Algumas considerações em torno das interpretações da construção ir + infinitivo
com imperfeito
0. Introdução
Com base na observação de exemplos em que intervêm o Pretérito Perfeito e o
Presente do Indicativo, em Cunha (2014) foi colocada a hipótese de que existem,
de facto, duas estruturas diferentes envolvendo ir+ Infinitivo – uma em que ir
assume, em grande medida, o seu estatuto lexical pleno e outra em que funciona
como um semiauxiliar temporal de posterioridade.[2]
De uma forma muito sucinta, diremos que, quando, na configuração sob análise,
ir preserva algumas das propriedades semânticas básicas que o caracterizam
enquanto item lexical, (i) este verbo não veicula qualquer informação temporal
relevante, sendo a localização temporal conferida às eventualidades
representadas na estrutura obtida a partir dos tempos gramaticais ou dos
adjuntos temporais que nela ocorrem; (ii) ir impõe importantes restrições às
situações com que comparece em termos de seleção aspetual e de agentividade /
animacidade (em particular, é consistentemente desencadeada anomalia semântica
quando estão envolvidos estativos ou eventos com sujeitos [-agentivos]); (iii)
é sempre possível projetar na construção sintagmas preposicionais encabeçados
por a ou por para, sintagmas esses que são tipicamente subcategorizados pelo
verbo ir.
Em contraste, quando ir assume o estatuto de semiauxiliar temporal, (i) a
construção ir + Infinitivo veicula sistematicamente informação temporal de
futuridade, localizando as situações envolvidas num intervalo necessariamente
posterior ao Ponto de Perspetiva Temporal (PPT) selecionado (cf. Kamp &
Reyle, 1993); (ii) não se verificam quaisquer restrições combinatórias no que
se refere à classe aspetual ou ao estatuto de animacidade manifestado pelas
predicações envolvidas; (iii) embora possível em determinadas circunstâncias, a
projeção de sintagmas preposicionais encabeçados por a ou por para não se
revela obrigatória.
No entanto, a análise de alguns exemplos em que ir + Infinitivo se combina com
o Imperfeito do Indicativo indica-nos que, para além dos casos que correspondem
às duas interpretações acima mencionadas, é frequente encontrar configurações
em que se destaca uma leitura que poderemos denominar “hipotética”.
Assim, se em (1) nos achamos face a uma interpretação de cariz
quantificacional, que, como veremos, resulta, em grande medida, da preservação
de certas propriedades lexicais do verbo ir, e, em (2), nos confrontamos com
uma leitura eminentemente temporal da construção em apreço, verificamos que, em
frases como (3), está subjacente uma componente modal bastante evidente:
(1) Fiz-me sócio duma discoteca municipal onde ia buscar discos de
jazz, três por dia. (par=ext77135-clt-95a-1)[3]
(2) Uma era tinha acabado e outra ia começar. (par=ext64115-pol-98a-
2)
(3) O aparelho, que devia seguir para Taipei (Taiwan), ia levantar
voo quando o comandante anulou a manobra por razões ainda
indeterminadas. (par=ext19440-soc-95b-2)
Face a exemplos como estes, colocam-se algumas questões a que importa dar
resposta: (i) corresponderá esta variação em termos semânticos à existência de
diferentes configurações envolvendo ir + Infinitivo? (ii) em que condições ou
contextos linguísticos emerge cada uma destas significações? (iii) como se
articula a estrutura ir + Infinitivo com as propriedades típicas do Imperfeito
do Indicativo?
Tomando como ponto de partida as observações realizadas em Cunha (2014),
procuraremos, em seguida, investigar alguns dos aspetos que se nos afiguram
mais relevantes no que diz respeito à caracterização semântica da construção ir
+ Infinitivo com Imperfeito. Em particular, começaremos por descrever cada uma
das interpretações acima indicadas, tentando identificar comportamentos
linguísticos que nos permitam perceber até que ponto estaremos face a
configurações linguísticas necessariamente distintas ou perante uma mesma
estrutura que, não obstante, revela uma considerável variabilidade ao nível das
suas significações. Por outro lado, voltaremos a nossa atenção para a interação
que, no interior da configuração sob análise, se estabelece entre o verbo ir no
Imperfeito e as situações infinitivas com que se combina, o que nos
possibilitará uma melhor compreensão dos diferentes tipos de leituras que se
nos deparam.
