A expressão no Rorschach dos fenómenos transitivos e do espaço potencial na
personalidade borderline
A expressão no Rorschach dos fenómenos transitivos e do espaço potencial na
personalidade borderline (*)
Marta Queiroz Godinho (**)
Maria Emília Marques (***)
Catarina Bray Pinheiro (****)
RESUMO
Pretendemos compreender, à luz do método Rorschach, as características dos
fenómenos transitivos e do espaço potencial no sujeito borderline. O estudo
destes conceitos é desenvolvido tendo por base as teorias de Winnicott e Ogden
sobre a psicopatologia dos fenómenos transitivos e do espaço potencial,
respectivamente. Para uma melhor compreensão destes conceitos no caso
borderline, procuramos articulá-los com os conceitos de função materna e de
angústia branca de Green.
O método Rorschach é perspectivado na sua dimensão intersubjectiva e dinâmica,
em que o apelo a um duplo modo de funcionamento (perceptivo e projectivo)
permite uma compreensão mais aprofundada da dinâmica relacional entre o interno
e o externo, no espaço psíquico do sujeito borderline. É elaborada uma leitura
dos conceitos de fenómenos transitivos e de espaço potencial, procurando
integrar e articular a revisão de literatura e os elementos Rorschach. Neste
contexto é aplicado o Rorschach a um sujeito do sexo feminino com o diagnóstico
de perturbação borderlineda personalidade.
Da análise do protocolo destacamos que, apesar da impossibilidade de
estabelecer uma relação intersubjectiva entre o real e o imaginário, o interno
e o externo, o sujeito é capaz de mobilizar estratégias arcaicas que lhe
permitem um contacto mínimo com o outro. A imagem Rorschach é experimentada
como um objecto real, adquirindo a função (suporte) e as qualidades
(reconfortantes) de um objecto transitivo. Os movimentos do sujeito dão conta
de uma aproximação ao espaço potencial - espaço prépotencial.
Palavras chave: Borderline, Espaço potencial, Fenómeno transitivo, Função
materna, Rorschach.
ABSTRACT
This study uses the Rorschach method in order to understand the characteristics
of both transitional phenomena and potential space in patients with Borderline
Personality Disorder (BPD). The approach to the aforementioned concepts follows
respectively Winnicott and Ogden's theories about transitional phenomena
and potential space psychopathology. For a better understanding of both
concepts in the context of BPD, we have articulated them with motherhood
function and Green's white anguish.
Inter-subjective and dynamic features of the Rorschach Method, both of which
call for a double working mode (perceptive and projective), are herewith used
eventually leading to a deeper understanding of the existing relational
dynamics "internal-external" in the psychic space of borderline
patients. Thus, the main concepts under analysis are interpreted in the light
of a literature review, which is duly articulated with Rorschach elements. In
this context we have applied the Rorschach method to a female individual who
had been previously diagnosed BPD.
The analysis performed to the protocol demonstrates the patient's ability
to apply very basic strategies in order to enter into a minimum contact with
external objects, though she is not capable of establishing an inter-subjective
relation between fantasy and reality or between the internal world and the
external world. The patient with BPD experiences the Rorschach image as if it
was a real object that bears the function (holding) and the (cheering)
characteristics of a transitional object. These strategies points to an
approximation to a potential space, i.e., a pre-potential space.
Key words:Borderline, Motherhood function, Potential space, Rorschach,
Transitional phenomena.
INTRODUÇÃO
Partindo de uma abordagem psicodinâmica, visamos compreender as características
dos fenómenos transitivos e do espaço potencial no sujeito borderline, através
do método Rorschach. Para o estudo destes conceitos, recorremos às teorias de
Winnicott e de Ogden sobre a psico-patologia dos fenómenos transitivos e do
espaço potencial, respectivamente.
Dada a importância dos cuidados primários no desenvolvimento de uma autonomia
física e psíquica que permita ao sujeito construir as suas próprias
experiências, procuramos articular o conceito de função materna com os
conceitos em estudo. Para uma melhor compreensão destes conceitos no caso
borderline, procuramos relacioná-los com o conceito de angústia branca de
Green.
Tendo em conta o objectivo do estudo, propomos uma leitura dos conceitos de
fenómenos transitivos e de espaço potencial, procurando integrar e articular a
revisão de literatura e os elementos Rorschach. Neste contexto, é aplicado o
Rorschach a um sujeito do sexo feminino com
o diagnóstico de perturbação borderlineda
personalidade. A pertinência deste estudo reside no facto de o Rorschach
permitir, através do apelo a um duplo modo de funcionamento (apelo ao real e ao
imaginário), conhecer, numa dimensão simbólica, a dinâmica relacional entre o
mundo interno do sujeito e o mundo externo e, por conseguinte, aferir sobre a
capacidade do sujeito em aceder à área dos fenómenos transitivos.
Reconhecida a dificuldade do sujeito borderlineem aceder à área dos fenómenos
transitivos, o Rorschach pode dar-nos conta das estratégias mobilizadas para
estabelecer uma separação e um contacto mínimo com o Outro.
FENÓMENOS TRANSITIVOS E ESPAÇO POTENCIAL
Winnicott (1971/1975) introduziu os conceitos objecto transitivo e fenómeno
transitivo para designar a área intermediária entre o erotismo oral e a
verdadeira relação de objecto.
A primeira possessão "não-Eu" é designada por Winnicott como
objecto transitivo. É através de um holdingadequado que o bebé começa a
construir a chamada "continuidade de ser". A falta de um
holdingadequado, conduz à interrupção da continuidade de ser (Winnicott, 1986).
De acordo com Davis e Wallbridge (1981), em termos psicológicos, o holdingtem a
função de suporte do Eu.
