desempregado'. O mesmo acontece nos exemplos 4
(c) e 5 (c). Em 3 (d), o asterisco significa que no escopo do advérbio de frase
se encontra apenas a primeira oração, estando excluída a oração parentética.
Análise idêntica suscitam os exemplos 4 (d) e 5 (d).Parece, pois, claro, que
não estamos perante um caso de subordinação adverbial. Paráfrases fiéis de (3),
(4) e (5) seriam 3 (e), 4 (e) e 5 (e), o que evidencia a autonomia ilocutória
do segmento introduzido por ‘como':
3. (e) Estou desempregado. E isto/isso é sabido.[7]
4. (e) Algumas repúblicas da CEI já manifestaram interesse em criar moeda
própria. Uma delas é a Ucrânia.
5. (e) O trabalho de dramaturgia, a cargo de Miguel Romeira, procura «conferir
ao texto um novo impacto e actualidade».É o que diz o próprio encenador.
A noção de suplementação, avançada por Huddleston e Pullum (2002) e retomada
por Peres e Mascarenhas (2006) e Mendes (2013), pode ajudar a esclarecer o
estatuto sintático destas orações. Como assinalam os dois primeiros autores
mencionados, “it is the lack of integration into the syntactic structure that
distinguishes supplementation from dependency constructions and coordination.
But supplementation is like coordination in being non-headed: since the
supplement is not integrated in the structure it cannot function as a dependent
to any head.” (Huddleston e Pullum, 2002:1350). E, mais adiante, os mesmos
autores afirmam: “although supplements are not syntactically dependent on a
head, they are semantically related to what we call their anchor.” (Ibidem,
1351). Esta “relação semântica” será abordada na próxima secção. Para já, direi
apenas que os dois membros da construção configuram um caso de articulação
textual de orações, o que significa que o produto final resultante da conexão é
um (pequeno) texto, ou seja, uma unidade que funciona semântico-pragmaticamente
como um todo coerente, no plano do uso da língua.[8]
Assim, propõe-se que as orações introduzidas por ‘como' que ocorrem nos
exemplos sejam analisadas como suplementos, dado que se articulam
semanticamente, como se de um aposto se tratasse, a uma oração âncora.[9]
Prosodicamente, a oração suplemento destaca-se da âncora por pausas, marcadas
na escrita por vírgula, travessão ou até parêntesis, e funciona como
constituinte prosódico autónomo. Tais propriedades prosódicas evidenciam a
autonomia sintática da oração, que, por seu turno, reflete, a meu ver, a sua
autonomia ilocutória, como a paráfrase 4 (e) parece sustentar.
2. Aspetos semântico-pragmáticos
Importa agora analisar quais são as funções semântico-pragmáticas desempenhadas
pela oração suplemento iniciada por ‘como' que garantem a sua articulação
coerente com a oração âncora. Procurar-se-á, partindo de dados do corpus,
estabelecer uma tipologia destas orações.
2.1. O primeiro subtipo de orações parentéticas será designado de orações de
exemplificação, paradigmaticamente ilustrado por (4), que aqui se retoma:
(4) Algumas repúblicas da CEI já manifestaram interesse em criar moeda própria,
como é o caso da Ucrânia.
Neste tipo de contexto, muito frequente no corpus, a oração introduzida por
‘como', com a estrutura fixa ‘como é o caso de SN', articula-se com a sua
âncora através de uma relação discursiva de exemplificação, aproximando-se
assim dos segmentos introduzidos por marcadores discursivos elaborativos
[10]como por exemplo, nomeadamente, designadamente, entre outros, que sinalizam
a subsequente particularização de informação temática previamente expressa.
Veja-se a equivalência semântica entre (4) e (4f):
(4f) Algumas repúblicas da CEI já manifestaram interesse em criar moeda
própria, designadamente/por exemplo, a Ucrânia [já o manifestou].
Note-se que a relação discursiva em apreço é legitimada pela natureza anafórica
do conector ‘como', que permite a retoma do predicado da âncora.
É relevante assinalar que há fortes restrições semânticas no que toca ao
conteúdo da oração de exemplificação. Mais concretamente, voltando ao exemplo,
verifica-se que a Ucrânia é um membro do conjunto ‘algumas repúblicas da CEI'.