1. A leitura quantificacional
Tal como sucede com a estrutura ir + Infinitivo no Presente do Indicativo, são
relativamente comuns as sequências envolvendo ir + Infinitivo com o Imperfeito
que exibem uma leitura quantificacional de tipo frequentativo ou habitual, o
que pode ser comprovado pela observação de exemplos como (4) e (5):
(4) Aos domingos, Oliveira Salazar ia ouvir missa na capela
particular de um amigo. (par=ext313003-nd-91b-1)
(5) O Sr. Madeleine habitualmente ia visitar a enferma pelas três
horas da tarde. (https://books.google.pt/books?isbn=8575031562)
Uma tal interpretação não é, no entanto, de todo surpreendente, uma vez que,
tipicamente, o Imperfeito, quando combinado com predicações de cariz eventivo,
desencadeia leituras de tipo quantificacional das situações com que comparece,
como os seguintes exemplos nos confirmam (sobre a relação entre Imperfeito e
habitualidade, vejam-se, entre outros, Berthonneau & Kleiber 1993; Cunha,
2004; 2006; 2012):
(6) Aí, na companhia das netas, passeava a cavalo, lia, escrevia,
pintava e, provavelmente saudoso de tempos mais activos, limpava a
sua bela colecção de armas. (par=ext215012-nd-91b-2)
(7) Um dos caçadores vendia habitualmente os animais que matava a um
restaurante da zona. (par=ext10407-soc-98b-2)
Em última instância, a comparação dos exemplos em (4) e (5) com os de (6) e (7)
sugere fortemente que, na interpretação em apreço, a construção ir + Infinitivo
não altera substancialmente a perspetivação aspetual e as relações temporais
que se estabelecem entre as situações envolvidas quando estas se encontram
enquadradas pelo Imperfeito simples. Por outras palavras, a função temporo-
aspetual do Imperfeito parece ser integralmente preservada neste tipo de
configurações, independentemente da presença do verbo ir.
Nesse sentido, e seguindo a argumentação proposta em Cunha (2014), sugeriremos
que, na sua leitura quantificacional, ir preserva, em termos gerais, grande
parte das suas propriedades lexicais básicas, funcionando neste tipo de
contexto como item lexical de pleno direito.
Com vista a comprovar a veracidade de uma tal suposição, importa analisar o
comportamento linguístico manifestado pela construção ir + Infinitivo com
Imperfeito em relação aos critérios que nos permitem reconhecer a presença de
marcas lexicais associadas ao verbo ir, em particular no que se refere à
existência de restrições aspetuais e de animacidade e à projeção de sintagmas
preposicionais encabeçados por a ou por para.
É sabido que ir, quando utilizado como verbo pleno, participa obrigatoriamente
em configurações de natureza [+dinâmica] (i.e. integra predicações eventivas).
Um tal facto estará na base da sua incompatibilidade com situações de caráter
estativo sempre que, na construção que aqui nos ocupa, mantém acessíveis as
suas propriedades lexicais básicas (cf. “* O João foi estar doente”). Isto
significa que, em última instância, e partindo do princípio de que, nas
leituras habituais e frequentativas, ir preserva as suas propriedades lexicais
de origem, estruturas quantificacionais com ir + Infinitivo no Imperfeito são
totalmente incompatíveis com estados, independentemente da subclasse a que
pertençam. Os exemplos que se seguem estão em linha com a argumentação que
acabámos de desenvolver:
(8) * O João ia ter olhos azuis habitualmente. (estado de indivíduo
não faseável)
(9) * A Maria ia ser simpática habitualmente. (estado de indivíduo
faseável)
(10) * O João ia estar doente todas as semanas. (estado de “estádio”)
Sublinhe-se que as incompatibilidades observadas em exemplos como (9) e (10)
não podem ser simplesmente atribuídas à impossibilidade de quantificação dos
estados envolvidos, uma vez que, mesmo utilizando o Imperfeito do Indicativo,
leituras habituais ou frequentativas são perfeitamente naturais com este tipo
de situações[4], como (11) e (12) nos revelam, devendo a anomalia semântica
ser, por conseguinte, imputada à presença do verbo ir nas construções em
apreço:
(11) A Maria era simpática habitualmente.
(12) O João estava doente todas as semanas.
Por outro lado, podemos observar que as construções que integram o verbo ir
como item lexical pleno são tendencialmente [+agentivas], ou, dito de uma forma
mais precisa, selecionam tipicamente (embora não exclusivamente) sujeitos que
exibem o traço [+animado] e que assumem o papel temático de Agente. Como
consequência, as estruturas com ir + Infinitivo em que o primeiro verbo
preserva as suas propriedades lexicais de origem normalmente desencadeiam
anomalia semântica na presença de predicações cujo sujeito manifesta o traço [-
animado] ou, sendo [+animado], recebe um papel temático que não o de Agente
(veja-se o contraste entre “O Rui foi trabalhar” vs. “* O motor do meu carro
foi trabalhar”).
Se esta linha de argumentação está correta, será expectável que ir + Infinitivo
com o Imperfeito numa leitura quantificacional dê origem a anomalia semântica
quando coocorre com predicações que integram um sujeito [-animado] ou, melhor
dizendo, um sujeito não agentivo. Parece, de facto, ser isso mesmo que
acontece, como os exemplos seguintes nos sugerem:[5]
(13) * O vaso ia cair da varanda habitualmente.
(14) * O vento ia soprar todas as manhãs.[6]
Finalmente, e em consonância com o que sucede com as estruturas em que ir (+
Infinitivo) preserva as suas propriedades lexicais básicas, é sempre possível
projetar na configuração sob análise um sintagma preposicional encabeçado por a
ou por para, independentemente do verbo no Infinitivo selecionado (cf. Cunha,
2014), tal como ilustrado em (15) e (16).
(15) A Maria ia almoçar à cantina da faculdade.
(16) Os leões iam caçar gnus para a savana.
