As multiracionalidades no contexto da organização escolar
INTRODUÇÃO
Os estudos contemporâneos sobre a administração e organização da escola têm
colocado a problemática da decisão num lugar de destaque pelo facto de ser
considerada um elemento essencial e uma actividade nuclear à qual estão
subordinadas todas as demais actividades que se realizam na escola. Quanto mais
a descentralização educativa, a autonomia da escola e a participação
democrática são discutidas e reivindicadas, mais a problemática da decisão
ganha protagonismo, porque decidir é o seu corolário, é o que dá visibilidade
prática a tais noções. Por ser considerado uma prática que ajuda à construção
de homens e mulheres intervenientes, capazes de fazerem parte activa do mundo a
que pertencem, ao invés de seus meros espectadores, o exercício da decisão
constitui-se como um direito do qual ninguém deve ser privado. Uma
reivindicação de sempre que viria a ser formalizada, em prol de uma escola
democrática, pela política educativa depois de 25 de Abril de 1974 e que terá o
seu momento alto, em termos discursivos, com o Decreto-Lei nº 115-/98, que o
Decreto-Lei 75/2008 viria reforçar. Porém, a máquina burocrática tem sido um
entrave a esse propósito em grau semelhante aos interesses da classe política
que deixa de estar susceptível à democratização do poder assim que o conquista,
porque isso significará sempre uma limitação do seu poder 1. A prática tem
demonstrado o quão difícil é realizar uma reforma de âmbito de governação
democrática 2 pelo não envolvimento da escola na definição das suas próprias
políticas e conservando-se uma administração centralizada e autocrática. O
presente parece reafirmar a dificuldade em substituir estruturas
administrativas ao mesmo tempo que confirma a quase natural tendência para
recuperar padrões burocráticos supostamente em vias de desaparecerem. Por isso,
a luta que se trava na escola é entre o constrangimento e a autonomia, entre a
domesticação que as decisões impostas autoritariamente veiculam, apesar da
neutralidade de que se arrogam, e a emancipação que as decisões partilhadas,
fundadas na prática da liberdade e longe da neutralidade, possibilitam, mas
que, contrariamente às primeiras, implicam mais tempo, envolvem, genericamente,
mais recursos, mais tensões, mais discordâncias e menos soluções óptimas,
trazendo, em simultâneo, mais responsabilidade, tanto social como política
(Freire, 1967: 88), verdadeiro exercício de cidadania e única forma de nos
constituirmos enquanto sujeitos democráticos.
A RACIONALIDADE DAS DECISÕES BUROCRÁTICAS
A actual escola pública portuguesa, ao nível do ensino secundário, não pode ser
estudada à margem de um contexto de centralização, seja de âmbito político ou
administrativo, que legitima o sistema educativo único e a sua maneira unívoca
de administração, criando uma homogeneidade pouco favorável a princípios
autonómicos, e à diversidade que compreende, que a possam corromper, ao mesmo
tempo que se "alheia" das dificuldades que o seu gigantismo origina.
Parece que o importante é mesmo o controlo político-administrativo, atitude que
reflecte a indiferença a que é votada a autonomia das escolas portuguesas,
legalmente instituída desde 3 de Fevereiro de 1989 a partir do Decreto-Lei nº
43/89, e que a imagem da burocracia é capaz de difundir.
Estarmos seguros de que a burocracia, enquanto conceito unitário, empenhada na
racionalização, não conquistou os seus intentos no que respeita à administração
pública portuguesa3, não invalida que, enquanto modelo de dimensões, nos
possibilite reconhecer aspectos importantes, dos quais salientamos a já
supracitada centralização e a instrumentalização que as suas decisões
compreendem, o controlo que as normas de uso universal e uniforme veiculam e de
que pode ser exemplo o modo como se resolve o problema do abandono escolar,
insinuando-se que tem as mesmas causas e os mesmas soluções em todas as escolas
ao aplicar-se uma legislação em vigor com "penalizações previstas"
para o efeito. Do mesmo modo para a indisciplina, que, regulamentada, acaba por
transferir para uma "instância complementar" a resolução da violência
insensível a questões do foro psicológico, social ou cultural, transformando a
indisciplina num acto reflexo. Uma lógica que é capaz de tornar o ensino em
"um sistema mais rígido de controlo", de acordo com as palavras
proferidas em entrevista por um anterior ministro da educação. Um controlo
incluso na centralização e na produção de normativos que têm a pretensão de
tudo contemplar, pois o burocrata da educação acredita estar efectivamente
habilitado a prever todos os gestos, todos os movimentos e intervenções do
professor, numa tentativa de racionalização óptima aspecto revelador de uma
administração altamente burocrática.