A característica essencial da área dos objectos e fenómenos transitivos é o
paradoxo e a aceitação do paradoxo: o bebé cria o objecto, mas este já lá
estava para ser criado e investido. Quando este paradoxo é aceite, o objecto
transitivo é gradualmente desinvestido (Winnicott, 1971/1975). Segundo Pontalis
(1999), ao perder gradualmente a sua significação, o objecto transitivo é
substituído na sua função por uma difusão de fenómenos transitivos que não
precisam do suporte real de um objecto.
Winnicott (1971/1975), refere que o objecto e os fenómenos transitivos
correspondem a uma área neutra de experiência. Segundo Davis e Wallbridge
(1981), Winnicott defende que é apenas ao ser criativo que o indivíduo descobre
o Selfe, ainda, que para viver criativamente o indivíduo tem que continuar a
ser capaz de descobrir a sua própria realidade interna, através de uma forma
pessoal de experienciar a realidade externa.
O problema na patologia borderlineé que a persistência de inadequação do
objecto externo leva ao desvanecimento do objecto interno. Segundo Green
(1997), o desvanecimento gradual das representações internas está relacionado
com a representação interna do negativo - uma representação da ausência
de representação - a qual se expressa ou em termos de uma alucinação
negativa ou no campo do afecto, por anulação, por vazio, ou num grau menor, por
futilidade e/ou sem sentido. Este autor refere que a grande contribuição de
Winnicott é mostrar que, a certa altura, este negativo, esta não-existência ou
vazio torna-se na única coisa real para o sujeito.
De acordo com as ideias defendidas por Green, Pinheiro (2005) refere que,
perante a perda sofrida, o sujeito utiliza o desinvestimento do objecto
maternal e a identificação inconsciente à mãe morta. Surge uma identificação
primária à mãe, sendo a relação simétrica a única possibilidade de restabelecer
a reunião. É neste sentido que Green fala na existência de um narcisismo
negativo, isto é, um retorno à inexistência, ao afecto branco, ocorrendo uma
aproximação à morte psíquica. Segundo Pinheiro (op. cit.), o afecto branco é a
indiferença entre o bom e o mau, o dentro e o fora, o Eu e o objecto. A esta
angústia de perda do objecto, Green dá o nome de angústia branca, porque o que
existe é o vazio. Pinheiro (op. cit.) defende que sem um objecto constituído
como continente não é possível a construção do narcisismo positivo, isto é, não
é possível construir o espaço potencial.
Davis e Wallbridge (1981) referem que o desenvolvimento de um espaço potencial
depende do desenvolvimento de um sistema interno de limite, espaço e de tempo.
Cada sujeito, através das experiências vividas, pode construir um sentido de
continuidade.
O fracasso precoce da fidedignidade ambiental, que se verifica na patologia
borderline, não permite ao sujeito ser capaz de fazer a distinção entre o seu
mundo interno e externo e, consequentemente, impossibilita a criação de um
espaço potencial próprio, onde o sujeito possa construir e reconstruir as suas
próprias experiências.
Para explicar como a actividade psicológica cria o espaço potencial, Ogden
(1985) utiliza o conceito de processo dialéctico. O processo dialéctico
encontra-se no centro da criação da subjectividade, que corresponde aos
diferentes graus de conhecimento próprio, que vão desde a auto-reflexão
intencional ao mais subtil e discreto "sentido do Eu" (I-ness).
Paradoxalmente, o "sentido do Eu" só se torna possível através do
Outro. No início, o "estado de dois" (two-ness) é uma qualidade da
relação mãe-bebé. A obtenção da capacidade de manter uma dialéctica
psicológica, envolve a transformação da unidade em "estado de três"
(three-ness): o símbolo, o que este simboliza e o próprio sujeito. A diferença
entre os três cria a possibilidade de triangularidade, dentro da qual o espaço
é criado. Segundo Ogden (1985), a função simbólica é uma consequência directa
da capacidade para manter dialécticas psicológicas.
De acordo com Amaral Dias (2004), o problema nos sujeitos borderlineé que eles
estão permanentemente a precisar de uma pele mental que organize, ou pseudo-
organize, isto é, utilizam o objecto como uma segunda pele (mental). Para que o
indivíduo viva, é necessário que ele esteja no mesmo tempo e no mesmo espaço
que o outro, isto é, tem de estar na dependência do outro - condição
assimbólica. A identificação à função continente não fica feita de forma
completa no borderline, e é por esta razão que Amaral Dias (2004) fala na
existência de uma permeabilidade do pensamento, porque, nestes casos, a pele
rompe.
Ogden (1985), refere que a psicopatologia da simbolização que se verifica no
sujeito borderline, é baseada em formas específicas de fracasso em criar ou
manter adequadamente um processo dialéctico psicológico, destacando as
seguintes: (a) a realidade é substituída pela fantasia- a dialéctica da
realidade e da fantasia cai na direcção da fantasia, de tal forma que a
fantasia torna-se uma coisa em si própria, tão tangível, poderosa, perigosa e
gratificante como a realidade externa, da qual não pode ser diferenciada; (b) a
realidade como uma defesa contra a fantasia- a dialéctica da realidade e
fantasia pode tornar-se limitada ou cair na direcção da realidade, quando esta
é usada predominantemente como uma defesa contra a fantasia. Nestas
circunstâncias, a realidade rouba a vitalidade da fantasia e a imaginação é
excluída; (c) dissociação dos pólos da realidade e da fantasia do processo
dialéctico- a dialéctica entre a realidade e a fantasia torna-se
restrita, quando ambas estão dissociadas de forma a evitar um conjunto
específico de significados; e (d) a exclusão da realidade e da fantasia-
quando a constituição da unidade mãe-bebé se torna difícil, a consciência
prematura e traumática desta separação torna a experiência tão insuportável,
que as medidas de defesa extrema são instituídas, tomando a forma de uma
cessação da atribuição do significado da percepção. A experiência é excluída, e
tal acontece, não tanto pelo facto de a fantasia e a realidade serem negadas,
mas sim pelo facto de nem chegarem a existir. Para Ogden, este estado de não-
experiência é visto como uma defesa super-ordenada, à qual se recorre quando
todas as outras operações defensivas se mostraram insuficientes para proteger a
criança contra o sofrimento psicológico opressivo.
