Dilemas da Educação Brasileira em Tempos de Globalização Neoliberal: entre o
Público e o Privado
Peroni
, Vera; Bazzo, Vera L. & Pegoraro, Ludimar (2006). Dilemas da Educação
Brasileira em Tempos de Globalização Neoliberal: entre o Público e o Privado.
Porto Alegre: Editora da UFRGS
Com origem no Núcleo de Estudos de Política e Gestão da Educação, este livro
tem o triplo mérito de proporcionar: 1) a abordagem de políticas e programas
específicos que abrangem iniciativas actuais desde a educação infantil ao
ensino universitário; 2) a articulação destas iniciativas com a transformação
das instituições e do papel do estado e 3) a análise de estudos de caso
centrada nas seguintes questões: (re)constituição do terceiro sectore do
público"não estatal"; democraticidade da gestão educacional e
transformação do que constitui aprender/ensinar. O livro constitui um exercício
inovador. Mobiliza uma vasta bibliografia produzida no Brasil mas também em
Portugal e no resto da região Europeia, incluindo várias áreas científicas que
aqui são recrutadas pelos vários autores para dar sentido aos processos que
propõem explicar. O livro decorre de um exercício de reflexão sobre a
experiência de um curso de pós-graduação na Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS) que foi posteriormente articulado com o trabalho de
investigadores convidados. Beneficia ainda da continuidade com, por um lado, a
pesquisa recente de Vera Peroni e colegas da UFRGS — centrada na implementação
e impacto do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de
Valorização do Magistério em Porto Alegre, Rio Grande do Sul — e, por outro, a
análise do ‘público e do privado na educação’ que organizou com Theresa Adrião
(2005)1. O interesse deste livro reside na relevância do trabalho que aí se
apresenta não só para a compreensão de questões actuais da política educativa
em geral, mas também para o entendimento da forma como as transformações
decorrentes de alterações nas estruturas de financiamento e de decisão se
associam à redefinição do papel e âmbito de acção do estado, da intervenção das
instâncias não estatais na educação, das estruturas locais de decisão e do que
se entende por autonomia, descentralizaçãoe participação. A organização dos
capítulos regista a preocupação com a necessidade de enquadrar os estudos de
caso e as abordagens de instituições e de programas específicos na discussão e
análise das actuais respostas — hegemónicas(p. 11) — ao que se entende por
‘crise’ do estado. Mas, mais do que proceder a esse enquadramento, este
trabalho explica a forma como a transformação de determinadas instituições e a
implementação de dados programas decorrem de, e constituem, tais respostas. O
diálogo que se estabelece entre a reconstituição das funções e instituições do
estado e a constituição do público"não estatal" e do terceiro
sectorpercorre todos os capítulos que fornecem, por isso mesmo uma ilustração
bem articulada da forma como tais respostas se manifestam nos vários estudos de
caso que foram escolhidos precisamente para as ilustrar. Para além de tudo
isto, o trabalho tem ainda o mérito de analisar questões relativas à educação
sem excluir os personagens centrais (professores e alunos) dessa análise — não
só enquanto objecto de análise mas também enquanto autores do processo de
reflexão a que se propõem. Assim, o resultado deste trabalho revela um fio
condutor onde a problemática relativa à produção de um dado tipo de
conhecimento sobre a noção de ‘crise do estado’ — que os autores defendem não
ser possível entender sem compreender as relações e os processos económicos que
lhe estão subjacentes — e sobre as respostas que lhe deverão ser dadas, inicia
o percurso colectivo que subjaz a este livro onde se pode vislumbrar logo no
início a discussão das questões fundamentais relativas ao que Vera Lúcia Bazzo
designa de identidade profissional dos professores (p. 39). Daí, partem para a
explicação das questões relacionadas com a ‘distribuição de responsabilidades
entre as esferas de governo’ (p. 49) para depois, com recurso ao estudo das
transformações relacionadas com o financiamento analisar matérias associadas à
questão da descentralização no sector educacional. Um dos aspectos
interessantes da análise de Nalú Farenzena, é o diálogo estabelecido entre
descentralização no sector da educação e descentralização na área das políticas