Mais do que assumir este inegável controlo burocrático centralizado, importa
perceber o alcance e os objectivos que subjazem a um tipo de orientação que se
denuncia por reproduzir uma orientação dominante, usando da uniformidade e da
universalidade para efectivar a sua imposição. Neste ponto, não desconhecemos a
presença de uma ordem previsível e incontestada que encontra o seu garante em
decisões tomadas com base em julgamentos eficientíssimos que os
"especialistas" realizam (Gouldner, 1978: 61), mas que se tem
denunciado como um verdadeiro sofisma, pois fundamenta-se na crença de que se
podem prever as actividades dos actores educativos em função de normas gerais e
abstractas, inspiradas por um interesse geral, vazio de toda a substância. O
regime de horário proposto pelo despacho 17387/2005, de 12 de Agosto, prevê o
tempo que deve ser atribuído a cada actividade lectiva e não lectiva e, nesta,
o tempo correspondente ao trabalho individual, ao trabalho de estabelecimento
ou o tempo a despender com cada reunião. Reconhecer que as orientações
normativas cumprem um papel integrador da acção organizacional enquanto
estrutura comportamental, apoiadas na previsibilidade e calculabilidade da
acção, não é para nós um problema; esse reside, em termos de análise
organizacional, em saber em que medida essas mesmas orientações são
corporalizadas no plano da acção organizacional.
A AUTONOMIA RELATIVA: OUTRAS DECISÕES, OUTROS MODOS DE RACIONALIDADE
Não podemos deixar de admitir a dimensão burocrática da escola e, nessa linha,
é evidente que desconsiderarmos que existem decisões que transportam uma
racionalidade a priori, que causam os efeitos desejados e esperados, que são
cumpridas e interpretadas do mesmo modo nas escolas (entenda-se pelos elementos
que a constituem), seria incorrermos em erro, o que não invalida que não seja
necessário relativizar o seu alcance. Não o fazer seria cair numa visão
demasiado simplista que só reclama de uma única racionalidade, tecnicista e
óptima, e que se imporia a todos os sujeitos. Apenas essa relativização
possibilita considerar outras decisões que resultam de interpretações
diferenciadas, que são exigidas por situações imprevistas e que são a evidência
empírica de uma organização dotada, a nível interno, de alguma autonomia, a
qual admite outros modos de racionalidade e que se fundam na ideia de que não
existe uma única solução para o mesmo problema e que essa solução não é a
melhor possível mas a mais satisfatória. Tal entendimento alicerça-se na
reflexão relativamente ao que se compreende por decisão eficaz, pois esta não
é, necessariamente, uma decisão irrepreensível, perfeita (se é que existem
efectivamente), mas a "melhor" decisão no interior de uma determinada
conjuntura o que pressupõe que para o mesmo caso possam existir várias
soluções e todas elas correctas, na medida em que todas produzem um resultado
favorável.
Todavia, se podemos afirmar que existem várias maneiras de sermos bem
sucedidos, tal não isenta o sujeito decisor de optar considerando a solução que
se apresenta como a mais vantajosa, de acordo com os objectivos perseguidos.
Este plano poderá não concretizar o modo de organização formal que a
administração central produz e, nesse caso, não o reproduz, levando-nos a
concluir pela ausência de uma atitude prevista e desejável, em termos de
resposta, dos actores educativos a algo que emana do exterior. Portanto,
diríamos que, em termos decisórios, se confrontam a organização projectada e a
organização vivida. Em termos analíticos, trata-se, no fundo, de confrontar
dois planos: um que considera o "plano das orientações para a acção
organizacional" e outro que considera o "plano da acção
organizacional" (Lima, 1998: 160).