A presença dos referidos sintagmas preposicionais deve-se inegavelmente às
propriedades sintáticas inerentes ao verbo ir, que, quando funciona como verbo
pleno, subcategoriza este tipo de estruturas (cf. “O João ia à praia” ou “O
Filipe ia para a escola”). A corroborar esta nossa afirmação, observem-se os
seguintes exemplos, em que a ausência de ir acarreta imediatamente a
agramaticalidade no que respeita à projeção dos SPs introduzidos por a ou por
para:
(17) * A Maria almoçava à cantina da faculdade.
(18) * Os leões caçavam gnus para a savana.
Em suma, nas configurações em que ir + Infinitivo com o Imperfeito recebe uma
leitura quantificacional (i.e., de natureza frequentativa ou habitual), o verbo
ir parece preservar grande parte das suas propriedades lexicais básicas, na
medida em que (i) não influencia significativamente a localização temporal das
predicações com que coocorre (tal como as suas equivalentes com Imperfeito
simples, estabelece uma relação em que, de alguma forma, se verifica
sobreposição a um dado Ponto de Perspetiva Temporal passado) e não altera os
efeitos aspetuais imputáveis ao Imperfeito; (ii) manifesta restrições
combinatórias que parecem derivar do seu perfil lexical – em particular,
rejeita a presença de estativos, o que estaria relacionado com o seu traço
[+dinâmico] e não admite a presença de eventualidades não agentivas, o que
estaria em concordância com o seu caráter tendencialmente [+animado] e (iii)
permite licenciar a projeção de sintagmas preposicionais encabeçados por a ou
por para.
2. A leitura prospetiva
A construção ir + Infinitivo com o Imperfeito pode receber igualmente uma
leitura eminentemente temporal, embora esta não se revele a sua interpretação
preferencial nem se mostre muito relevante no que toca ao número de ocorrências
atestadas, em particular quando estão em causa frases simples.
Em termos muito gerais, ir funcionaria aqui como um operador temporal que
localizaria as situações envolvidas num intervalo posterior ao Ponto de
Perspetiva Temporal passado associado ao Imperfeito (cf. Kamp & Reyle,
1993). Por outras palavras, estaríamos perante um “futuro do passado”, em que
ir seria responsável pela “futuridade” conferida à eventualidade descrita.
Nessa medida, a estrutura em causa seria paralela à construção ir + Infinitivo
no Presente do Indicativo com valor temporal, tal como descrita em Cunha
(2014), dado que as duas configurações favorecem a emergência de leituras
prospetivas, sendo a única diferença entre elas o facto de uma – a que integra
o Presente do Indicativo – tomar como PPT o momento da enunciação e a outra – a
que exibe o Imperfeito – selecionar um PPT passado.
Os exemplos que se seguem, retirados do nosso corpus, ilustram esta
interpretação essencialmente temporal de ir + Infinitivo com o Imperfeito:
(19) Depois do Portugal dos Pequeninos que o prof. Bissaia Barreto
tinha inventado para o dr. Salazar, o país ia fechar o século XX com
um empreendimento único e universal do ponto de vista científico, ao
mesmo tempo que oferecia aos meninos lusitanos uma ocupação
pedagógica para os intervalos do trabalho infantil. (par=ext48543-nd-
93b-1)
(20) Tiveram que deixar a ilha, é certo, mas a posição que então
proclamaram não deixou de ter seguidores, entre eles frei Bartolomeu
de las Casas, que ia fixar todos estes eventos, anos depois, na
primeira “Historia de Las Índias”. (par=ext168349-soc-93b-2)
Assim, em (20), por exemplo, ir + Infinitivo com Imperfeito localiza a situação
de “fixar todos estes eventos (…) na primeira Historia de las Índias” num
intervalo posterior (cf. o adverbial “anos depois”) ao PPT passado associado a
“ter que deixar a ilha”.
A construção em que se observa uma interpretação temporal de prospetividade
desencadeada por ir + Infinitivo com o Imperfeito difere, em muitos aspetos, da
estrutura correspondente associada a uma leitura de natureza quantificacional
que descrevemos na secção 1 do presente trabalho.
Em primeiro lugar, não parecem existir quaisquer restrições quanto à natureza
aspetual das predicações com que ir + Infinitivo no Imperfeito pode comparecer.
Em particular, a leitura prospetiva revela-se perfeitamente compatível com
situações de natureza estativa, como os seguintes exemplos ilustram:
(21) Cavaco Silva exerceu funções de primeiro-ministro entre 1985 e
1995. Ia ser presidente da república onze anos mais tarde.
(22) O João apanhou frio a noite toda. Ia estar doente uma semana
depois.
Note-se que frases em que figuram predicações semelhantes mas em que é
atribuída uma interpretação quantificacional não temporal à estrutura dão
imediatamente origem a anomalia semântica, como (23) e (24) nos confirmam:
(23) * Cavaco Silva ia ser presidente da república habitualmente.
(24) * O João ia estar doente todas as semanas.
Observações semelhantes podem ser estendidas aos casos em que ocorrem situações
eventivas com sujeitos de cariz não agentivo: este tipo de predicações é
perfeitamente viabilizado quando está em causa uma leitura prospetiva, mas
torna-se inaceitável quando emerge uma interpretação quantificacional:
(25) O edifício do Centro Cultural foi inaugurado em 1990. Ia cair
dois anos mais tarde por causa de um terramoto.
