Os efeitos dos maus-tratos e da negligência sobre as representações da
vinculação em crianças de idade pré-escolar
Os efeitos dos maus-tratos e da negligência sobre as representações da
vinculação em crianças de idade pré-escolar
Renata Benavente (*)
João Justo (**)
Manuela Veríssimo (***)
ABSTRACT
This study assessed the influence of maltreatment or neglect during childhood
on preschoolers' (3 to 6 years of age) attachment representations. The
second goal of this article was to explore the relation between child's
gender and attachment representations. The role of a non-abusive relationship
with an alternative caregiver (minimizing the effects of maltreatment or
neglect) in the child's attachment system was also investigated.
Maltreated children (N=20) and neglect children (N=40) were recruited from
Portuguese Child Protective Services (CYPC). The non-maltreated and non-
neglected children (n=30) were recruited from a Private Preschool Institution
(they attend Kindergarten or Leisure Activities). Groups were similar in Socio-
Economic Status (SES), age, gender and verbal abilities. Abuse status was
assessed with an adapted version of the Maltreatment and Neglect Questionnaire
(Calheiros, 1996). Verbal abilities of children were assessed with the
"Hearing and Language" Scale of the Griffiths scales of mental
development (Griffiths, 1970). Attachment representations were assessed with
the Attachment Story Completion Task (ASCT; Bretherton, Ridgeway, &
Cassidy, 1990). The stories were coded according to Miljkovitch, Pierrehumbert,
Karmaniola, and Halfon (2003) Q-score methodology. Results show that maltreat
or neglected preschool children have more insecure (deactivation or
hyperactivation) and disorganized attachment representations, and less secure
strategies when compared to controls. No differences in attachment
representations were found as a function of the child's gender or as a
function of the existence of relationship with a non maltreating or non
neglectful adult. Results are discussed in terms of Attachment Theory and
future investigation proposals are made.
Key words:Attachment, Maltreatment, Neglect.
A organização e o desenvolvimento das interacções afectivas entre a mãe e a
criança foram alvo de diversas investigações que tiveram como base a hipótese
conceptual formulada por Bowlby (1940, 1958, 1969, 1981) e mais tarde revista
por Ainsworth e Bell (1970), por Ainsworth, Bell, e Stayton (1971) e por
Ainsworth, Blehar, Waters, e Wall (1978). O conceito de vinculação pressupõe
que as crianças desenvolvem modelos de representação interna do objecto
primário com que se relacionam, de si próprias e de si próprias em relação com
os outros, com base na experiência de relacionamento com o prestador primário
de cuidados (Bowlby, 1988; George & Solomon, 1999). Através destes modelos,
os afectos, as cognições e as expectativas acerca das interacções futuras vão-
se organizando de modo a influenciar as relações subsequentes (Cicchetti &
Toth, 1995). Ao estabelecimento de uma vinculação segura, por parte da criança,
liga-se um modelo representacional das figuras de vinculação como estando
disponíveis para a interacção e susceptíveis de proporcionar ajuda e bem-estar
e um modelo de si própria, complementar do primeiro, em que o indivíduo se
sente potencialmente capaz de ser amado (Cicchetti et al., 1995; Figueiredo,
1998). A confiança que estabelece em si e nos outros permite que a criança com
uma vinculação segura possa entrar mais facilmente numa relação interpessoal
calorosa e de confiança com os outros, ao longo da sua trajectória de
desenvolvimento (Figueiredo, 1998).