Fomos percebendo que, na escola, se produzem muitas decisões nem sempre
conformes com o previsto e, nessa medida, não poderiam encaixar-se numa teoria
explicativa exclusivamente burocrática, pelo que abalavam o quadro de
orientação formal-legal, já que a organização escolar parecia funcionar, em
grande parte, à custa de tais decisões alicerçadas a outros tipos de
racionalidade. A acção dos actores educativos estava longe de poder ser, em
termos absolutos, conotada com a previsibilidade, a certeza e regularidade que
se esperaria na estruturação das decisões. Dávamos conta de que não era
possível eliminar as incertezas e os acasos dos comportamentos e que estes se
orientavam segundo formas de racionalidade diversas da prevista pelo modelo
teórico adoptado. A pretensa rigidez comportamental que a racionalidade formal
difundia era frequentemente abalada por outras racionalidades que se cumpriam
na criatividade e no espírito de iniciativa. As decisões, enquanto
"receitas" organizacionais, não eram as únicas a contribuir para o
funcionamento da escola; a presença de outras decisões, que o sistema
burocrático não era capaz de controlar, era também causa de estabilidade,
apesar de ter origem na instabilidade.
UM MODELO TEÓRICO INTEGRADOR DE FOCALIZAÇÕES DIVERSIFICADAS
Deixava de fazer sentido a ingénua visão de a escola estudada espelhar, à custa
dos seus comportamentos, uma realidade de conformidade burocrática, totalmente
reprodutora de um quadro de orientação formal-legal, reservado que estava um
comportamento passivo, conformista e congruente com as solicitações aos
actores. Desmoronava-se, assim, uma perspectiva da escola como organização
puramente burocrática devido ao elevado número de casos anómalos que se
realizavam à margem da burocracia centralizada do Ministério da Educação, que
produziam uma realidade paralela.
Neste novo contexto, que emergia, era evidente a construção de representações
subjectivas e a criação de sistemas de produção de sentido para justificar o
modo de agir, admitindo uma esfera de autonomia relativa ao nível da
organização. Aqui os actores educativos demonstram interesse pelas decisões e
reivindicam outros modos de tomar essas decisões, contrariando a mono-
racionalidade burocrática e dando espaço à expressão de racionalidades
divergentes, situação que nos fazia reflectir nas palavras de Friedberg quando
escrevia que:
( ) on ne puisse plus parler d'une décision rationnelle' sans s'interroger
aussitôt sur les conditions de cette rationalité. Une décision n'est
rationnelle que par rapport à une situation, à un état donné du système social
de l'organisation (1988: 85).
Só um modelo teórico de análise que nos conduza no sentido de aliar o enfoque
que compreende decisões e procedimentos formais como garante da preservação da
ordem pré-estabelecida (ou seja, a perspectiva burocrática) e um outro que
contemple uma outra ordem ao nível da acção organizacional, com outras decisões
e outras estruturas, propiciada por uma autonomia relativa que a organização
parece não conseguir eliminar e à qual a perspectiva da anarquia organizada não
é indiferente 4, nos podem fornecer uma visão integral da realidade
organizacional. O confronto destas duas perspectivas possibilita traçar uma
dinâmica de escola onde cabem modos distintos de racionalidade nos fenómenos
decisórios, propiciando uma análise que compreende as articulações e
desarticulações que se produzem entre a lógica da burocracia e a lógica da
anarquia organizada enquanto princípios que estruturam comportamentos e
processos organizacionais. Neste sentido, a dinâmica da escola resulta da
convergência de lógicas ligadas tanto à racionalidade burocrática como à
racionalidade da anarquia organizada, ou seja, a acção decisória tanto é
conforme às imposições formais como rompe com elas, assumindo-se, desta feita,
a presença de inconsistências e desconexões relativas nos modos de decisão,
ordem contrária à da burocracia.
Todavia, nenhum dos modelos tem carácter de exclusividade, na medida em que a
presença de um deles não significa a rejeição do outro, mas antes a sua
coexistência que, na acção organizacional, se realiza de modo
"conjuntivo" se os actores obedecem ao estabelecido e decidem em
conformidade com objectivos, estruturas e recursos, e de modo
"disjuntivo" (Lima, op. cit., p. 162) quando a conexão é posta em
causa e as decisões passam a incluir um outro modo de racionalidade. Fazer
opções unívocas num ou noutro sentido é ficarmos condicionados a uma única via
que não é favorável à heterogeneidade nem à complexidade do conjunto, é ignorar
e negar a realidade.