OBJECTIVO DE ESTUDO
Apesar da dificuldade do sujeito borderlineem se situar na área dos fenómenos
transitivos, poderia utilizar estratégias que possibilitassem a comunicação com
o Outro. Partindo do princípio que os objectos servem a função de suporte,
estes poderiam ser investidos como se de objectos transitivos se tratassem.
Tendo em conta o conceito de permeabilidade do pensamento de Amaral Dias
(2004), a utilização do Outro como um objecto de suporte evidenciaria a
possibilidade de um contacto mínimo com a realidade, o Outro, podendo haver uma
aproximação ao espaço potencial - espaço pré-potencial.
As ideias supramencionadas poderiam traduzir-se no Rorschach das seguintes
formas: (1) os sujeitos poderiam relacionar-se com as imagens Rorschach ou com
os cartões como se estes fossem objectos reais; (2) as imagens ou cartões
seriam transformados em objectos de suporte; e (3) seriam atribuídos qualidades
específicas dos objectos transitivos, sendo estes objectos convertidos em
objectos reconfortantes.
PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE
Dadas as características do método Rorschach, propomos uma leitura dos
conceitos de fenómenos transitivos e espaço potencial no protocolo Rorschach de
um sujeito borderline, através da análise cartão a cartão e dos traços
salientes do psicograma. Os elementos usados na análise, estão sintetizados na
tabela que a seguir apresentamos:
PARTICIPANTE
O protocolo foi recolhido no Hospital de Santa Maria, onde Joana se encontra em
internamento parcial no Hospital de Dia do Serviço de Psiquiatria.
Da avaliação psicológica realizada, concluiu-se tratar-se de uma patologia
borderline, destacando-se: (1) emergência em processo primário; (2)
permeabilidade da pele psíquica; e (3) clivagem de objecto e identificação
projectiva patológica.
ANÁLISE DO PROTOCOLO
Análise cartão a cartão
No cartão I, a abordagem aparentemente global e adaptativa da realidade
("um morcego") pode ser entendida como uma defesa contra o
surgimento do mundo fantasmático do sujeito. De acordo com a teoria da
psicopatologia do espaço potencial de Ogden, a dialéctica entre a realidade e a
fantasia cai na direcção da realidade, retirando-se toda a vitalidade à
fantasia. Face a uma nova experiência sentida como ameaçadora, Joana não é
capaz de estabelecer uma relação dinâmica entre o interno e o externo, o real e
o imaginário de forma a construir novos objectos. A relação ao real é marcada
pela procura de neutralidade. Na busca do neutro, o outro é eliminado.
Tendo em conta o simbolismo materno do cartão I, num segundo momento, o
conteúdo "tarântula"pode remeter-nos para uma imago materna
ameaçadora, persecutória e destrutiva. No inquérito, a apreensão global da
mancha, através do recurso ao esbatimento de perspectiva, reflecte a procura de
um apoio, permitindo ao sujeito manter uma certa distância espacial e temporal
em relação ao objecto ("podia estar a vê-la de um avião..."). A
"tarântula"é sentida como ameaçadora, mas não constitui um perigo
para o sujeito, não pode "feri-lo". Na acepção de Ogden, o
"estado de dois" (two-ness) dá conta da possibilidade de
comunicação, ténue, entre o sujeito e objecto e, por conseguinte, os movimentos
de Joana evidenciam uma aproximação ao espaço potencial - espaço pré-
potencial.
Na análise global do cartão observamos dois registos de funcionamento
distintos. De acordo com a teoria de Ogden, num primeiro momento, a realidade é
utilizada como defesa contra a fantasia, não sendo possível o acesso ao mundo
fantasmático do sujeito; num segundo momento, a dialéctica entre a realidade e
a fantasia cai na direcção da fantasia. Esta situação revela a impossibilidade
do sujeito mobilizar, simultaneamente, mecanismos perceptivos e projectivos na
construção de um "novo objecto". Joana não consegue aceder à área
transitiva, embora se socorra de estratégias para amortecer o impacto
fantasmático.
No cartão II, a abordagem global da mancha evidencia um conteúdo mutilado
("... animal morto... vê-se o pêlo de animal e sangue..."), o que
dá conta da destrutividade da relação. Joana procura centrar-se no recorte
perceptivo da mancha ("... animal... não sei se é um cão ou um
gato..."), mas acaba por ser invadida pelo seu mundo fantasmático
("... vê-se o pêlo do animal e sangue..."). A sensibilidade à cor
vermelha ("porque está cheio de sangue") contribui para a invasão
dos afectos, na medida em que os movimentos pulsionais agressivos reforçam a
vivência destrutiva da relação. Também a referência à qualidade táctil
("pêlo") evidencia a associação a uma representação e/ou afecto
desagradável através da relação "pêlo" → "sangue" e,
por conseguinte, a sensibilidade ao esbatimento não permite amortecer o impacto
fantasmático.
Tendo em conta que este é um cartão bilateral, a apreensão do todo pode ser
encarada como um defesa contra a relação sentida como perigosa e destrutiva. A
utilização do todo contra a bilateralidade dá conta da impossibilidade do
sujeito em manter um compromisso entre os movimentos de integração e os de
desestabilização e dispersão suscitados pela simetria do cartão. Na acepção de
Ogden, esta falta de compromisso é entendida como o fracasso em manter uma
dialéctica de unidade e de separação. Esta situação põe em evidência a
impossibilidade de Joana desenvolver a sua própria subjectividade, pois, só na
relação com o outro é que o sujeito pode construir as suas próprias
experiências e, assim, possuir um espaço potencial próprio, constitutivo do
sentimento de ser.