(26) * O edifício do Centro Cultural ia cair habitualmente por causa
de um terramoto.
Finalmente, a projeção de sintagmas preposicionais introduzidos por a ou por
para, característica das construções em que ir preserva grande parte das suas
propriedades lexicais básicas, nem sempre é possível em estruturas com ir +
Infinitivo no Imperfeito que ostentam uma leitura prospetiva. Em particular, a
inserção dos referidos SPs parece ser inviabilizada quando estão em causa
predicações estativas ou eventos associados a um sujeito [-animado], como os
exemplos seguintes nos revelam:
(27) O João apanhou frio a noite toda. Ia estar doente * a casa / *
para casa / em casa uma semana depois.
(28) O incêndio começou à meia-noite. O fogo ia queimar todas as
árvores * à floresta / * para a floresta / na floresta pela manhã.
Sublinhe-se que, nos casos em que ir + Infinitivo com Imperfeito recebe uma
leitura prospetiva (e contrariamente ao que sucede quando nos confrontamos com
uma interpretação meramente quantificacional), a construção em causa parece
equivaler, em termos semânticos, ao uso de formas do Condicional, também
designado por certos autores como “futuro do passado” (cf. Cunha & Cintra,
1984). Os exemplos que se seguem ilustram o que acabámos de referir:
(29) Cavaco Silva exerceu funções de primeiro-ministro entre 1985 e
1995. Seria presidente da república onze anos mais tarde.
(equivalente a (21))
(30) O edifício do Centro Cultural foi inaugurado em 1990. Cairia
dois anos mais tarde por causa de um terramoto. (equivalente a (25))
Dado que, de momento, o nosso objetivo se resume a descrever e comparar as
diferentes interpretações ostentadas pela estrutura ir + Infinitivo com
Imperfeito, deixaremos as complexas relações que se estabelecem entre ir +
Infinitivo, o Condicional e as formas de Imperfeito para um trabalho futuro.
Vejam-se, no entanto, a este respeito Oliveira (1998) ou Oliveira & Duarte
(2012).
Em suma, para além da leitura meramente quantificacional, é possível encontrar
uma interpretação de natureza prospetiva para a construção ir + Infinitivo com
o Imperfeito. Neste caso, a componente temporal parece ser predominante e as
situações apresentadas são tipicamente localizadas num intervalo de tempo
posterior a um dado PPT passado. Nesse sentido, ir parece funcionar aqui como
um semiauxiliar desempenhando o papel de operador temporal, tal como sucede nas
interpretações preferenciais de ir + Infinitivo com o Presente do Indicativo. A
ausência de quaisquer restrições em termos de seleção da classe aspetual ou a
irrelevância da presença de marcas de agentividade nas predicações envolvidas,
bem como a não obrigatoriedade de projeção, nas referidas estruturas, de um SP
encabeçado por a ou por para, vão ao encontro desta nossa linha de análise.
3. A leitura hipotética
Para além das duas interpretações que acabámos de descrever, a construção ir +
Infinitivo com o Imperfeito manifesta uma leitura de cariz modal que aqui
designaremos como “hipotética”. Nestas ocorrências, que, mesmo com base numa
observação rápida ao corpus consultado, aparentam ser as mais frequentes, as
situações descritas não parecem realizar-se no mundo real, sendo concebidas
apenas como “possibilidades” ou como meras “hipóteses”. Vejam-se os seguintes
exemplos ilustrativos:
(31) Dundee ia jogar hoje em Telavive ao lado de Jürgen Klinsmann num
particular contra Israel, mas uma lesão sofrida no sábado fê-lo
renunciar à viagem. (par=ext24137-des-97a-4)
(32) Na altura da sua detenção, Falco ia embarcar num comboio com
destino a Madrid. (par=ext244959-nd-97b-2)
Assim, por exemplo, a situação representada em (32), i.e. “Falco embarcar num
comboio com destino a Madrid”, parece ser projetada num mundo possível
diferente do mundo real, ou seja, num mundo em que a “sua detenção” não tivesse
ocorrido.[7]
A atribuição de interpretações modais à estrutura ir + Infinitivo com
Imperfeito não será, contudo, de todo surpreendente. Com efeito, quer as formas
do Imperfeito quer as construções que de algum modo veiculam posterioridade se
encontram intimamente ligadas a informação de natureza modal.
São frequentes, na literatura, referências a interpretações de cariz modal
desencadeadas pelo Imperfeito (cf., entre muitos outros, Oliveira, 1987; Matos,
1996; Ippolito, 2004). De entre estes usos do tempo gramatical em causa que, de
alguma forma, extravasam o seu valor temporal básico de passado e que, muitas
vezes, remetem para mundos alternativos ao mundo de referência, destacamos o
uso fictivo ou fabulativo, que se presta à criação de contextos ficcionais
(ex.: “Então os marcianos chegavam à Terra, devoravam todos os seres humanos e
tomavam conta do planeta”); o uso lúdico, representado sobretudo em diálogos
presentes em jogos e brincadeiras infantis (Ex.: “Agora eu era a professora e
tu eras a aluna”; o uso onírico (Ex.: “Sonhei que tinha um tapete voador e
viajava pelo espaço”); o Imperfeito de planificação (ex.: “Então, enquanto vais
às compras, eu fazia o almoço e preparava a sobremesa”); o Imperfeito
doxástico-epistémico, que se refere à necessidade de recuperação de determinada
informação em certa medida já disponibilizada mas que, por assim dizer, parece
precisar de confirmação ou de atualização (Ex.: “O que dava logo na
televisão?”); o Imperfeito de delicadeza ou de cortesia (Ex.: “Queria um café,
por favor”); já para não falar no uso do Imperfeito em diversos tipos de
condicionais, estruturas que, na sua maioria, remetem para o domínio do não
real (Ex.: “Se tivesse dinheiro comprava um BMW”).