sociais. Discussão que é retomada por Lúcia Camini quando recorre, de forma
efectiva ao caso de Rio Grande do Sul (1999 - 2002) para ilustrar a
específicidade das reformas nacionais com ênfase no ‘Programa de Avaliação da
Produtividade Docente’ (p. 72-76) e nas ‘Parcerias, Colaborações e
Municipalização do Ensino’ (p. 76-79). Camini aborda, ainda neste contexto e
entre outras iniciativas o orçamento participativo "como método inovador
de gestão pública" (p 80) e os seus limites à participação popular. A
partir da análise do Conselho Municipal de Educação enquanto espaço de
participação, Lúcio Lord (p. 109) analisa os limites e dificuldades colocados à
gestão democrática a partir da "constituição da democracia no Brasil em
função de um histórico de desigualdades económicas, relações sociais
hierárquicas e concentração de poder" (p. 114) para questionar "as
possibilidades de existência e as formas de utilização de espaços destinados à
participação social no atual contexto de precarização das condições de vida da
maioria da população" (idem). Poder-se-á dizer que aqui se localiza o meio
deste percurso colectivo já que os cinco capítulos restantes nos conduzem às
discussões relativas ao ‘público não-estatal’, ao ‘terceiro sector’ e aos
estudos de casos com eles relacionados. Maria Otilia Kroeff Susin analisa
"a parceria público-privado constituída entre a Secretaria Municipal de
Educação de Porto Alegre e entidades da sociedade civil... ancorada na
necessidade que o poder público tem de aproximar as acções das duas
esferas...na construção participativa de políticas públicas com a formação de
esferas públicas de decisão, bem como discutindo e construindo alternativas
frente à carência de recursos para a ampliação do atendimento à educação
infantil... [através da] distribuição de recursos e serviços junto à sociedade
civil, estimulando a participação comunitária" (p. 122). Kroeff Susin
recorre ao estudo do Convênio com as Creches Comunitárias para reflectir sobre
os limites e as contradições relacionados com a participação, o "público
não-estatal" (p. 131) e para explicar as consequências de tal Convênio ao
mesmo tempo que propõe pistas para a reflexão sobre políticas e dilemas que
emergem de forma semelhante — mesmo que delimitados por contextos históricos,
políticos e sociais distintos — em outros países. Este livro revela, de forma
convincente o poder de transformação e os limites associados às questões
financeiras e de financiamento — quase sempre invocadas na análise de política
educativa mas que nesta publicação ocupam um lugar central. O livro promete
inspirar a discussão sobre os dilemas nele contidos – objecto fundamental do
trabalho académico e de investigação — e contém material para estimular
investigadores e alunos. As questões aqui abordadas permitem reflectir sobre
dilemas, contradições e até paradoxos comuns àqueles enfrentados pelos sistemas
e agentes europeus e promete sugerir pistas de investigação. Este trabalho
distingue-se pelo facto de a discussão destes estudos de caso permitirem a
reflexão sobre a educação na região Europeia, de uma forma integrada ao abordar
questões relativas aos diversos níveis de ensino. A reflexão sobre e a
compreensão do que deve/não deveser prestado//financiado/avaliado pelas
instituições do estado, por instituições de natureza comercial e caritativa
constitui uma das tarefas mais fundamentais com que se depara actualmente a
investigação a nível mundial. A transformação dos serviços de natureza social e
as consequências de eles serem/não serem prestados/financiados/avaliados pelas
instituições do estado, por instituições de natureza comercial ou caritativa
exige análises com potencial para fornecer sentido à transformação em curso.
Este livro propõe exactamente isso. Na sua discussão do Programa Dinheiro
Direto na Escola(PDDE), Regina Tereza Cestari de Oliveira propõe uma análise
muito interessante sobre a forma como ‘o conceito de público não estatal’ (p.
141) aí se materializa. Recorrendo à contextualização histórica, ela usa o
Plano Director da Reforma do Estado apresentado pelo governo brasileiro em 1995
para lembrar a importância da distinção entre ‘privatização’, ‘terciarização’ e
‘publicização’ e ao fazê-lo apresenta uma proposta de análise de elevada
relevância para o estudo de processos semelhantes em curso na região Europeia.