Assim, a oração suplemento contém tipicamente informação que individualiza um
membro de um conjunto designado por um SN anteriormente expresso. Veja-se a
inaceitabilidade de (6), que não verifica as restrições semânticas mencionadas:
(6) Há um país da CEI que já manifestou interesse em criar moeda própria,
como é o caso da Ucrânia.
O corpus fornece ainda exemplos em que a relação de exemplificação marcada por
‘como é o caso de SN' envolve mais do que um elemento pertencente ao conjunto
denotado pelo SN presente na âncora:
(7)“Além dos dias nacionais, na Expo-98, haverá também «dias de honra»,
dedicados aos patrocinadores oficiais da Exposição, como é o caso da Sony, da
Coca-Cola, da SuperBock e da Vitalis, que já escolheram as datas em que vão
celebrar a sua existência, na capital portuguesa.”
A ocorrência da negação está vedada neste tipo de orações:
(4g) Algumas repúblicas da CEI já manifestaram interesse em criar moeda
própria, como não é o caso da Ucrânia.
Tal facto resulta da função semântico-pragmática assinalada: se o falante se
propõe exemplificar o que foi asserido na âncora, é requerida a concordância de
polaridade.[11]
Em todos os casos deste tipo, o locutor, ao aduzir um (ou mais) exemplo(s),
visa fornecer uma prova que valida a sua asserção.
2.2. Nesta subsecção, analisam-se exemplos de suplementos oracionais
introduzidos por ‘como' que genericamente serão subsumidos pela designação
genérica de orações de comentário. Como se verá, é possível granular a
tipologia, dentro desta ampla classe. De qualquer modo, assume-se que a relação
discursiva relevante, que articula coerentemente a âncora e o suplemento, é a
de Comentário: o falante comenta o conteúdo proposicional da âncora, avaliando-
o de formas diversas.
O exemplo (3), bem como os que se seguem, ilustram um primeiro subtipo de
orações de comentário:
(8) “Aliás, quem decide sobre a programação televisiva é, em última análise, o
próprio telespectador, já que, como é sabido, as programações obedecem ao
critério fundamental da preferência do público.”
(9) “A geração criada ou influenciada pela revolta libertária francesa de Maio
de 1968 foi, como se sabe, muito marcada pelo maoísmo.”
(10) Como sabes, vou emigrar.
Em (3), (8) e (9), o falante avalia o conteúdo da oração âncora como informação
conhecida, partilhada no interior da comunidade. A ocorrência do clítico
impessoal se, a assinalar um sujeito indeterminado do verbo saber, bem como a
construção passiva sem agente da passiva expresso, legitimam a leitura
proposta.[12]Em (10), o falante avalia o conteúdo da âncora como conhecido pelo
interlocutor. Em todos os exemplos, como é substituível por conforme.
Verifica-se, nestes contextos, uma forte afinidade entre estas orações de
comentário e as orações relativas de frase, como se atesta em (9 a):
9 (a) A geração criada ou influenciada pela revolta libertária francesa de Maio
de 1968 foi muito marcada pelo maoísmo, o que é sabido.
No entanto, como pertinentemente assinala Lobo (2013: 2019), a oração
comentário introduzida por ‘como', contrariamente à relativa de frase, não
admite a ocorrência da negação. Veja-se (9b):
9 (b) *A geração criada ou influenciada pela revolta libertária francesa de
Maio de 1968 foi muito marcada pelo maoísmo, como não é sabido.
Uma explicação para este comportamento reside na função semântico-pragmática da
oração parentética: ao avaliar o conteúdo asserido na âncora como informação
conhecida, só a polaridade afirmativa é legitimada.[13]
Do ponto de vista discursivo, a opção por construções deste tipo parece-me
configurar tipicamente uma estratégia de validação do dito: ao avaliar o
conteúdo asserido como informação factual conhecida e partilhada, parte
integrante do ‘common ground', o falante posiciona-se apenas como instância
enunciadora de informação ‘taken for granted', apresentada como verdadeira e
incontestável. Esta construção pode estar ao serviço de uma estratégia
discursiva de despersonalização ou ocultação do eu, que mitiga a natureza
categórica da asserção.