Dada a relevância deste género de interpretações para a plena compreensão da
sua significação, muitos autores propuseram para o Imperfeito um tratamento
semântico que tem em conta o seu caráter essencialmente modal.
Assim, e a título de exemplo, Cipria & Roberts (2000) propõem que a
semântica do Imperfeito deve conter explicitamente um elemento modal e uma
relação de acessibilidade sobre situações conferida pelo contexto que permitirá
dar conta das diferentes interpretações observadas.
Ippolito (2004), por seu lado, propõe que a componente de passado que
caracteriza o Imperfeito não se aplique apenas ao domínio da mera localização
temporal mas se estenda também à restrição da relação de acessibilidade que
permite aceder a mundos possíveis. Introduz, pois, na semântica do Imperfeito
uma componente modal através do recurso a uma “base modal” (modal-base) de
cariz epistémico ou evidencial (cf. Kratzer, 1991; 2012).
Tomando como ponto de partida o estudo comparativo de diferentes línguas,
Arregui, Rivero & Salanova (2014) advogam, igualmente, a necessidade de um
tratamento modal para o Imperfeito. A variação na interpretação dos usos modais
que se verifica nas diversas línguas analisadas estaria diretamente relacionada
com o tipo e o âmbito das “bases modais” associadas à semântica do operador de
Imperfetividade.
No sentido de tornar mais explícito o potencial de modalidade associado ao
Imperfeito, observem-se os seguintes exemplos ilustrativos:
(33) O João comprava um BMW mas não tem dinheiro.
(34) O João comprava um BMW mas primeiro quer conhecer os modelos
disponíveis no stand.
Partindo do princípio de que a base modal (modal-base) – ou seja, o
enquadramento conversacional relativo às propriedades e circunstâncias que
caracterizam os indivíduos e as situações relevantes – associada a estes
exemplos está em consonância com a veracidade das frases no Imperfeito (por
exemplo, supõe que o João precisa e pretende comprar um carro novo, o João
gosta dos modelos da BMW, existem automóveis da referida marca disponíveis para
venda em Portugal, etc.), verificamos que, sob um certo ponto de vista, o
conteúdo proposicional das orações contrastivas poderá funcionar como “fonte de
seriação” (ordering source), i.e., como restritor em relação ao domínio de
acessibilidade para os mundos possíveis em que o João compra um BMW (para a
definição, caracterização e discussão dos conceitos de base modal e de fonte de
seriação, veja-se Kratzer, 1991; 2012).
Assim,a informação de que o João não tem dinheiro veiculada em (33) parece ser
incompatível com os mundos possíveis em que ele efetivamente compra um BMW, o
que, em última instância, conduz a uma leitura contrafactual da frase em apreço
(i.e. em que o João não compra um BMW no mundo real). Já em (34), o facto de o
João querer conhecer os vários modelos disponíveis não exclui a possibilidade
da compra do BMW, pelo que a informação associada a esta “fonte de seriação”
conduz a uma leitura modal de possibilidade.[8]
Para o que agora nos interessa, porém, importa destacar que todos estes
tratamentos do Imperfeito assumem que a modalidade faz parte integrante da sua
caracterização semântica e que, para além da mera localização temporal, ele
exibe uma importante componente modal que permite aceder a mundos possíveis
diferentes do mundo real de referência.
Mas se é certo que as propriedades do Imperfeito se encontram estreitamente
relacionadas com a expressão da modalidade, o mesmo poderá ser dito no que se
refere ao estabelecimento de relações temporais de posterioridade.
Desde Dowty (1979) que é consensual na literatura a existência de uma
assimetria que se verifica entre os tempos do passado e os que, de alguma
forma, remetem para o futuro. Na realidade, se o valor de verdade de uma
proposição expressa por uma situação passada pode ser facilmente avaliado a
partir do respetivo Ponto de Perspetiva Temporal, uma vez que esta já ocorreu
no mundo de referência, o mesmo não se poderá dizer em relação a uma
eventualidade projetada no futuro. De facto, dado que uma tal situação ainda
não teve lugar no intervalo de avaliação, abrem-se múltiplas possibilidades no
que se refere ao decurso dos acontecimentos (e, em última instância, à sua
realização no mundo de referência). A essas diversas possibilidades que o
decurso dos acontecimentos pode tomar Dowty chama futuros ramificantes
(“inertia futures”).
Sob este ponto de vista, uma relação de posterioridade supõe necessariamente um
certo grau de modalidade, na medida em que envolve sempre um conjunto aberto de
possibilidades, de futuros ramificantes, que se projetam em mundos possíveis
(na realidade, apenas um desses futuros corresponderá ao curso dos
acontecimentos no mundo de referência, mas este tipo de avaliação não poderá
ser efetuado no PPT em relação ao qual a situação posterior é localizada).