No inquérito, Joana revela uma perda de distância face à imagem Rorschach
("quando passo de carro vejo um animal no chão e arrepia-me"), o
que indica que a imagem é experimentada como um objecto "real",
sendo incorporada na experiência actual do sujeito. A imagem Rorschach é
justificada pela experiência passada do sujeito, criando a ilusão de que esta e
as experiências passadas do sujeito são permutáveis, permitindo, desta forma,
negar a distância temporal e espacial que existe relativamente ao objecto. A
indiferenciação entre o sujeito e o objecto dá conta da impossibilidade do
sujeito se situar na área dos fenómenos transitivos.
Na abordagem do cartão III, Joana começa por realizar um movimento de separação
entre as duas figuras. No entanto, estas não se encontram em relação
("... uma pessoa de cada lado"). A abordagem global e perceptiva da
mancha pode ser entendida como um defesa contra o mundo imaginário que ameaça
irromper. No inquérito, a atribuição de movimento às duas figuras ("...
estão tão zangados que têm vontade de arrancaro coração um do outro, de matar
um ao outro"), bem como a associação de um movimento pulsional a um
conteúdo anatómico ("estão tão zangados que o coração até salta"),
dão conta da emergência de um mundo fantasmático destrutivo e arcaico. Ao
centrarmo-nos no simbolismo do conteúdo anatómico, o
"coração"implica um menor controlo do pensamento e, neste sentido,
a expressão "o coração até salta"traduz a impossibilidade de Joana
conter a pulsão, ocorrendo uma invasão dos afectos. O contacto com o Outro é
vivido como algo destrutivo e invasivo. Podemos considerar a impossibilidade da
cinestesia mobilizar, simultaneamente, movimentos perceptivos e projectivos e,
por conseguinte, a impossibilidade de Joana aceder à área transitiva.
Em seguida, a focalização de Joana numa parte da mancha indica uma dificuldade
de inserção no real, devido à intensidade da projecção pulsional e
fantasmática. O conteúdo "sapateira"revela que o contacto com o
outro é sentido como destrutivo e ameaçador ("... Dá a impressão que esta
sapateira feriu alguém"). A vivência destrutiva e invasiva da relação dá
conta da indiferenciação entre o dentro e o fora, entre a realidade e a
fantasia, não sendo possível Joana situar-se na área transitiva. Esta situação
é traduzida, na linguagem de Ogden, por um fracasso em manter um processo
dialéctico, em que a dialéctica entre a realidade e a fantasia cai na direcção
da fantasia, tornando-se tão real como a realidade exterior, da qual não se
pode diferenciar.
Por fim, a centração no recorte perceptivo da mancha ("... patas de um
boi ou de uma vaca") revela que a adaptação ao real não permite o emergir
do mundo fantasmático. A realidade é utilizada como defesa contra a fantasia.
Joana não é capaz de se situar na área transitiva, não conseguindo integrar, na
mesma resposta, movimentos perceptivos e projectivos.
Na passagem para o cartão IVdeparamo-nos com uma perda de distância
relativamente ao objecto, evidenciada pela expressão directa de um sentimento
de perigo ou ameaça face à imagem Rorschach ("Ui aqui estou a ver um
monstro..."). Esta situação representa uma perda de simbolização, na qual
Joana reage afectiva-mente à imagem, como se esta fosse realmente o próprio
objecto (o monstro), negando a diferenciação entre o interno e o externo.
A abordagem global da mancha dá conta de um conteúdo ameaçador e terrífico
("... monstro..."), que põe em evidência uma invasão fantasmática.
A dificuldade de separação entre o real e o imaginário é, de igual modo,
demonstrada pelo facto de o monstro, figura irreal, ter uma característica
humana ("... com enormes pernas..."). No inquérito, a atribuição de
movimento ao monstro evidencia, por um lado, este conteúdo ameaçador e
terrífico ("... por um lado, pode meter medo..."), mas, por outro,
dá conta de um conteúdo reconfortante, acolhedor ("... mas por outro(...)
pode abraçar ou acarinhar alguém... não é tão monstruoso assim"). Esta
situação revela a presença de um mecanismo de defesa característico do
borderline - a clivagem- o objecto é mau, mas também é bom. A
incapacidade de integrar as boas e más imagens do objecto remete para a
impossibilidade de separação e comunicação entre o interno e o externo, o
sujeito e o objecto. Apesar desta realidade, a referência a um conteúdo
reconfortante indica que este pode ser utilizado como um objecto de suporte,
adquirindo a função de um objecto transitivo, na acepção de Winnicott. A
cinestesia permite uma comunicação ténue com o Outro, embora à custa de um modo
de funcionamento menos evoluído.
Na passagem para o cartão invertido, ocorre um movimento regrediente em que a
restrição a uma parte da mancha dá conta de uma dificuldade de inserção no
real, revelando a dificuldade do sujeito diferenciar a parte ("... a
cabeça de uma lula") do todo ("... também parece uma criatura
voadora"). A presença de um conteúdo que pode ser tanto inteiro como
parcial, põe em evidência a dificuldade do sujeito se ver como um todo,
inteiro, completo e separado do mundo externo e, por conseguinte, a
impossibilidade do sujeito aceder à área transitiva. A dificuldade de Joana se
adequar ao estímulo perceptivo revela, de acordo com Ogden, que esta não
consegue manter uma dialéctica psicológica entre o real e o imaginário, sendo a
realidade substituída pela fantasia, ocorrendo uma invasão do mundo
fantasmático.