Um outro subconjunto atestado no corpus é ilustrado pelos exemplos que se
seguem, que expressam, todos eles um comentário epistémico:
(11) “A lista das espécies resultou, como é claro, bastante incompleta: ficaram
por referir espécies tão importantes como as nogueiras, os amieiros, as
aveleiras, a criptomérias, os diospireiros, as faias, às árvores da borracha,
os larícios, os tulipeiros, as amoreiras, as romãzeiras, etc .”
(12) “Uma Thurman, como é evidente, passou as audições e não se deixou
intimidar pela presença de Robert De Niro.”
(13) “Esta orientação, como é óbvio, decorre da vontade expressa da maioria dos
38 mil accionistas da instituição, com a qual me identifico inteiramente.”
(14) “Ajudando o desempenho das bolsas portuguesas esteve também, como é
lógico, a evolução em alta dos principais mercados de capitais internacionais.”
Em todos estes exemplos, a oração introduzida por ‘como' é substituível por um
advérbio avaliativo orientado para a enunciação, a saber: obviamente,
evidentemente, claramente, logicamente.[14]São muito díspares as tipologias e
as designações de advérbios ou expressões de natureza adverbial deste tipo, na
literatura (cf. Quirk et al. 1985, Biber et al. 1999, Fraser 1999, Huddleston
& Pullum 2002, Kovacci 2000, Costa 2008, Raposo et al 2013, e.o.). Trata-
se, do ponto de vista semântico, de estruturas que funcionam como comentários
sobre todo o conteúdo proposicional da oração âncora, expressando avaliações de
natureza modal. De facto, o comentário ‘como é óbvio' (ou qualquer uma das
outras formulações atestadas), expressa a atitude do falante relativamente à
verdade do que assere, ou, mais rigorosamente, marca o forte grau de
compromisso do falante com o valor de verdade do conteúdo proposicional
asserido na oração âncora. Trata-se, sem dúvida, de uma estratégia discursiva
de reforço do valor de verdade do conteúdo asserido, que concomitantemente
enfatiza a qualidade ou a fiabilidade da evidência que sustenta a asserção.
Este efeito de enfatização pode ser analisado em termos de implicatura
conversacional generalizada, no quadro teórico da pragmática neo-griceana (cf.
Levinson 2000). De facto, uma das condições de felicidade de uma asserção
categórica, expressa através de uma frase declarativa desprovida de qualquer
marcador de modalização, é a crença do falante na verdade do conteúdo
proposicional asserido. Ao acrescentar a oração de comentário, o falante
constrói um enunciado ‘marcado', o que desencadeia uma implicatura, baseada na
exploração da máxima de Modo. Essa implicatura, a meu ver, corresponde à
enfatização da evidência que sustenta a asserção.[15] Ou seja, ao reforçar ou
intensificar o seu compromisso com a verdade do que assere, o falante implicita
que dispõe de provas robustas que sustentam a sua asserção. Assim, nas
construções em análise, para além do reforço modal epistémico, a oração de
comentário, ao avaliar a informação expressa como óbvia, evidente, tem como
efeito discursivo mais saliente a objetivização do dito, perspetivado como
informação fiável, acessível, compartilhada pelo interlocutor, ou mesmo por um
grupo mais alargado onde se inclui o interlocutor, e, consequentemente, não
sujeita a contestação.[16]
No corpus aparecem ainda outros exemplos que envolvem uma avaliação epistémica,
como a seguir se ilustra:
(15) “Se, como é provável, a Assembleia Municipal da Póvoa avalizar o projecto
aprovado por unanimidade pelo executivo municipal, a grande superfície será
obrigada a encerrar aos domingos durante oito meses do ano.”
Tipicamente articuladas como suplemento à prótase de uma construção
condicional, prótase essa que funciona como âncora, estas orações de comentário
qualificam epistemicamente a hipótese expressa, atribuindo-lhe um valor de
probabilidade ou quase-certeza. Tal qualificação parece-me funcionar
discursivamente como uma estratégia de credibilização da apódose: de facto, a
inferência do falante expressa na apódose será tanto mais consistente e
plausível quanto mais provável for (apresentada) a premissa do raciocínio, na
prótase.