Tomando como ponto de partida as observações que acabámos de realizar, colocam-
se duas questões de capital relevância a que é necessário dar resposta: (i)
será forçoso postular para a leitura hipotética de ir + Infinitivo com
Imperfeito uma configuração linguística autónoma ou será possível integrá-la
numa das duas construções que propusemos nas secções anteriores? e (ii) caso se
opte pela solução, a nosso ver mais desejável, de unificação de estruturas e
tendo em conta que tanto o Imperfeito quanto a relação de posterioridade supõem
modalidade, a que tipo de construção – ir com preservação de traços lexicais ou
ir enquanto operador de posterioridade – corresponderá a leitura hipotética?
Com vista a alcançar respostas adequadas para estas questões importa, neste
momento, prestar alguma atenção às propriedades semânticas que caracterizam a
construção ir + Infinitivo com Imperfeito na sua interpretação hipotética.
3.1. Algumas propriedades semânticas de ir + Infinitivo com Imperfeito numa
leitura hipotética
Tal como sucede com a leitura de posterioridade (e diferentemente do que
verificámos para a leitura quantificacional), ir + Infinitivo com Imperfeito,
quando se encontra envolvido numa interpretação hipotética, parece não revelar
qualquer tipo de restrição combinatória em relação à natureza das predicações
com que coocorre.
Assim, é perfeitamente possível encontrar leituras hipotéticas de ir +
Infinitivo com Imperfeito envolvendo diferentes tipos de estativos, como os
exemplos seguintes nos confirmam:
(35) O Zé ia ser engenheiro mas desistiu do curso. (estado de
indivíduo não faseável)
(36) O meu cão ia ser agressivo com os convidados se eu não o tivesse
fechado na casota. (estado de indivíduo faseável)
(37) Se não tomasse os medicamentos, a Maria ia ter febre. (estado de
estádio não faseável)
(38) A Rita ia sentir-se assustada no primeiro dia de escola, mas a
mãe levou-lhe os seus brinquedos preferidos. (estado de estádio
faseável)
São igualmente admitidas, neste tipo de configurações, predicações com sujeitos
não agentivos, como (39) e (40) nos revelam:
(39) O vaso ia cair da janela quando eu o agarrei.
(40) O meu carro ia trabalhar se lhe tivesse posto gasolina.
Por outro lado, verificamos que nem sempre é possível projetar SPs encabeçados
por a ou por para neste tipo de construções, o que, mais uma vez, as aproxima
das estruturas prospetivas e as afasta das quantificacionais:
(41) O João ia ser professor * a / * para / em Évora, mas não passou
no concurso.
(42) Se os bombeiros não tivessem chegado a tempo, o fogo ia queimar
a floresta * à / * para a / até à autoestrada.
Com base nos exemplos que apresentámos até ao momento, podemos afirmar que o
comportamento linguístico de ir + Infinitivo com Imperfeito na sua leitura
hipotética se revela bastante próximo do que é ostentado pela configuração
correspondente com uma leitura prospetiva, diferindo substancialmente, por
conseguinte, daquele que caracteriza a estrutura equivalente com uma leitura
quantificacional.
A confirmar o que acabámos de referir, observe-se que, na sua leitura
hipotética, ir + Infinitivo com Imperfeito nem sempre pode ser comutável com
formas do Imperfeito simples. Como já fizemos notar anteriormente, quando ir
preserva a maioria das suas características lexicais de origem, as propriedades
temporo-aspetuais da estrutura em que intervém não sofrem alterações
substanciais, o que significa que, em última instância, ir + Infinitivo com
Imperfeito e formas do Imperfeito simples veiculam informação até certo ponto
equivalente. Os casos em que prevalece uma interpretação quantificacional
exemplificam esta proximidade de significações (veja-se a semelhança
interpretativa entre (43) e (44)):
(43) Os gnus iam pastar na savana todas as tardes.
(44) Os gnus pastavam na savana todas as tardes.[9]
Quando, no entanto, está em causa uma leitura hipotética, uma substituição
deste género revela-se muito menos aceitável (cf. os contrastes entre (45) e
(46) ou entre (47) e (48)), o que sugere que ir desempenha na estrutura um
papel fundamental que em muito ultrapassa a mera contribuição associada ao seu
significado lexical básico.
(45) O João ia ser médico mas desistiu do curso.
(46) O João era médico mas desistiu do curso.
(47) A Maria ia telefonar à irmã mas adormeceu.
(48) A Maria telefonava à irmã mas adormeceu.[10]
Em suma, diremos que as leituras prospetivas e hipotéticas de ir + Infinitivo
com o Imperfeito partilham comportamentos linguísticos importantes. Em
particular (i) não restringem o tipo de predicações com que comparecem, nem em
termos aspetuais nem em termos de agentividade; (ii) nem sempre preservam as
propriedades de seleção sintática do verbo ir, o que se traduz na
impossibilidade, em certas condições, de projeção de SPs encabeçados por a ou
por para e (iii) ir veicula informação que em muito ultrapassa a do perfil
temporo-aspetual da estrutura base, o que, por vezes, conduz a evidentes
divergências em termos de significação entre a construção em causa e as suas
equivalentes com o Imperfeito simples.