Ao distinguir entre ‘transferência de serviços para o sector privado’ —
‘terciarização’ — e constituição de uma organização de direito privado, mas
pública não estatal — ‘publicização’ — (p. 147), Cestari de Oliveira alarga as
perspectivas de análise do processo de transformação da prestação,
financiamento e regulação da educação que, enquanto marcado por processos de
privatização — ‘transformação de uma empresa estatal em privada’ (idem) — não
se esgota nela. A discussão que propõe sobre as Organizações Sociais
Brasileiras – entidades públicas não-estatais "de direito privado, sem
fins lucrativos, que tenham autorização específica do poder lergislativo para
celebrar contrato de gestão com o poder executivo e assim ter direito à dotação
orçamentária" — (p. 148) introduz a questão de como se materializa o
‘público não estatal’ ‘em propostas para a educação’ (p. 151). Através do
recurso ao estudo do caso das Entidades Executoras, a resposta a essa questão
conduz à consideração do que, por um lado constituem as formas emergentes de
sociedade civil e, por outro as implicações para a constituição da cidadania,
resposabilidade e justiça social associadas a essas formas (p. 153). Utilizando
ainda o estudo do mesmo caso — PDDE — mas desta vez centrada na sua
implementação em S. Paulo, Theresa Adrião e colegas propõem a análise dos
‘sentidos que o Estado tem atribuído à idea de gestão democrática da escola’
(p. 159) através da reflexão sobre as fontes de recursos e a orientação
jurídica da administração pública. Ao posicionar-se na ‘articulação entre
participação, autonomia e descentralização’(p. 160), a questão da transferência
de recursos para as escolas (p. 167) dá sentido não só a programas que são, por
tendência, analisados isoladamente mas também à articulação entre as questões
relacionadas com recursos ou orientação jurídica e as questões relativas ao que
constitui ‘governo’, ‘administração’ (p. 169) e ‘relações de poder no interior
das instituições’ (p. 170). O estudo do caso da constituição de Unidades
Executoras em São Paulo permite explicar como "no caso da rede estadual
paulista, os mecanismos de repasse [de recursos às unidades executoras nas
escolas] não favorecem a democratização da gestão escolar... não contribuem
para a construção da autonomia necessária à unidade escolar na organização do
seu projecto pedagógico e tampouco representam significativa autonomia política
ou financeira" (p. 177). Através da análise do "ensino superior em
Santa Catarina por meio do sistema fundacional" (p.200), Ludimar Pegoraro
demonstra que "a redefinição do papel do estado e o surgimento do terceiro
sector" (p. 181) "como é o caso das fundações educacionais de Santa
Catarina, em contraposição ao Estado e ao mercado, gera um discurso
homogeneizado, com uma forte tendência a eliminar os conflitos inerentes às
dinâmicas" (p. 213) sociais. Ainda na continuidade da análise do ensino
superior inserido no ‘terceiro setor’ (p. 217) mas desta vez centrado na
reflexão sobre o relacionamento professor/aluno, Rosani Sgari Szilagyi
apresenta, de forma bem criativa uma série de questões: "o que muda numa
pessoa quando mudam sutil e eficazmente as funções sociais reguladoras? Quais
padrões de comportamento, pensamento e sentimento se instauram no Ensino
Superior — especialmente no relacionamento professor e aluno?" (p. 218).
Ao enunciar que a "desarticulação do social requer a destituição dos
sujeitos em sua essência, na sua subjectividade" (p. 220) e que sobre essa
ótica "não formamos uma comunidade acadêmica-científica; simplesmente
integramos a multidão universitária" (idem), o seu capítulo fertilizará
concerteza a discussão, ao mesmo tempo que sugere importantes pistas de
reflexão. Ao identificar o "reducionismo psicológico incomensurável"
(p. 227), Szilagyi produz uma narrativa onde se torna evidente, de uma forma
bastante eficaz, a explicação sobre o que está a acontecer à relação professor/
aluno nas condições específicas que enuncia e sobre a forma como as questões
‘de estado’ se articulam com ‘comportamento, hábitos e atitudes’. Propondo que
o "empenho na desarticulação do social traz a reboque um novo modo de
regulamentação social e política que se materializa não somente no regime de
acumulação como no comportamento, hábitos e atitudes..." (p. 221) e que o
"relacionamento entre professor e aluno não é um problema de pedagogia, ou
um problema de método de ensino" (p. 227) Szilagyi pergunta a "que
concessão é forçada a professora/professor e aluna/aluno para a sua manutenção
no mercado de trabalho" (idem). O seu capítulo decorre do manuseamento das
teorias educacional, política e filosófica, sociológica e psicanalítica para
apresentar uma discussão do ‘novo contrato social’ (p. 230) emergente no ensino
superior organisado pelo terceiro sector que "toma para si a
responsabilidade de representar a sociedade e que destitui todo e qualquer
cidadão desta representação..." (p.230). Tal discussão promete inspirar
reflexões noutros contextos e noutros lugares. Este é por isso, um livro que se
recomenda a estudantes, investigadores e professores.
Nota
1 Peroni, V. & Adrião, T., (Orgs.) (2005). O Público e o Privado na
Educação: Interfaces entre Estado e Sociedade. São Paulo: Editora Xamã
Clementina Marques Cardoso
Universidade de Bristol, Inglaterra
Centro de Investigação em Educação
Instituto de Educação
Universidade do Minho - Campus de Gualtar
4710 Braga - Portugal
rpe@iep.uminho.pt