A par da evolução do conceito de vinculação surgiram as técnicas de avaliação
dos diferentes padrões. O primeiro procedimento de avaliação da vinculação,
designado por Situação Estranha (Ainsworth et al., 1978), permite a
classificação das crianças a partir dos doze meses, com base nos comportamentos
observados em contexto laboratorial. Posteriormente foram concebidos
instrumentos não só para crianças, mas também para adultos e adolescentes,
tendo por base as representações da vinculação. Os três padrões (seguro,
inseguro-ambivalente/resistente, inseguro-evitante) inicialmente propostos por
Ainsworth e colaboradores (1978), revelaram-se insuficientes para caracterizar
todas as crianças, sobretudo as provenientes de amostras de alto-risco como as
vítimas de maus-tratos ou filhas de mães deprimidas (Carlson, Cicchetti,
Barnett, & Braunwald, 1989; Crittenden, 1988a,b; Radke-Yarrow, Cummings,
Kuczynski, & Chapman, 1985; Spieker & Booth, 1988). Surgiu assim, a
necessidade de conceber um quarto padrão de vinculação - o padrão
desorganizado, cuja característica principal é a ausência de uma estratégia
organizada e consistente ao nível da regulação das emoções (Carlson et al.,
1989; van IJzendoorn, Schuengel, & Bakersman-Kranenburg, 1999).
Quando os prestadores de cuidados adoptam, em relação à criança, comportamentos
desadequados, nomeadamente sob a forma de maus-tratos ou de negligência, os
comportamentos e as representações da vinculação das crianças são afectados. A
investigação tem demonstrado que as crianças sujeitas a experiências de maus-
tratos ou de negligência têm maiores probabilidades de desenvolver padrões
inseguros de vinculação (Crittenden, 1985, 1988a) e vinculações desorganizadas
(Carlson et al., 1989). Estes padrões parecem surgir como forma de maximizar as
experiências de segurança e de minimizar a ansiedade num contexto de
indisponibilidade ou rejeição (Stovall-McClough & Dozier, 2004). Diversos
estudos têm concluído que as crianças sujeitas a este tipo de experiências
desenvolvem padrões muito inseguros de vinculação, constroem modelos
distorcidos do Self e percepcionam os outros como indisponíveis e rejeitantes
(Carlson et al., 1989; Crittenden, 1988b; van IJzendoorn et al., 1999). Existe,
no entanto, pouca investigação acerca dos efeitos das experiências de maus-
tratos ou de negligência sobre as representações da vinculação, em crianças de
idade pré-escolar. Assim, para esclarecer as consequências deste tipo de
vitimização na organização da vinculação foi delineado o presente estudo.
OBJECTIVOS
Os objectivos da investigação, alicerçados nos princípios da Teoria da
Vinculação foram:
(1) Determinar as representações da vinculação de crianças vítimas de maus-
tratos e de negligência, que permanecem na família, comparando-as com as
representações da vinculação de crianças que não forma sujeitas a este tipo de
vitimização; (2) Esclarecer a influência do género da criança na adopção de
estratégias de vinculação não seguras (desactivada, hiperactivada ou
desorganizada); (3) Avaliar a influência da relação com um adulto não
negligente e não maltratante na minimização dos efeitos dos maus-tratos e da
negligência perpetrados pelos prestadores de cuidados; (4) Reforçar a
necessidade de desenvolvimento de uma intervenção protectora tão precoce quanto
possível junto de crianças integradas em famílias maltratantes ou negligentes,
designadamente através do desenvolvimento e implementação de projectos de
intervenção desenhados para este tipo de populações de risco e (5) Contribuir
para o melhor conhecimento das técnicas de avaliação da vinculação utilizadas
neste estudo - Attachment Story Completion Task (ASCT; Bretherton et al.,
1990) e o sistema de codificação das histórias proposto por Miljkovitch e
colaboradores em 2003.
METODOLOGIA
Participantes
Participaram no estudo 90 crianças com idades compreendidas entre os 33 e os 82
meses. A média de idades era de 57,54 meses (desvio-padrão: 12,73).
Relativamente ao género 39 crianças eram do género feminino (43,33%) e 51 do
género masculino (56,7%). A selecção da amostra, designadamente dos grupos
"experimentais", foi feita com base numa abordagem combinada em que
se consideraram as classificações existentes nas CPCJ's (Almada, Seixal e
Setúbal) e os indicadores decorrentes da aplicação de uma versão modificada do
Questionário de Avaliação de Maus-tratos e de Negligência (Calheiros, 1996,
1998). O grupo "controlo" era composto por utentes de uma
Instituição Particular de Solidariedade Social integradas em ensino pré-escolar
e ATL, não apresentando indícios de maus-tratos ou de negligência. Desta forma,
procurou-se obter a melhor aproximação das amostras em relação à idade, ao
género, à classe social e às competências verbais.