Com efeito, os regulamentos e procedimentos centralmente definidos permitem,
supostamente, melhorar o desempenho dos actores na execução das suas tarefas, o
que, em termos de racionalidade, supõe uma adequação dos meios aos fins
perseguidos na tentativa de garantir a máxima eficiência possível, e que o
modelo racional-legal institui. Esta racionalidade formal é a priori, rompe com
a espontaneidade na medida em que permite tornar previsíveis e controlados os
comportamentos dos actores, transformando-os em conformistas, em meros
cumpridores do estabelecido, ao mesmo tempo que garantem a convergência da
política adoptada e, nesse sentido, torna-se o seu instrumento de
concretização. Aos actores não é reconhecida qualquer margem de autonomia,
restando-lhes o respeito a essas decisões e responder pela sua execução, o que
o aspecto instrumental da mono-racionalidade configura 5.
Considerar unicamente as decisões formais, em termos de análise organizacional
da escola, afigura-se a um registo normativo mais congruente com considerações
da ordem do dever ser regulamentado pela administração central, em prejuízo
daquilo que os actores educativos possam julgar dever ser ou daquilo que é.
Se o intuito é privilegiar o plano da acção organizacional, a representação dos
actores, devemos ter em conta um outro tipo de decisões enformadas pela
anterior e por outras racionalidades, porém de mais difícil percepção, pois os
seus contornos são de âmbito não oficial, ou seja, não estão previstas
oficialmente pela organização mas são nela produzidas o que é revelador da
autonomia de que os actores educativos dispõem. São decisões clandestinas, ou,
utilizando a terminologia de Lima, diremos que são ocultas pelo facto de
exigirem um maior esforço de detecção por parte daqueles que não pertencem à
organização, pois as fontes documentais nem sempre as contemplam, de onde se
depreende o seu carácter reservado e encoberto. Podem expressar um tipo de
racionalidade decisória de cariz conjuntural e não generalizável a toda a
organização. Com efeito, manifestam-se em situações ocasionais, como resposta a
determinadas finalidades que a organização oficialmente não declara ou que são
adoptadas a título particular pelos actores organizacionais, numa clara
evidência de que no interior da organização se decide em função de interesses
comuns mas também discordantes e controversos. De resto, o seu acontecer
resulta das relações que os actores mantêm entre si enquanto prática dialógica
que é portadora de visões diversas, o que supõe que as decisões também possam
encerrar uma racionalidade de satisfação.
Ainda a distinguir estas decisões das anteriormente consideradas, assinala-se o
diferente grau de estruturação que, neste caso, tem relação com o processo
que as originou. Se a racionalidade a prioridas decisões formais encerra um
processo cujo esquema é altamente linear, em que todos os momentos são
sequenciais e não admitem qualquer desvio o que evidencia uma linearidade
simples , já a racionalidade de satisfação das decisões obedece a um esquema
que pode ser linear ou semi-linear, na medida em que são decisões que
pressupõem interacção com o que as rodeia 6 e se pautam por requisitos que
podem ser opostos aos determinados formalmente.
DAS DECISÕES IMPOSTAS ÀS DECISÕES CONSTRUÍDAS
Ao transitarmos para o domínio daquilo que é, e que é manifesto pelos
comportamentos decisórios efectivos dos actores educativos de resto, aspecto
sem o qual a análise organizacional não ficaria completa , transitamos
igualmente para decisões que podem encerrar uma racionalidade de tipo a
posteriori que rompe com o esquema mecanicista e simplista da linearidade, em
que a relação causa e efeito só se descortina após a consumação da decisão,
motivo pelo qual é retrospectiva, e supõe modos alternativos de atingir com
sucesso os objectivos.
É neste enquadramento que se desenham outros tipos de racionalidade em oposição
àquela que é imposta pela organização, pois também é aqui que se reconhece a
possibilidade de existir uma relativa margem de autonomia que proporciona aos
autores uma actuação decisória conforme às suas necessidades, expectativas e
reflexões, convertendo a organização num espaço que não impede a concretização
dos objectivos dos actores educativos, e deste modo contrariando e denunciando
as contradições inerentes a uma racionalidade que universaliza e que supõe uma
optimização.
Das decisões que a organização impõe (formalmente) aos actores, transitamos
para as decisões que os actores produzem e que impõem à organização. A
existência destas últimas deve-se muito mais ao interesse que os actores
demonstram em encontrar uma solução concreta, subordinada a princípios
contrários aos preconizados pela racionalidade formal, ou simplesmente
encontrar uma solução que não tenha sido prevista, do que à existência de
problemas 7.