A expressão de um sentimento de estranheza, no cartão V, dá conta de uma perda
de distância relativamente ao objecto, na qual Joana reage afectivamente ao
cartão como se este fosse o próprio objecto ("Isto é só criaturas
estranhas..."). Deste modo, a apreensão global da mancha é utilizada como
defesa contra um mundo fantasmático sentido como ameaçador. Por outro lado, o
recurso à globalidade da mancha só é possível através de uma imagem pouco
definida ("parece-me um insecto visto numa grande lupa"). Esta
dificuldade do sujeito se representar como um todo definido no contacto com a
mancha, evidencia a falta de diferenciação entre o dentro e o fora e, por
conseguinte, indica a dificuldade do sujeito aceder à área transitiva. Apesar
desta realidade, Joana consegue alcançar a unidade (ainda que mal definida),
utilizando a "lupa" como um objecto de suporte, o que permite a
comunicação, precária, entre o interno e o externo. Joana utiliza a
"lupa" como se esta fosse um objecto transitivo, ao lhe atribuir a
função deste objecto.
Em seguida, a restrição a uma parte da mancha, bem como a ambiguidade do
conteúdo ("... parece pernas, patas de um animal...") dão conta da
impossibilidade do sujeito se ver como um todo inteiro e completo (... Parece
que só tem patas").
Nesta linha de pensamento, o eixo simétrico indica que a união das duas patas
(... parecem juntas") põe em evidência uma relação de fusão entre o
sujeito e o outro. Esta situação traduz a impossibilidade em aceitar a
diferença, não sendo possível estabelecer uma relação com o outro. De acordo
com a teoria de Ogden, a dialéctica entre a unidade e a separação cai na
direcção da unidade- sujeito e objecto são o mesmo. A indiferenciação
entre o sujeito e objecto revela falhas no processo de simbolização e, por
conseguinte, o sujeito não é capaz de se situar na área intermediária entre o
real e o imaginário, entre o dentro e o fora. Não é possível a constituição do
"estado de dois" (two-ness) nem do "estado de três"
(three-ness).
No cartão VI, a imagem global traduz uma imagem de suporte ("... pele de
animal pendurada"). Tendo em conta que a sensibilidade táctil
("pele") nos remete para os cuidados primários, o esbatimento de
textura dá conta, por um lado, da existência de falhas no holdinge, por outro,
dá conta da procura de apoio, sendo a imagem investida como se se tratasse de
um objecto transitivo, na medida em que adquire a sua função de suporte. A
utilização do outro como um objecto anaclítico, permite uma comunicação ténue
entre o interno e o externo, entre o sujeito e o objecto. A possibilidade do
sujeito estabelecer uma relação mínima entre o dentro e o fora, permite-lhe
aceder à área transitiva, ainda que à custa de um modo de funcionamento mais
arcaico.
No cartão invertido, a sensibilidade de Joana à simetria dá conta de uma
tentativa de separação que falha, devido à referência à imagem especular
("... um pulmão de cada lado"). A linha média ("a coluna
vertebral") representa a linha que separa duas entidades que são a
repetição do mesmo. Esta situação traduz, na acepção de Ogden, a
impossibilidade do sujeito manter um processo dialéctico de unidade e de
separação, caindo a dialéctica na direcção da unidade. Esta impossibilidade
representa falhas no processo de simbolização, não sendo o sujeito capaz de, no
contacto com o Outro, se reconhecer como um ser íntegro, coeso e diferenciado.
A impossibilidade de Joana distinguir entre o "Eu" e o "não-
Eu" dá conta da inexistência de um espaço potencial próprio, constitutivo
do sentimento de ser.
Em seguida, ocorre um movimento progrediente, em que a sensibilidade aos tons
esbatidos da mancha dá conta da possibilidade de Joana manter uma certa
distância face ao objecto ("... uma estrada e de cada lado da estrada há
uma lagoa..."). A possibilidade de uma distância mínima entre o sujeito e
o objecto não é apenas espacial, mas também temporal (inquérito -
"... Parece aquelas viagens ao lado do rio e depois há cursos de
água."). A referência ao "curso da água" remete-nos para a
ideia de continuidade no tempo. Deste modo, o movimento implícito da água
também evidencia a possibilidade de uma comunicação precária entre o dentro e o
fora. O eixo de simetria (a estrada) representa a separação ténue entre o
sujeito e o Outro. Apesar da impossibilidade de uma relação intersubjectiva
entre o dentro e o fora, a construção tridimensional da imagem dá conta de uma
aproximação ao espaço potencial. Falamos de espaço pré-potencial na medida em
que os movimentos de Joana apenas permitem um "esboçar" deste
espaço.
No cartão VII, a atribuição de movimento a um conteúdo inanimado, desvitalizado
("... um boneco de cada lado a olhar um para o outro..."), bem como
a referência a duas figuras femininas que não se encontram num cenário
relacional ("... parece duas meninas com um totó..."), dão conta da
impossibilidade de relação. Contudo, a referência ao conteúdo
"boneco" e ao conteúdo infantilizado "meninas com
totó", pode representar uma procura de conforto e, neste sentido, estes
conteúdos adquirem o valor de um objecto transitivo. Não é possível estabelecer
uma relação intersubjectiva entre o interno e o externo, o que traduz a
impossibilidade de Joana se situar na área transitiva. No entanto, esta utiliza
estratégias arcaicas para estabelecer um contacto com o Outro, procurando
transformar a imagem Rorschach num objecto confortável.
Na passagem para o inquérito ocorre um movimento progrediente, na medida em que
a referência ao "baloiço" permite a relação entre as duas figuras
femininas ("... duas meninas num baloiço para cima e para
baixo..."). O carácter instável e desequilibrado do "baloiço"
revela que este apenas permite um contacto frágil com o Outro, sendo utilizado
como um objecto de suporte. A imagem Rorschach é investida como se fosse um
objecto transitivo, servindo a sua função. Joana consegue fazer uso do objecto
transitivo ainda que de uma forma inadequada.