Das 105 famílias de crianças com processo nas CPCJ's que convocámos,
compareceram 65 (ou seja 61,9%). Em 5 situações, as crianças recusaram-se a
permanecer com a observadora inviabilizando a aplicação da prova de avaliação
das representações da vinculação. Todos os responsáveis pelas crianças
aceitaram participar na investigação, numa taxa bastante superior à registada
noutros estudos designadamente o de Hollman e McNamara (1999) em que a
percentagem de pais que prestaram o consentimento activo para que os filhos
participassem em investigações deste tipo foi de 38,76%.
Instrumentos
Questionário de Avaliação de Maus-tratos e Negligência Adaptado(adaptação do
instrumento original de Calheiros, 1996)
Para uma avaliação global das várias tipologias de maus-tratos a que uma
criança pode estar sujeita, surgiu no nosso país o Questionário de Avaliação do
Mau Trato e Negligência, desenvolvido por Calheiros em 1996. O QMN (Calheiros,
1996) considera os valores culturais prevalecentes na nossa sociedade sobre os
limites do que é considerado aceitável e não aceitável nas práticas da relação
pais-filhos, permitindo uma avaliação clara e objectiva da situação de cada
criança. Todas as áreas definidas pela autora no instrumento foram encontradas
nos Códigos do Direito Português (Código Civil Português, 1990; Código Penal
Português, 1982). O instrumento teve por base a validação dos constructos mau
trato e negligência e destina-se a avaliar a ocorrência destes fenómenos, após
o seu preenchimento por técnicos que conheçam a criança e a dinâmica familiar
que a envolve. Trata-se de uma medida válida acerca das situações associadas
aos actos parentais abusivos e às consequências destes para as crianças
(Calheiros, 1998).
O questionário é composto por 18 itens organizados em 6 categorias: mau trato
psicológico, mau trato físico, negligência psicológica, negligência física,
abuso sexual e trabalho infantil. Para cada item, são efectuadas três
afirmações relativas a factos observáveis que dizem respeito à criança, ou ao
comportamento parental, ou dos adultos substitutos (ex.: a criança sofreu
pequenos acidentes provocados por falta de segurança que causaram danos
físicos; os pais/adultos substitutos não tratam a criança quando está doente,
etc.). Em relação a cada afirmação, solicita-se que seja identificada a
presença, ausência, desconhecimento ou suspeita dos factos. Este instrumento
pode também ser utilizado para despiste de circunstâncias de risco (quer de
maus-tratos, quer de negligência) favorecendo um diagnóstico mais preciso,
quando há suspeitas de vitimização.
A utilização da versão adaptada do Questionário de Avaliação do Mau Trato e
Negligência (Calheiros, 1996), apesar da existência de processo na Comissão de
Protecção de Crianças e Jovens (que indiciava algum tipo de vitimização), visou
apurar a tipologia do abuso de que a criança é ou foi alvo, de modo mais
rigoroso. Por outro lado, a nova versão daquele instrumento permitiu-nos aceder
a uma panóplia de informações sócio-demográficas essenciais para este estudo.
Attachment Story Completion Task(ASCT; Bretherton et al., 1990)
A Attachment Story Completion Task (ASCT), foi criada em 1990 por Bretherton e
colaboradores. A prova consiste numa tarefa de completamento de histórias (com
recurso a pequenas figuras representativas da família) e permite aceder aos
modelos internos de funcionamento em crianças com 3 anos de idade. Trata-se de
uma técnica que avalia as representações da vinculação da criança (Main,
Kaplan, & Cassidy, 1985; Waters, Rodrigues, & Ridgeway, 1998). As
histórias que compõem a tarefa foram concebidas para fazer realçar as
diferenças individuais acerca de temas relacionados com a vinculação.