No entanto, a estrutura ir + Infinitivo no Imperfeito com valor hipotético
diferencia-se da sua correspondente prospetiva na medida em que, mais do que a
mera localização de uma dada situação num intervalo posterior ao PPT
selecionado, perspetiva uma eventualidade num mundo possível diferente do mundo
“real” ou do mundo de referência, ou seja, supõe a existência de um mundo
alternativo (“inertia world”). Nesse sentido, podemos dizer que estamos face a
uma leitura de cariz essencialmente modal, uma vez que somos remetidos para o
âmbito dos “mundos possíveis” e do “não realizado” (cf. Portner, 2009).
Sob este ponto de vista, e ao contrário do que sucede com as interpretações de
natureza quantificacional, ir parece desempenhar aqui um papel relevante que em
muito ultrapassa a mera contribuição das suas propriedades lexicais de origem.
A questão que agora se nos coloca é a de saber se a leitura hipotética
corresponde a uma configuração autónoma, particular, ou se, pelo contrário,
poderá ser integrada numa descrição unificada com a leitura prospetiva.
3.2. Leitura prospetiva e leitura hipotética: duas configurações distintas ou
duas faces de uma mesma realidade?
Dadas as semelhanças que se observam no que respeita ao comportamento
linguístico de ir + Infinitivo com Imperfeito nas suas leituras prospetiva e
hipotética, coloca-se a questão de saber se essas duas interpretações
correspondem, de facto, a configurações independentes ou se, pelo contrário, é
possível encontrar um tratamento conjunto que nos permita enquadrá-las numa
descrição unificada, convergindo numa análise semântica integrada.
À primeira vista, seria tentador defender a hipótese de uma separação clara
entre as duas leituras em causa. Na realidade, enquanto a interpretação
prospetiva se restringe ao domínio temporal, localizando uma situação num
intervalo posterior a um PPT passado, a leitura hipotética envolve mecanismos
semânticos bem mais complexos, uma vez que requer a postulação de mundos
alternativos e, em muitos casos, apresenta as eventualidades como não
realizadas no mundo de referência. Por outras palavras, enquanto na leitura
prospetiva ir funcionaria como um operador temporal, na hipotética exibiria as
características de um operador modal.
No entanto, se observarmos mais atentamente as construções sob análise,
verificamos que são muito significativos os aspetos que as unem.
Em primeiro lugar, e como já foi várias vezes assinalado ao longo das secções
anteriores, tanto a leitura prospetiva quanto a hipotética exibem
comportamentos linguísticos semelhantes que, por um lado, as aproximam entre si
e que, por outro, nos permitem estabelecer uma separação bastante evidente em
relação às interpretações habituais e frequentativas. Referimo-nos,
naturalmente, à inexistência de restrições quanto à categoria aspetual e ao
estatuto de agentividade das predicações envolvidas e à impossibilidade, em
determinados contextos, de projeção de sintagmas preposicionais encabeçados por
a ou por para, bem como ao facto de ir veicular informação semântica que em
muito transcende a associada ao seu conteúdo lexical de base, o que conduz,
pelo menos em certos casos, à ausência de uma equivalência direta entre ir +
Infinitivo e formas correspondentes do Imperfeito simples.
Em segundo lugar, e independentemente do valor de verdade atribuído, no mundo
de referência, à proposição descrita, parece, em ambos os casos, ser
consistentemente veiculada informação temporal de posterioridade[11], o que,
mais uma vez, contrasta com o que se passa nas interpretações de índole
quantificacional, que preservam a informação temporo-aspetual de habitualidade
ou de frequência num intervalo passado tipicamente associada ao Imperfeito.
Há, por outro lado, contextos linguísticos que licenciam tanto leituras
hipotéticas quanto prospetivas. É o caso, por exemplo, das construções
completivas de verbo, tal como os seguintes exemplos nos revelam:
(49) Os amigos de Mujkanovic souberam que ele os ia deixar, e como
gesto de admiração arranjaram-lhe o melhor fato que encontraram para
ele usar no voo de saída. (par=ext54994-pol-93a-1) (leitura
prospetiva)
(50) O condutor, depois de fingir que ia sair do automóvel, arrancou
a grande velocidade, levando o polícia na frente do carro numa
extensão calculada em cerca de cinco metros, até parar.
(par=ext394306-soc-95b-1) (leitura hipotética)[12]
É mesmo relativamente frequente encontrarmos casos de completivas em que não
nos é possível determinar se a situação ocorreu, de facto, no mundo de
referência (caso em que, preferencialmente, teríamos uma interpretação
prospetiva) ou se, pelo contrário, esta se inscreve no domínio do não realizado
(caso em que estaríamos perante uma leitura hipotética). Observem-se os
seguintes exemplos ilustrativos retirados do corpus.