A resposta seguinte situa-se no mesmo registo, em que a "rocha",
tal como o "baloiço", serve de suporte à relação, permitindo apenas
uma comunicação precária com o outro ("... podia ser um gato(...) estão a
fazer equilíbrio em cima de uma rocha"). No entanto, o
"baloiço" poderá constituir um suporte mais evoluído que a
"rocha", uma vez que serve de suporte a uma relação humana.
Atendendo à inversão figura-fundo, a "ilha"pode constituir um
conteúdo isolado, que não permite o contacto com o outro. Tendo em conta que o
branco remete para o vazio, o neutro, o preenchimento da lacuna extramacular
("... o branco é o mar"), no inquérito, representa uma procura de
apoio que traduz a tentativa de Joana para restabelecer o contacto com o outro.
O "mar"representa um limite mais vasto e, deste modo, pode
constituir um elo de ligação frágil entre o sujeito e o outro. A imagem
Rorschach é utilizada como um objecto de suporte, adquirindo a função de um
objecto transitivo. O movimento implícito do mar (pela presença da tendência
kob) pode representar a ameaça que a relação constitui.
Por fim, ocorre um movimento regrediente, na medida em que a sensibilidade ao
branco dá conta do sentimento de incompletude (rã sem estômago). O branco é
claramente representado como a ausência, o que nos remete para o conceito de
angústia branca de Green, na medida em que o que se encontra no lugar do
objecto é o vazio. Na linguagem de Ogden, esta situação evidencia a
impossibilidade do sujeito manter um processo dialéctico entre o dentro e o
fora, devido à invasão do mundo fantasmático do sujeito e, por conseguinte, dá
conta da inexistência de um espaço potencial.
Na abordagem do cartão VIII, os dois animais não são colocados em relação
("... uma fera, um animal selvagem de cada lado..."). A
"fera"pode constituir um sinal de perigo, revelando a ameaça
destrutiva que a relação representa. A restrição a uma parte da mancha
constitui uma defesa contra a relação que é sentida como perigosa e destrutiva.
No inquérito, Joana procura restabelecer o contacto com o outro, mas esta
tentativa falha ("... dois animais, duas feras, eles estão a querer
subir, mas estão com algumreceio"). A impossibilidade de relação é
evidenciada pela busca de neutralidade; as duas feras procuram estabelecer o
contacto uma com a outra, mas estão "paralisadas". Esta
"paralisia" põe em evidência a vivência ameaçadora e destrutiva do
contacto ("Não sei se é o receio de subir ou de se magoarem"). A
impossibilidade de relação dá conta da inexistência de um espaço
intersubjectivo - o espaço potencial - que permita a comunicação
entre o dentro e o fora. Na acepção de Ogden, esta situação traduz o fracasso
do sujeito em manter um processo dialéctico entre a realidade e a fantasia. Num
primeiro contacto com a mancha, a dialéctica cai na direcção da realidade,
impedindo a invasão do mundo fantasmático. Num segundo momento, a dialéctica
cai na direcção da fantasia, remetendo para um mundo imaginário ameaçador e
perigoso.
A focalização de Joana no contorno das cores ("... uma blusa, uns
calções") indica que esta procura refugiar-se na realidade perceptiva do
cartão, de forma a impedir a emergência do mundo fantasmático. O vestuário pode
representar uma procura de apoio. Este conteúdo pouco contentor constitui uma
segunda pele. A utilização do Outro como uma segunda pele mental dá conta da
ausência de um espaço potencial próprio. Contudo, a dimensão protectora
associada ao vestuário revela que a imagem Rorschach toma o valor de um objecto
transitivo.
Por fim, a atribuição de movimento aos dois animais referidos anteriormente dá
conta da relação destrutiva e sádica ("... assim continuo a ver os
animais à mesma, os dois. Dá-me a sensação que eles estão a pisar alguma coisa
que custa a ferir..."). A emergência da fantasia revela que a relação é
vivida como algo que destrói.
Neste cartão é posto em evidência um ciclo vicioso, em que, perante a
impossibilidade da relação, Joana procura restabelecer o contacto. No entanto,
este falha sempre, devido ao carácter destrutivo da relação. Não é possível
estabelecer um compromisso entre o real e o imaginário e, por conseguinte,
Joana não se pode situar na área transitiva.
A sensibilidade ao branco remete, de acordo com Chabert (1997/1998), para a
dialéctica relacional primária. Deste modo, a interpretação do branco
("... uma criatura escondida por trás de um quadro"), no cartão IX,
remete para as falhas no holding. A atribuição de movimento à imagem
("... criatura com os olhinhos a espreitar..."), no inquérito, dá
conta da relação com uma imagomaterna persecutória. Os "olhos que
espreitam" pode dar conta da falta de diferenciação entre o
"Eu" e o "não-Eu". A cinestesia associada a um conteúdo
irreal e persecutório evidencia a invasão do mundo fantasmático, revelando que
não é possível a expressão do imaginário sem que seja posta em causa a
adaptação ao real. Na linguagem de Ogden, a dialéctica entre a realidade e a
fantasia cai na direcção da fantasia, que se transforma na única coisa real e
ameaçadora para o sujeito. A dificuldade em discriminar real e imaginário,
traduz a incapacidade do sujeito aceder à área transitiva. Apesar de
representar uma dinâmica regressiva, o movimento de "pôr em quadro"
("... nesta pintura vejo uma criatura com uns olhos escondida por
trás...") constitui um movimento progrediente, na medida em que permite
manter uma certa distância em relação ao objecto; a criatura torna-se menos
ameaçadora ao estar inserida numa pintura. A cor ("uma pintura")
permite estabelecer um compromisso mínimo entre o real e o imaginário, ou, na
acepção de Ogden,o "estado de dois" (two-ness), que dá conta da
possibilidade de uma comunicação ténue entre o sujeito e o objecto.