A aplicação da prova começa por uma primeira história neutra (festa de
aniversário), cujo objectivo é familiarizar a criança com a metodologia.
Seguidamente, apresentam-se 5 inícios de histórias (o sumo entornado, o joelho
magoado, o monstro no quarto, a partida e o reencontro) sugerindo-se que a
criança lhes dê continuidade verbalmente, ou encenando pela manipulação dos
bonecos representativos da família. A classificação das histórias produzidas
pelas crianças tem em conta não apenas as verbalizações mas também o
comportamento não verbal, designadamente a manipulação das figuras
representativas da família.
Cartes pour le Complètement d'Histoires(CCH; Miljkovitch et al., 2003)
O sistema de codificação da ASCT, utilizado neste estudo, foi concebido em 2003
por Miljkovitch, Pierrehumbert, Karmaniola, e Halfon. Este instrumento consiste
numa metodologia de tipo Q-sort que permite classificar as produções (verbais e
não verbais) das crianças desencadeadas pelas histórias da ASCT (Bretherton et
al., 1990).
A técnica permite quantificar as estratégias de vinculação das crianças (ao
nível das representações) e caracterizar o modo como constroem uma narrativa.
Trata-se de questionário, sob a forma de Q-sort, que é usado pelo codificador.
Este modelo permite uma codificação global dos comportamentos observados,
apesar de alguns índices remeterem para aspectos específicos do brincar. A
classificação é obtida pela determinação das distâncias, através duma
correlação de Pearson, entre as respostas do sujeito e de outros protótipos,
relativamente a 4 estratégias de vinculação (segurança, desactivação,
hiperactivação e desorganização). Assim, obtêm-se os índices de aproximação da
criança observada e desses protótipos, ou seja os Q-scores. A criança não é
apenas enquadrada numa categoria, mas caracterizada em 4 eixos que correspondem
a cada estratégia de vinculação.
A adopção de uma estratégia segura de vinculação perante a tarefa de
completamento de histórias implica que a criança não se sinta ameaçada pelos
temas evocados. Estas crianças não exibem uma ansiedade exagerada perante a
prova e mostram-se dispostas a brincar produzindo uma narrativa com facilidade
e espontaneidade. Envolvem-se sem dificuldades nas histórias e desenvolvem
conteúdos expressivos, não estereotipados e pautados pelo afecto. São capazes
de simbolizar uma variedade de estados emocionais designadamente as emoções
negativas tais como a tristeza e a zanga. As personagens apresentam múltiplas
facetas e a narrativa não se centra apenas aspectos positivos. Por outro lado,
as crianças seguras tendem a mostrar uma atitude construtiva face aos problemas
pelo que, neste contexto, são capazes de reagir aos temas da separação e
desenvolver acções que permitam manter a vinculação.
As crianças que mostram uma inibição do sistema de vinculação (desactivação)
tendem a evitar os temas relacionados com a vinculação, causadores de níveis de
stresse significativos. Perante as tarefas propostas pela ASCT estas crianças
mostram-se muito relutantes em participar no completamento das histórias.
Quando se envolvem na construção das narrativas fazem-no de modo superficial
centrando-se nos estereótipos familiares sem introduzir emoções. Outro aspecto
importante é o facto de apresentarem dificuldades marcadas no reconhecimento
dos aspectos negativos das personagens e das relações de vinculação. São
incapazes de relatar acontecimentos ou emoções negativas. Têm grande
dificuldade em representar-se como alvo da protecção e ajuda no seio da família
e quando na história sugere uma ameaça aos laços de vinculação estas crianças
são incapazes de desencadear conteúdos que permitam o restabelecimento da
proximidade e da segurança. Na história do regresso, por exemplo, as crianças
evitantes não mostram sentimentos de alegria impedindo, muitas vezes, que o
reencontro seja consumado.