(51) Isabel respondeu-me que ia pensar na proposta. (par=ext176-clt-
93a-1)
(52) Faren declarou ainda que a China ia lançar (…) cinco satélites
para o espaço. (par=ext45335-clt-soc-93b-1)
Assim, em (52), por exemplo, e tendo em conta o significado do verbo introdutor
“declarar”, que não permite estabelecer o valor de verdade da proposição
expressa pela situação encaixada no mundo de referência, temos um exemplo
bastante evidente em que não nos é possível verificar se o evento de “lançar
cinco satélites para o espaço” ocorreu ou não na realidade. Por outras
palavras, a fronteira entre uma leitura prospetiva e uma leitura hipotética
parece, em casos como estes, diluir-se substancialmente.
A mesma indeterminação quanto à efetiva ocorrência de uma situação projetada
num intervalo posterior a um dado PPT passado propiciada pela construção ir +
Infinitivo com Imperfeito pode ser encontrada em exemplos como os que se
seguem:
(53) Em Março passado, começaram os rumores de que a fábrica ia
fechar mas ninguém acreditou. (par=ext39555-soc-93b-1)
(54) Em Abril «Angels in America» ia estrear na Broadway, e nenhum
jornal nova-iorquino, nem nenhuma revista, deixaram de falar nisso.
(par=ext24461-clt-93a-2)
Em suma, o facto de as construções que envolvem ir+ Infinitivo no Imperfeito
com leituras prospetivas e com leituras hipotéticas partilharem um número
bastante significativo de propriedades semânticas, por um lado, e a existência,
por outro, de exemplos em que uma fronteira clara entre essas duas
interpretações parece estar atenuada ou diluída levam-nos a considerar que fará
todo o sentido procurar um tratamento comum para as estruturas em apreço.
Mas, como poderemos encontrar uma análise unificada para estes casos que
responda adequadamente às diversas observações que temos vindo a realizar?
A nossa busca por um tratamento unificado para as leituras hipotéticas e
prospetivas da construção ir + Infinitivo com Imperfeito tomará como ponto de
partida os seguintes princípios: (i) em ambos os casos, existe uma situação que
é localizada num intervalo de tempo necessariamente posterior a um determinado
PPT passado; (ii) a diferença entre as interpretações em causa depende de a
situação se encontrar realizada no mundo de referência (leitura prospetiva) ou
de ser concebida como não realizada, o que significa que, neste caso, será
remetida para um mundo alternativo ao mundo real (leitura hipotética).
No sentido de compreender melhor o que se passa com as interpretações
prospetivas e hipotéticas de ir + Infinitivo com Imperfeito, recorreremos,
pois, à avaliação do valor de verdade das proposições não apenas em função dos
intervalos de tempo em que se localizam mas também em relação aos mundos
possíveis em que se enquadram (cf. a noção de “situação possível”, concebida
como um par ordenado constituído por um intervalo de tempo i e por um mundo
possível w, tal como formulada por Kratzer (1989) e retomada em Marques
(2010)).
Para o que aqui nos importa, diremos que as leituras prospetivas e hipotéticas
partilham a componente temporal, ou seja, ir + Infinitivo com Imperfeito
localiza consistentemente as situações descritas em intervalos de tempo
posteriores a um PPT passado. A única diferença reside no facto de que,
enquanto as leituras prospetivas assumem a ocorrência da eventualidade no mundo
de avaliação, as leituras hipotéticas remetem-na para mundos alternativos
diferentes do mundo real.
Encontramo-nos, assim, em condições de propor uma análise semântica unificada
para estas duas interpretações: nesse sentido, diremos que ir + Infinitivo com
Imperfeito manifesta o traço temporal de [+posterioridade], sendo não
especificado quanto ao traço respeitante à ocorrência das situações no mundo de
avaliação.[13]
O facto de ir + Infinitivo com Imperfeito ser não especificado quanto à
possibilidade de ocorrência das situações no mundo de avaliação permite dar
conta (i) dos casos em que a eventualidade efetivamente tem lugar no mundo
real, a que corresponde uma leitura prospetiva (cf. os exemplos discutidos na
secção 2); (ii) dos casos em que a eventualidade não ocorre no mundo real e é
remetida para mundos alternativos, a que corresponde uma leitura hipotética
(cf. os exemplos apresentados em 3.1) e (iii) dos casos em que não é possível
determinar se a eventualidade ocorreu ou não no mundo real, ilustrados em
frases como as de (51) a (54).
4. Conclusão
A partir da análise do comportamento linguístico de ir + Infinitivo com o
Imperfeito, o presente trabalho procurou demonstrar a necessidade de postular a
existência de duas configurações distintas associadas à referida estrutura, uma
em que ir preserva parte das suas propriedades lexicais básicas e outra em que
funciona como um operador eminentemente temporal de posterioridade, na linha do
que já havia sido proposto em Cunha (2014).
Para além da leitura quantificacional – frequentativa ou habitual –, em que as
propriedades lexicais do verbo são, em certa medida, conservadas e da leitura
prospetiva, em que ir + Infinitivo com Imperfeito efetua uma operação temporal
de posterioridade em relação a um PPT passado, identificámos uma terceira
interpretação, que designámos como “hipotética”, em que as situações descritas
são projetadas em mundos alternativos diferentes do mundo de avaliação. A
análise das suas propriedades semânticas levou-nos a considerar vantajoso um
tratamento unificado com a configuração prospetiva, uma vez que, em ambos os
casos, parece estar envolvida a futuridade, havendo variação apenas no que
respeita à realização (ou não) das eventualidades em causa no mundo de
referência.