Todos os exemplos desta secção ilustram, portanto, orações parentéticas que
expressam um comentário epistémico indexado ao falante, com uma funcionalidade
discursiva clara: reforço do valor de verdade do conteúdo asserido ou
estratégia de legitimação de uma inferência em construções condicionais.
Atente-se agora nos exemplos (16) a (18), que configuram o último sub-conjunto
das orações de comentário atestadas no corpus:
(16) “Os cortes no pessoal -- sempre um processo extremamente penoso neste país
-- aconteceram precipitadamente, como é habitual.”
(17) “Os partidos mais votados foram, como se esperava, os unionistas,
partidários da ligação do território à Grã-Bretanha.”
(18) “O acto foi, como é costume, acompanhado pela marcha nupcial, e o casal
mais idoso que compareceu à cerimónia era formado por Manuel Pedroso, de 62
anos, e Zulmira Santos, de 67”.
Nestes exemplos, a oração introduzida por ‘como' expressa um comentário do
falante sobre a conformidade entre o que se assere e aquilo que constitui um
horizonte de expectativas. Por outras palavras, o falante avalia a situação
expressa na oração âncora como esperada ou conforme às expectativas. Neste
contexto ‘como' é substituível por ‘conforme'.
Se se considerar que expectativas são crenças, então a função da oração
parentética pode também ser analisada no âmbito epistémico. De facto, parece
consistente argumentar que uma situação que corresponde a uma expectativa do
falante (ou de um grupo mais vasto, no qual ele se insere) é uma situação cuja
probabilidade de ocorrência é avaliada como elevada. Nos exemplos em apreço, o
facto de não haver uma indexação explícita da expectativa ao universo cognitivo
do falante (note-se a ocorrência da 3ª pessoa em todas as orações introduzidas
por ‘como', e do pronome impessoal seem (17)) induz a interpretação de que se
trata de uma expectativa compartilhada por toda a comunidade.
Avaliar a situação descrita na âncora como esperada ou previsível é, pois, a
função discursiva destas construções. A ocorrência destas orações parece-me
poder corresponder a duas estratégias discursivas distintas, por parte do
falante: encobrir uma opinião pessoal sob a capa de uma expectativa geral ou
diminuir o grau de saliência cognitiva da informação expressa. O género
discursivo e a inserção do fragmento num contexto mais vasto serão elementos-
chave para a apreensão da estratégia posta em jogo.
Note-se que há de novo uma forte afinidade entre estas orações e as orações
relativas de frase, como se comprova comparando (17) com (17 a):
17 (a) Os partidos mais votados foram os unionistas, partidários da ligação do
território à Grã-Bretanha, o que era esperado.
Em ambos os casos, a oração suplemento convoca a situação descrita na âncora
para sobre ela produzir um comentário. Esta afinidade evidencia a natureza
anafórica da oração comentário: ‘como' retoma anaforicamente a situação
previamente descrita, que funciona globalmente como um antecedente: ‘como era
esperado' equivale, portanto, a ‘isso era esperado'.
No entanto, contrariamente ao que acontece com as orações relativas de frase,
nas orações de comentário não pode ocorrer a negação, justamente porque se
trata de orações que confirmam uma expectativa. Contraste-se (17b) com (17c):
17 (b) Os partidos mais votados foram os unionistas, partidários da ligação do
território à Grã-Bretanha, o que não era esperado.
17 (c) *Os partidos mais votados foram os unionistas, partidários da ligação do
território à Grã-Bretanha, como não era esperado.
Em jeito de síntese, direi que as orações de comentário introduzidas por
‘como', presentes no nosso corpus, envolvem epistemicamente o falante, que
avalia a informação contida na âncora como conhecida ou expectável, ou marca o
seu grau de compromisso relativamente à verdade dessa informação. O facto de
‘como' ser comutável por ‘conforme' apenas em dois subconjuntos de exemplos, na
série dos que ilustram comentários (cf. (8) a (10) e (16) a (18)), parece
apontar para uma afinidade semântico-pragmática entre eles.