Nas crianças em que predominam estratégias de hiperactivação do sistema de
vinculação observa-se o inverso do se regista nas crianças evitantes: há uma
focalização nas emoções negativas e uma grande dificuldade em descrever
sentimentos de serenidade. No plano das representações, as crianças
ambivalentes mostram uma incapacidade para reagir de modo construtivo perante
as problemáticas da vinculação. A simples evocação de tais situações pode
provocar um sentimento de cólera tornando-se evidente a dificuldade em gerir
emoções. O stresse desencadeado pelas histórias iniciadas pode limitar a
capacidade de brincar, pelo que se observa frequentemente uma notória
dificuldade em construir narrativas e um envolvimento emocional desadequado.
Estas crianças parecem ficar bloqueadas nos aspectos negativos das histórias o
que as impede de conceber um final feliz. Apesar desta ausência de resolução é
provável que tomem consciência quase imediata das emoções negativas associadas
a cada situação. Comparando com o que se observa na Situação Estranha
(Ainsworth et al., 1978), procuram reagir instantaneamente ao tema da
separação, procurando pôr fim à distância sem simbolizar um reencontro feliz.
A caracterização das crianças desorganizadas obedeceu aos pressupostos
definidos por Solomon, George, e De Jong (1995). Há uma tendência para
desfechos marcados pelo controlo da situação ou fins catastróficos em que as
personagens são geralmente representadas como totalmente impotentes ou
absolutamente sós. A introdução de temas de desintegração das personagens ou da
família é comum. O exercício da disciplina evocado traduz-se geralmente em
acções exageradas e violentas, onde predominam os conteúdos agressivos e de
destruição. Muitas vezes, são atribuídas funções parentais às personagens
representativas das crianças. Estas narrativas são muitas vezes pouco coerentes
e desorganizadas, podendo a criança também adoptar uma postura de inibição,
ansiedade ou mutismo.
Para além dos protótipos enunciados, os autores desta metodologia de
codificação procuraram realçar as características do brincar e das
representações específicas. Assim, após uma análise em componentes principais,
definiram 6 escalas, correspondentes a cada aspecto específico do brincar: A
- colaboração; B - representações do apoio parental; C -
narrativa positiva; D - expressão adequada dos afectos; E - reacção
à separação; F - distância simbólica e, G - falha na competência
narrativa.
Escala de Audição e Fala da Prova de Desenvolvimento de Ruth Griffiths
(Griffiths, 1970)
Para garantir a comparabilidade dos vários grupos da nossa investigação, em
termos de competências linguísticas, recorremos a uma escala da prova de
desenvolvimento concebida por Griffiths (1970), a "Escala de Audição e
Fala". De todas as escalas que compõem a prova, esta é, segundo Griffiths
(1970), a mais intelectual por apelar à diversificação do vocabulário, à
utilização de diferentes componentes do discurso e ao uso de frases para
descrever as relações entre imagens.
Procedimento
Neste estudo foram constituídos dois grupos "experimentais"
(vítimas de maus-tratos e vítimas de negligência) e um grupo
"controlo" (crianças sem suspeita de maus-tratos ou negligência)
atendendo ao delineamento "quasi-experimental" adoptado.
Constituímos também grupos em função da variável independente género das
crianças e da existência uma relação privilegiada com um de adulto
significativo não maltratante ou negligente.
A composição dos grupos foi feita com base numa abordagem combinada em que se
conciliaram as classificações de maus-tratos e negligência usadas pelas
instituições que colaboraram connosco (Comissões de Protecção de Crianças e
Jovens) com critérios específicos para a investigação e os resultados da versão
modificada do QMN (Calheiros, 1996), de acordo com a proposta de Crittenden,
Claussen, e Sugarman (1994). Esta opção metodológica baseou-se nos resultados
obtidos em investigações com amostras de crianças maltratadas ou
negligenciadas, que demonstram que a utilização de informações provenientes de
diferentes fontes (ex.: registos médicos, questionários, entrevistas,
relatórios de serviços de protecção de menores, etc.), permite uma definição
mais clara da tipologia de maus-tratos e de negligência e uma redução da
heterogeneidade dos grupos (Mash & Wolfe, 1991). De facto, a adopção de
combinações de critérios em que se associam designações oficiais com
designações independentes, permite garantir a especificidade necessária para os
objectivos da investigação (Giovannoni, 1989).