O preenchimento do branco ("... do lago sai uma fonte
luminosa..."), no cartão invertido, dá conta da tentativa para colmatar
as carências narcísicas, através de uma dinâmica regressiva, pela referência a
um tema de água. De acordo com Chabert (1997/1998), Traubenberg considera o
cartão IX como o "cartão uterino". Neste sentido, a imagem pode
remeter para o tema do nascimento, em que a "fonte luminosa" poderá
representar a fonte de vida e o "lago" o útero materno. A imagem
"calorosa" do útero materno dada, quer pela atribuição de movimento
ao lago, quer pela sensibilidade à cor, pode constituir uma imagem de suporte
que permite "camuflar" a falha narcísica. A imagem Rorschach é
investida como se fosse um objecto transitivo, ao adquirir a sua função de
suporte. É este apoio que permite uma comunicação frágil entre o dentro e o
fora, entre o real e o imaginário.
A última resposta põe em evidência a fragilidade identitária e narcísica de
Joana, quer pela referência a uma imagem cujos contornos são pouco definidos
("... nuvens escuras..."), quer pelo preenchimento do branco
("... parece(...) um tornado..."). O "tornado" pode dar
conta de uma relação ameaçadora e destrutiva. Apesar do perigo que a relação
representa, a capacidade de manter o "tornado" à distância
("... parece que ele é um tornado á distância") indica a utilização
do esbatimento de difusão como um suporte que possibilita a manutenção de uma
certa distância, espacial e temporal, entre o sujeito e o objecto. Na acepção
de Ogden, o "estado de dois" (two-ness) dá conta da possibilidade
de comunicação precária entre o sujeito e o objecto.
Tendo em conta que o cartão Xé o "cartão da transferência", o
elevado número de associações dispersas (dez respostas em D) pode ser um
indicador da desorganização do sujeito face à situação de separação. A
referência ao "esqueleto" revela que Joana se vê como um ser
"sem pele" ("... uma espécie de esqueleto(...) Parece que lhe
foi retirado tudo..."), evidenciando o sentimento de perda face à
separação. Tal como é defendido por Amaral Dias (2004), o sujeito utiliza o
objecto como uma segunda pele mental e, por conseguinte, a perda do objecto é
vivida como a perda de si próprio. A imagem desvitalizada e destruída
("... uma árvore seca, queimada"), que marca o fim da relação, dá
conta, através da sensibilidade ao cinzento, de um sentimento de angústia
associado à separação. A impossibilidade do sujeito se ver como um todo inteiro
e separado do outro revela a inexistência de um espaço intersubjectivo entre o
interno e o externo.
Ao longo deste cartão verificamos, essencialmente, a alternância entre
respostas de má qualidade formal, que dão conta da tentativa falhada do sujeito
em adaptar-se à realidade (e.g., "... dois ratos...") e respostas
cuja sensibilidade cromática e cinestésica despertam fantasmas ameaçadores e
destrutivos (e.g., "... vampiro(...) Parece que atacou alguém e ficou com
as asas ensanguentadas"), o que evidencia a impossibilidade de um
compromisso entre o real e o imaginário. Na acepção de Ogden, a dialéctica
entre a realidade e a fantasia cai sempre na direcção da fantasia, sendo o
sujeito invadido pelo seu mundo fantasmático. Joana não consegue utilizar
estratégias arcaicas para se defender do impacto fantasmático.
Análise dos traços salientes do psicograma
A análise dos modos de apreensão dá conta de um mundo interno pouco delimitado
e coeso. A impossibilidade do sujeito estabelecer um compromisso entre o
interno e o externo, o real e o imaginário, não lhe permite aceder à área
transitiva. O sujeito não pode construir "novos objectos" a partir
de novas relações entre o dentro e o fora.
A análise dos determinantes evidencia - quer pela baixa percentagem de F,
quer pela intensa expressão cinestésica do protocolo -, a dificuldade de
Joana em apreender a realidade externa. Tendo em conta a intensidade pulsional
e fantasmática associada às respostas cinestésicas, K e k podem representar F
dinâmicos e projectivos, o que reflecte esta dificuldade do sujeito em adaptar-
se à realidade. A falta de diferenciação entre o sujeito e o objecto revela a
impossibilidade de se estabelecer uma relação intersubjectiva entre o interno e
o externo que permita a existência de um espaço potencial próprio, onde o
sujeito possa construir as suas próprias experiências.
A análise dos conteúdos revela a enorme dificuldade de Joana em aceder à
representação de si num sistema de relações, devido ao carácter destrutivo e
invasivo da relação. A dificuldade em se reconstruir no contacto com a mancha e
com o outro, indica que não é capaz de reconhecer a sua subjectividade e, por
conseguinte, não se pode situar na área intermediária entre o interno e o
externo.
As observações de simetria também dão conta da dificuldade do sujeito se
reconhecer no contacto com o Outro. A sensibilidade à simetria do cartão indica
que o sujeito procura fazer a separação entre ele e o Outro. No entanto, esta
revela-se sempre inoperante, quer pelo desdobramento do mesmo em relação ao
eixo de simetria, quer pelo carácter destrutivo e invasivo da relação.
Relativamente ao T.R.I., identificamos um predomínio do pólo C sobre o pólo K
(extroversivo misto). Atendendo à intensidade pulsional e fantasmática
associada às respostas cinestésicas, a atribuição de movimento às figuras
humanas não constitui um processo criativo e evoluído, mas sim a ausência de
uma relação dinâmica entre interno e externo. A predominância do pólo C (7,5C)
revela também uma falta de controlo afectivo, uma invasão dos afectos. A falta
de equilíbrio entre os pólos K e C dá conta da impossibilidade do sujeito
estabelecer uma relação intersubjectiva entre o interno e o externo.