À semelhança de Simon, consideramos a "racionalidade de satisfação"
(1989: 47) mais congruente com as capacidades humanas e o indeterminismo
circunstancial. Todavia, a análise organizacional da escola, ao realizar-se por
referência a um modelo que contempla o plano da acção organizacional efectiva
ou realizada, incide sobre a realidade autêntica que os comportamentos
decisórios dos actores, as regras praticadas e as estruturas manifestas
concretizam. O domínio daquilo que é expressa uma operatividade por referência
a vários modos de racionalidade, inclusivamente a priori. Com efeito, este é o
espaço privilegiado para apreender o alcance de uma decisão cuja racionalidade
se justifica retrospectivamente, ou seja, a posteriori. Assim, só após a
concretização da acção os actores estão em condições de realizar uma
hermenêutica que lhes permite a sua reconstrução, e isto se for alvo de
averiguação. Apenas nesse caso se poderão descobrir as possíveis
desarticulações entre intenções e concretizações como apanágio da provável
falta de intencionalidade de uma acção e da solução encontrada 8, mas que
permite ajustamentos localizados sem prejuízo para a restante organização.
A análise que considera o plano da acção organizacional é capaz de desvendar e
desmistificar a ideia de que as escolas, enquanto organizações, operam e são de
igual modo. As marcas distintivas que as escolas possuem resultam de
comportamentos decisórios também contrários e paralelos, nos seus modos e
princípios de racionalidade, aos instituídos pelo poder central. Com efeito, os
actores educativos, em grau diverso, obedecem (ou não) ao estabelecido, e
estamos seguros de que nenhuma escola se mantém somente à custa de uma única
ordem.
Decerto não ignoramos que as decisões impostas sejam objecto de atenção e
obediência por parte dos actores educativos. Em termos genéricos, podemos
afirmar que é o cumprimento de algumas das grandes decisões emanadas pelas
instâncias superiores que torna possível encontrar um padrão comum a todas as
escolas, apesar dos professores serem outros. O funcionamento das escolas rege-
se por grandes linhas orientadoras que estabelecem os objectivos da docência, o
corpo curricular e respectivos conteúdos, a metodologia, a carga horária e sua
distribuição, os critérios de avaliação a adoptar, a constituição dos órgãos e
as competências atribuídas. Porém, estes mesmos órgãos não se encontram
totalmente enclausurados nas normas impostas pelo sistema. Com alguma
frequência, produzem determinadas decisões quanto à avaliação dos alunos, por
vezes expressivas e integradas na sua realidade, outras relativas à
distribuição dos tempos lectivos, outras ainda sobre os modos e procedimentos a
adoptar nas vigilâncias de exames, ou mesmo em relação às viagens de estudo.
Admite-se claramente a existência de decisões não formais produzidas no
interior da própria escola, como o atestam alguns documentos escritos, que
visam outras soluções e outros comportamentos à margem das orientações formais-
legais. Idêntico cenário acontece na sala de aula, espaço propício à ocorrência
de certas decisões informais pelo "isolamento" em que o professor se
encontra, em que define algumas regras contrárias às estabelecidas e age em
consonância com as suas crenças, necessidades e objectivos, como o mostram a
avaliação das actividades lectivas e o modo como decide em função de
determinados comportamentos realizados pelos alunos, contrariando o instituído
formalmente ou as deliberações dos órgãos da escola 9. De resto, o conhecimento
dessas decisões restringe-se a esse mesmo espaço, não sendo possível detectar a
sua existência através de qualquer fonte documental, o que torna difícil o seu
reconhecimento.
Admitir a existência de múltiplas racionalidades, ou o choque de racionalidades
que as decisões integram, concorrentes e dissonantes entre si, rompe com a
exclusividade da ordem burocrática, só possível porque se recorre a um modo de
focalização diversificado que inclui o registo normativo, interpretativo e
descritivo. Neste sentido, os comportamentos organizacionais são apreendidos
enquanto consequência do que é estabelecido formalmente, mas também como
resultado de acções concordantes com decisões de âmbito não formal e informal
e, ainda, de decisões praticadas ou "actualizadas". De acordo com as
diferentes focalizações, será possível detectar diversos tipos de
racionalidades decisórias que permitem que a escola seja percepcionada enquanto
locus de confluência de multiracionalidades.