2.3. Vejamos agora alguns exemplos que ilustram o último subtipo de orações
introduzidas por ‘como' que vamos contemplar neste estudo, substancialmente
distintas das que até aqui foram abordadas:
(19) O projecto de despoluição da ria de Aveiro está, assim, em concretização
há já alguns anos, mas as outras medidas de resolução, como afirma Duarte
Esmeraldo, «estão ainda por lançar» .
(20) É «rock, e nem mais uma palavra», como anuncia a organização.
(21) O trabalho de dramaturgia, a cargo de Miguel Romeira, procura, como diz o
próprio encenador, «conferir ao texto um novo impacto e actualidade».
(22) José Graça foi um dos últimos, quando, em 8 de Fevereiro deste ano,
rescindiu amigavelmente o seu contrato de trabalho, ficando assim, como diz,
com mais tempo para dedicar aos problemas da freguesia.
Nestes exemplos, a oração introduzida por ‘como', substituível por ‘segundo',
não expressa um comentário do falante sobre o conteúdo da oração âncora, antes
apresenta a fonte da informação por ela veiculada. Serão aqui designadas de
orações de relato de discurso. Há afinidades entre os exemplos (19) a (22) e o
exemplo seguinte, onde ocorre uma oração suplemento que se apõe a discurso
citado:
(23)-“Mas tu não passas de um garoto”, disse o rei.
De facto, verifica-se, em todos os casos, a ocorrência de verbos declarativos
na oração suplemento, bem como a posposição do sujeito. No entanto,
contrariamente ao que acontece nas orações que se apõem, introduzindo discurso
citado, nos exemplos (19) a (22), o falante, tipicamente, não cita na
totalidade o discurso produzido por outrem, antes o inscreve (parcialmente) no
seu próprio discurso. Essa inscrição, na escrita, pode envolver o recurso a
aspas (cf. (19) a (21)) ou não (cf. (22)).Trata-se de uma forma híbrida de
incorporação do discurso de outrem, na qual se imbricam discurso citado e
discurso produzido pelo relator.[17] Muito frequente nos géneros jornalísticos,
estas orações identificam a fonte da informação, permitindo ao locutor assumir-
se como um intermediário, com o consequente distanciamento enunciativo que daí
advém.
Não são apenas verbos declarativos os que ocorrem neste tipo de orações. Também
verbos de atitude proposicional, como crer, pensar, supor, podem ocorrer em
orações introduzidas por ‘como' que cumprem a mesma função de inscrever no
discurso uma outra instância enunciativa, a fonte responsável pela informação
(ou parte da informação) contida na âncora, como atesta o exemplo seguinte,
retirado do corpus:
(23) “Alguém, ou «um grupinho», como pensa a GNR, se lembrou de, durante a
noite, furar pelo menos dois dos pneus dos carros que estivessem estacionados
nas ruas.”
3. Conclusões
O estudo realizado permite enunciar as seguintes conclusões:
As orações introduzidas por ‘como' que integram o corpus comportam-se, do ponto
de vista sintático, como orações de suplemento, estruturalmente não integradas
na oração âncora.
Do ponto de vista semântico-pragmático, os dados recolhidos repartem-se pela
seguinte tipologia: (i) orações de exemplificação, (ii) orações de comentário
(iii) orações de relato de discurso.
As orações tipologizadas em (i) e (ii) articulam-se com a âncora através das
relações discursivas de, respetivamente, elaboração por exemplificação e
comentário. Já as orações de relato de discurso não são explicáveis em termos
de relações discursivas, mas antes em termos de identificação de uma fonte
enunciativa distinta do falante.
Ao serem convocadas pelo falante, as orações parentéticas introduzidas por
‘como' cumprem sempre uma função discursiva: validação ou reforço do dito ((i)
e (ii)), sinalização da fonte de informação ((iii)), com a concomitante
desresponsabilização do falante pela asserção contida na âncora.
Dado o caráter aleatório da extração dos dados, não se exclui que a tipologia
proposta possa vir a ser mais finamente granulada.