Considerando os objectivos do estudo, as crianças avaliadas permaneciam
integradas na família. O primeiro grupo estudado era composto por crianças com
história de maus-tratos com processo instaurado nas Comissões de Protecção de
Crianças e Jovens, situação confirmada e tipificada através da versão
modificada do QMN (Calheiros, 1996). O segundo grupo incluiu as crianças
vítimas de negligência cuja situação foi também sinalizada àquelas entidades e
corroborada pelo QMN (Calheiros, 1996). As crianças que compunham o grupo
" controlo" eram utentes de Instituição Particular de Solidariedade
Social, integradas no ensino pré-escolar ou em ATL (Actividades de Tempos
Livres) e não apresentavam indicadores de vitimização. O recrutamento dos
participantes visou a comparabilidade das amostras relativamente às variáveis:
idade, género, competências verbais e estatuto sócio-económico.
Após o contacto com as CPCJ's foi efectuado o preenchimento do QMN
(Calheiros, 1996) em conjunto com os técnicos gestores de caso e com base nos
registos existentes nos processos individuais das crianças. Em seguida,
agendaram-se os momentos de contacto com os pais de modo a prestarem o
consentimento para que os seus filhos pudessem participar no estudo e, havendo
concordância, marcaram-se os momentos de avaliação das crianças,
preferencialmente nas instalações das CPCJ's. Houve, no entanto, uma
excepção: realizou-se a avaliação de uma criança no equipamento de apoio à
infância que frequentava, a pedido dos pais.
A aplicação das provas de avaliação psicológica teve a duração média de 45
minutos por criança e foi sempre efectuada em gabinete fechado, com as
dimensões e as condições de conforto adequadas. A ASCT (Bretherton et al.,
1990) foi gravada em áudio, sendo o registo dos comportamentos não-verbais
efectuado por escrito.
RESULTADOS
Os Q-scores de segurança, desactivação, hiperactivação e desorganização foram
determinados para todos os indivíduos estudados (N=90). As médias, os devios-
padrão, os valores mínimos e máximos de cada estratégia da vinculação são
apresentados no Quadro 1.
QUADRO 1
Valores médios, máximos e mínimos observados nas representações da vinculação
por estratégia de vinculação
Nos Quadros 2, 3 e 4 apresentamos as médias, os devios-padrão, os valores
mínimos e máximos, por estratégia de vinculação, para cada grupo. A testagem
das hipóteses de investigação foi antecedida da garantia de homocedasticidade e
de comparabilidade das amostras, pela confirmação da inexistência de diferenças
significativas entre os grupos, relativamente às variáveis: idade (através da
análise de variância), competências verbais, classe social e género (através do
teste de Qui-Quadrado). As 2 variáveis relacionadas com a idade (idade da
criança à data da aplicação da prova de avaliação das representações da
vinculação e idade da criança à data da sinalização), são contínuas e, por
isso, apurámos se diferiam significativamente da distribuição normal, nas 3
amostras, através do teste de Kolmogorov-Smirnov. Garantidos estes pressupostos
prosseguimos para a testagem das hipóteses.