AS MULTIRACIONALIDADES DAS DECISÕES NO CONTEXTO DA ORGANIZAÇÃO ESCOLAR
São as práticas que descortinam as racionalidades operantes ou actualizadas,
isto é, que caracterizam o efectivo comportamento decisório dos actores
educativos; e que serão classificadas de acordo com a selecção dos seguintes
critérios: 1) Processo; 2) Requisitos; 3) Soluções; 4) Objectivo.
1 - Processo
A função da decisão, que se confunde com a sua razão de ser, é poder
desencadear a continuidade da acção (entenda-se a acção futura). Tomar uma
decisão pressupõe a utilização de um determinado procedimento que nos conduz à
eleição de uma alternativa. É, no fundo, responder à questão de como tomamos as
nossas decisões sem excluirmos a possibilidade da existência de vários
esquemas, os quais, por si mesmos, acusam uma racionalidade diferente. Os
aspectos a destacar no âmbito do processo da tomada de decisões, e que a nosso
ver melhor servem os nossos intentos, são o tipo de linearidade aplicada e os
tipos de futuro previstos pelos agentes-decisores, de onde resulta uma
racionalidade a priori, probabilísticae a posteriori.
1.1 - Racionalidade a priori
Releva da concepção clássica da tomada de decisão que pressupõe que entre a
percepção do problema e a solução, ou seja, entre os dois pontos extremos da
tomada de decisão, se estabelece uma cadeia contínua e lógica de actividades
comportamentais o que vai no sentido do carácter unificado do conjunto, que
não admite nenhum tipo de desvio, rejeitando qualquer outra possibilidade de
ordenação, princípio que se funda na ideia de que a realidade é igualmente
linear, que é estática. Assim, supõe o acto de decisão isolado e constituído
por um conjunto de fases bem delimitadas que se sucedem de maneira exacta e
necessária, de onde se conclui que o actor educativo parece estar equipado com
uma única bagagem de respostas determinísticas e absolutas. Esta
conceptualização de racionalidade só faz sentido porque todas as consequências
da decisão são inteiramente previsíveis com alto grau de exactidão, de onde
releva o seu carácter a priori. Estamos na posse do conhecimento claro das
ligações entre causa e efeito, aspecto que faz da decisão uma questão
inequívoca, redundando num elevado controlo da realidade que se compreende como
estática, mecânica e rígida. Diríamos estar em presença de uma racionalidade
simplista.
1.2 - Racionalidade probabilística
A linearidade inclusa neste pressuposto de racionalidade é entendida de modo
ténue pela dificuldade em se perceber nitidamente os seus limites, mas ainda
possuindo o conhecimento de todas as alternativas e de todas as consequências,
só havendo dúvidas sobre qual a decisão que será tomada daí o seu carácter
probabilístico. Assim, tanto o fim como o início são incertos, apesar de se
manter entre estes extremos a mesma cadeia contínua de actividades do esquema
clássico, o que confere a este processo uma objectiva estruturação, um
fraccionamento linear do processo, fiel à teoria clássica. É uma racionalidade
caracterizadora de uma decisão que reconhece que está contaminada pelo
entrecruzamento de outras decisões, ainda que se admita que se conhecem as
causas e os efeitos; as previsões quanto ao futuro são razoavelmente correctas,
ou seja, as consequências são previsíveis. Estamos em presença de uma
racionalidade que emerge em contexto de negociação de jogos de influências, que
não permite a linearidade absoluta do processo.
1.3 - Racionalidade a posteriori
Apesar de identificados, os momentos constitutivos do processo de tomada de
decisões têm a sua ordem subvertida, admitindo mesmo a possibilidade de
combinação de alguns e, portanto, a sua descontinuidade, abalando o esquema
clássico da linearidade que, dentro da sua lógica, perspectiva este modo como
um desvio. É uma linearidade que não é distinta quanto às fases que
compreende e à transição de uma fase para a outra, reveladora de uma certa
espontaneidade. O termo do processo é tomado pelo seu início, de modo que a
ligação do sujeito à sua acção não seja de um vínculo de causalidade mas sim de
expressividade, porque a relação entre causa e efeito só se desvenda após a
execução da decisão aspecto que enfatiza a ideia de que a descoberta das
intenções da acção é realizada de modo retrospectivo, ou seja, a posteriori. É
uma racionalidade que, quanto ao futuro, integra uma dimensão de abertura, pois
as consequências da decisão são imprevisíveis. Neste sentido, a situação de
decisão, que se assume como complexa, pode identificar-se com uma acção de
exploração, de desenvolvimento de significados; uma situação que não prevê o
controlo sobre o futuro, tanto quanto não impede o sujeito de o pensar, já que
considera a interacção com o que o rodeia.