A fórmula complementar atesta um predomínio das cinestesias menores sobre o
esbatimento (6k>3,5E), variando no sentido contrário ao T.R.I. Atendendo a que
k>K, k dá conta de uma dinâmica regressiva, em que perante a dificuldade em
suportar o conflito, Joana desloca os movimentos pulsionais destrutivos para
conteúdos não humanos ou partes humanas, o que traduz a impossibilidade de
contacto com o outro e, por conseguinte, a impossibilidade de aceder à área
transitiva. Embora à custa de estratégias pouco evoluídas, o esbatimento
permite um contacto, precário, com o outro. O esbatimento dá conta de uma
procura de apoio, em que a imagem Rorschach é investida como se fosse um
objecto transitivo, adquirindo a sua função.
A percentagem de RC situa-se acima do valor estimado. A extrema sensibilidade à
cor pastel evidencia uma invasão dos afectos. A impossibilidade de manter uma
dialéctica entre a realidade e os afectos indica que Joana não é capaz de
aceder à área transitiva.
CONCLUSÕES
Numa perspectiva psicodinâmica, procurámos compreender as características dos
fenómenos transitivos e do espaço potencial no protocolo Rorschach de um
sujeito borderline.
Da análise do protocolo pudemos constatar a impossibilidade do sujeito
estabelecer uma relação intersubjectiva entre o interior e o exterior e, deste
modo, aceder à área transitiva. Apesar desta realidade, o sujeito é capaz de
mobilizar estratégias de forma a estabelecer um contacto mínimo com o outro. A
imagem Rorschach é transformada num objecto real, sendo-lhe atribuído a função
(de suporte) e as qualidades (reconfortantes, calmantes) de um objecto
transitivo. Este funcionamento revela a falta de internalização das
propriedades calmantes e securizantes do objecto transitivo no decurso do
desenvolvimento. O movimento de procurar estabelecer uma comunicação ténue com
o objecto, dá conta de uma aproximação ao espaço potencial - espaço pré-
potencial.
A leitura proposta nos procedimentos dos conceitos de fenómenos transitivos e
de espaço potencial, revelou-se extremamente útil no estudo destes conceitos no
protocolo Rorschach da Joana. Nos procedimentos, procurámos dotar os elementos
Rorschach de valores interpretativos que possibilitassem a leitura dos
conceitos em estudo, o que serviu de base à compreensão destes conceitos na
análise do protocolo.
Na situação Rorschach, Joana não é capaz de estabelecer um compromisso entre a
percepção (a realidade) e a projecção (o imaginário): ou (1) apega-se à
realidade concreta e objectiva, procurando defender-se do contacto com o Outro;
ou (2) deixa-se invadir pelo seu mundo fantasmático, reflectindo o carácter
destrutivo e invasivo da relação. Na acepção de Ogden, esta situação dá conta
do fracasso do sujeito em manter uma dialéctica psicológica entre a realidade e
a fantasia, o que traduz uma incapacidade de simbolização. No primeiro registo
de funcionamento, a realidade é usada como defesa contra a fantasia, retirando
toda a vitalidade da fantasia; no segundo registo, a realidade é substituída
pela fantasia, que se transforma numa realidade tão tangível e perigosa como a
realidade externa, da qual não se pode diferenciar.
Joana não é capaz de, no contacto com um estímulo desconhecido, construir e
reconstruir novas relações entre o dentro e o fora. A impossibilidade de uma
relação dinâmica entre o interno e o externo impedemna de se situar na área
transitiva.
O não reconhecimento da própria subjectividade reflecte-se no Rorschach por uma
incapacidade de Joana construir imagens com o cunho da sua originalidade e
unicidade, sem que seja posta em causa a sua adaptação ao real. De acordo com
as ideias de Winnicott, esta situação revela a ausência de um espaço potencial
próprio, onde o sujeito possa construir as suas próprias experiências.
Apesar da ausência de um espaço intersubjectivo entre o real e o imaginário, o
dentro e o fora, Joana é capaz de mobilizar estratégias, de forma a estabelecer
um contacto com o Outro. A procura de apoio, de amortecimento de vivências mais
angustiantes, ao longo do protocolo, indica que a imagem Rorschach criada pelo
sujeito é transformada num objecto de suporte, sendo investida como se fosse um
objecto transitivo na acepção de Winnicott. A fragilidade e precariedade do
suporte (e.g., "baloiço, "rocha"), que remete para a carência
do holding, permite apenas uma comunicação ténue entre o sujeito e o outro. Na
acepção de Amaral de Dias (2004), o objecto é utilizado como uma segunda pele
(mental) e neste sentido, fala na existência de uma pele ou permeabilidade do
pensamento. Esta dá conta, por um lado, da falta de um limite claro entre o
sujeito e o objecto mas, por outro, permite manter uma distância mínima em
relação ao objecto. Podemos acrescentar a tendência de Joana para transformar a
imagem Rorschach num objecto reconfortante, de forma a "mascarar" o
sentimento de vazio, sentimento associado à angústia branca de Green (e.g., IX
- "... do lago sai uma fonte luminosa").
As estratégias utilizadas por Joana, de forma a estabelecer uma comunicação
ténue com o objecto, dão conta de uma aproximação ao espaço potencial. Neste
sentido, falamos na existência de um espaço pré-potencial.
Os comentários de Joana, ao longo da prova, atestam uma "perda de
distância" face ao objecto, sendo a imagem Rorschach incorporada na
experiência actual do sujeito (e.g., V - "Isto é só criaturas
estranhas..."). De acordo com Winnicott, a dificuldade de Joana em
distinguir o símbolo do objecto simbolizado põe em evidência a nãoaceitação do
paradoxo winnicottiano: o objecto não estava lá para ser criado pelo sujeito,
mas antes, é fruto da própria criação do sujeito.