QUADRO 2
Médias, Desvios-padrão, valores mínimos e máximos das estratégias de vinculação
no grupo de crianças maltratadas
QUADRO 3
Médias, Desvios-padrão, valores mínimos e máximos das estratégias de vinculação
no grupo de crianças negligenciadas
QUADRO 4
Médias, Desvios-padrão, valores mínimos e máximos das estratégias de vinculação
no grupo controlo
As 6 primeiras hipóteses de investigação (Hipótese 1 - no grupo composto
por crianças maltratadas, as médias dos Q-scores de desactivação,
hiperactivação e desorganização são significativamente mais elevadas do que as
médias dos Q-scores do grupo de crianças sem suspeita de maus-tratos ou de
negligência; Hipótese 2 - a média dos Q-scores de segurança é
significativamente mais elevada no grupo de crianças sem suspeita de maus-
tratos ou de negligência que no grupo de crianças vítimas de maus-tratos;
Hipótese 3 - no grupo de crianças vítimas de negligência, as médias do Q-
scores de desactivação, hiperactivação e desorganização são significativamente
mais elevadas do que as médias dos Q-scores do grupo de crianças sem suspeita
de maus-tratos ou de negligência; Hipótese 4 - a média do Q-score de
segurança é mais elevada no grupo de crianças sem suspeita de maus-tratos ou de
negligência que no grupo de crianças vítimas de negligência; Hipótese 5 -
no grupo de crianças maltratadas, a média do Q-score de desorganização é
significativamente mais elevada do que a média do Q-score de desorganização no
grupo de crianças negligenciadas; Hipótese 6 - no grupo de crianças
vítimas de negligência, a média do Q-score de desactivação é significativamente
mais elevada do que a média do Q-score de desactivação no grupo de crianças
maltratadas) foram testadas com o recurso à estatística paramétrica,
designadamente à análise de variância seguida dos testes de Tukey e Scheffe. A
homogeneidade das variâncias foi confirmada pelo teste de Levene e a igualdade
das médias das amostras, através dos testes de Welch e de Brown-Forsythe. Em
relação à variável segurança, verificámos que existem diferenças entre os 3
grupos [F(2,87)=18,235; p=0,000]. Na variável desactivação também se observam
diferenças entre os 3 grupos [F(2,87)= 16,306; p=0,000]. Também se observaram
diferenças na variável dependente hiperactivação em função da amostra sujeitos
[F(2,87)=5,776; p=0,004]. Finalmente, no que concerne à desorganização os
valores da estatística também indiciam a existência de diferenças entre as
amostras [F(2,87)=13,020; p=0,000]. Para percebermos entre que grupos ocorrem
as diferenças identificadas na análise de variância, efectuámos o teste de
Tukey (Honest Significant Difference). Esta análise permite-nos aceitar H1
relativamente às variáveis segurança, desactivação e desorganização, pois
observaram-se diferenças significativas entre a amostra de crianças maltratadas
e a amostra de crianças sem suspeita de vitimização.
As hipóteses 5 (no grupo de crianças maltratadas, a média do Q-score de
desorganização é significativamente mais elevada do que a média do Q-score de
desorganização no grupo de crianças negligenciadas) e 6 (no grupo de crianças
vítimas de negligência, a média do Q-score de desactivação é significativamente
mais elevada do que a média do Q-score de desactivação no grupo de crianças
maltratadas) não foram confirmadas, uma vez que não se observaram diferenças
significativas ao nível da desorganização e desactivação entre crianças vítimas
de maus-tratos e crianças vítimas de negligência.
O facto de não se terem confirmado diferenças significativas entre as crianças
do género masculino e feminino, em relação às estratégias de vinculação
adoptadas, não permite aceitar as hipóteses 7 (nas crianças do género masculino
dos 3 grupos - maltratadas, negligenciadas e sem suspeita de maus-tratos
ou de negligência -, as médias dos Q-scores de desactivação,
hiperactivação e desorganização são significativamente mais elevadas do que as
médias dos Q-scores das crianças do género feminino dos mesmos grupos) e 8 (a
média do Q-score de segurança é significativamente mais elevada nas crianças do
género feminino dos 3 grupos do que a média do Q-score observada em crianças do
género masculino dos mesmos grupos). Os resultados do teste tde Student, em
relação às quatro variáveis dependentes foram: segurança [t(88)=0,907;
p=0,367], desactivação [t(88)=-0,016; p=0,312], hiperactivação [t(88)= 1,341;
p=0,183] e desorganização [t(88)=-0,300; p=0,765].
A influência da relação com um adulto significativo não maltratante ou não
negligente também não pareceu determinar diferenças em termos de estratégias de
vinculação em crianças vítimas de maus-tratos ou de negligência, pelo que não é
possível aceitar as hipóteses 9 (as crianças maltratadas ou negligenciadas que
não estabeleceram uma relação com um adulto significativo não maltratante ou
não negligente apresentam médias dos Q-scores de desactivação, hiperactivação e
desorganização significativamente mais elevadas do que as médias dos Q-scores
das crianças maltratadas ou negligenciadas que estabeleceram uma relação com um
adulto significativo não maltratante ou não negligente) e 10 (a média do Q-
score de segurança é significativamente mais elevada no grupo de crianças
maltratadas ou negligenciadas que estabeleceram uma relação com um adulto
significativo não maltratante ou não negligente do que a média no grupo de
crianças maltratadas ou negligenciadas que não estabeleceram qualquer relação
com um adulto significativo não maltratante ou não negligente). Os valores
registados foram: em relação à estratégia segura, t(58)=-0,157 e p=0,876; para
a desactivação, t(58)=0,259 e p=0,797; na estratégia hiperactivada t(58)=-0,195
e p=0,846 e, em relação à estratégia desorganizada t(58)=0,575 e p=0,568.
DISCUSSÃO
Os resultados da presente investigação corroboram a hipótese de que as
experiências de maus-tratos ou de negligência na infância estão
significativamente associadas a representações inseguras da vinculação
(desactivadas, hiperactivadas e desorganizadas) em crianças de idade pré-
escolar. Não se verificaram, contudo, diferenças significativas entre o grupo
de crianças maltratadas e o grupo de crianças negligenciadas no que concerne às
representações da vinculação. Também no que diz respeito ao género das
crianças, não se observaram diferenças ao nível das representações da
vinculação. A existência de um adulto significativo não maltratante não
influenciou significativamente as representações da vinculação das crianças
maltratadas ou negligenciadas.
A presente investigação permitiu ainda concluir que as metodologias de
avaliação e de classificação das representações da vinculação utilizadas
parecem adequar-se às amostras estudadas. Quanto às limitações deste estudo,
importa realçar as dificuldades observadas ao nível da discriminação entre
maus-tratos e negligência (fenómenos geralmente concomitantes), as dificuldades
na avaliação das representações da vinculação (aplicações não filmadas;
investigação, aplicação e classificação das provas efectuada pela mesma
pessoa), a impossibilidade metodológica de determinar a influência da
precocidade dos abusos nas representações da vinculação bem como a qualidade da
relação com um adulto significativo sobre as representações da vinculação das
crianças, no contexto da hierarquia das vinculações (Main, 1999). Assim,
sugere-se o aprofundamento destas influências recorrendo ao conceito de apoio
social (percebido pela própria criança e pelo adulto prestador de cuidados).
Parece-nos, também, premente esclarecer até que ponto estas representações são
estáveis e a sua relação com as representações da vinculação do adulto
responsável pela criança, segundo o princípio da transmissão intergeracional
(Fonagy & Target, 1997; Miljokovitch, Pierrehumbert, Bretherton, &
Halfon, 2004; Soares, 1996; Zeanah, Benoit, Barton, Regan, & Hirshberg,
1993), com vista à identificação de factores protectores e de risco que possam
orientar a adopção de medidas preventivas e de intervenção com crianças vítimas
de maus-tratos ou de negligência e suas famílias.
O facto de termos observado um número significativo de vinculações não seguras
nos grupos de alto-risco estudados (vítimas de maus-tratos ou de negligência)
justifica o delineamento de programas de intervenção baseados na Teoria da
Vinculação específicos para estas famílias. Estes programas teriam como
objectivo principal a promoção de mudanças nas representações da vinculação
através de uma abordagem centrada nas interacções mãe-criança.