2 - Requisitos
A racionalidade não diz, exclusivamente, respeito ao pensamento, mas a
racionalidade de uma decisão também pode estar associada à acção que lhe é
inerente, e que os meios e os fins permitem caracterizar. De facto, são esses
requisitos que vão permitir identificar a racionalidade da decisão, pela
importância que vai ser conferida a um, em detrimento do outro, ou a ambos.
Meios e fins são dois aspectos elementares na abordagem da problemática da
racionalidade, porque será sobre eles que recairá a nossa atenção quando
tentarmos conjecturar acerca da sua verdadeira natureza. A racionalidade pode,
assim, apresentar-se com duas caras pela perspectiva dos meios, quando é o
reflexo de uma preocupação pragmática relativa à eficiência do processo; pela
perspectiva dos fins, quando a preocupação incide sobre o produto , apesar de
alguns autores serem de opinião que, em termos reais, não há uma separação
completa entre meios e fins. Neste âmbito distinguiremos entre racionalidade
instrumental e substantiva.
2.1 - Racionalidade instrumental
Definida por Weber como uma racionalidade que compreende a relação entre meios
e fins, com referência à relação entre causa e efeito, e com uma preocupação
fundamental pela excelência dos métodos na procura da solução óptima, em
comparação com os meios utilizados para se atingirem os objectivos pretendidos
(1999: 38). É, neste sentido, uma racionalidade técnica alicerçada na ideia do
esforço mínimo e do máximo rendimento, princípio em que se baseia a
racionalidade económica (id. ibid.: 12). Nesta linha de pensamento, e
parafraseando Simon, diremos que, entre as várias alternativas possíveis que
permitem a consecução dos objectivos, a nossa escolha deve recair sempre sobre
a que custa menos (1971: 40). Porém, estes fins não são objecto de reflexão;
são, simplesmente, nunca se pondo em causa os valores em nome dos quais se
actua ou a preferência desse fim daí ser uma racionalidade que só incide no
como e com que meios se pode atingir determinado objectivo. O plano dos fins
vê-se, assim, votado à indiferença, em grau semelhante à exclusão da dimensão
afectiva, pelo receio de que possa contaminar a procura da melhor solução
aquando da tomada de decisões.
2.2 - Racionalidade substantiva (substancial para Morgan)
É uma forma de racionalidade que se concretiza no esforço de tornar efectiva a
presença dos meios e dos fins de modo simultâneo, pelo relevo que lhes é
conferido, motivado pela necessidade de se questionar reflexivamente os
objectivos da decisão, visando a sua legitimidade. Ao exigir a presença destes
dois requisitos, supõe uma racionalidade enformada por uma orientação
axiológica, que incide sobre o que devemos ter como preferível ou prioritário,
e uma orientação instrumental, porque não nega a preocupação sobre a eficácia
de um processo que aspira à realização de uma finalidade considerações que,
na óptica de Morgan, se sintetizam na necessidade de encontrar decisões que
sejam norteadas por esclarecimentos de toda a situação (1996: 40). Partindo do
pressuposto de que, ao agente da decisão, nem os meios nem os fins podem ser
indiferentes porque, para além de serem dois requisitos que fazem parte
integrante da racionalidade, conferem-lhe unidade não podemos abdicar de
nenhum deles. De facto, utilizar meios adequados para alcançar objectivos
inconvenientes e inoportunos é tão desconforme como usar meios desadequados
para atingir objectivos legítimos. É uma racionalidade que tem por propósito
fundamental legitimar a decisão, na medida em que se indagam os seus porquês.
3 - Soluções
Por definição, a acção racional é aquela que se fundamenta nas nossas razões
mais fortes, de onde deriva que a resolução é a melhor solução que podemos
escolher porque é aquela que garante os melhores resultados. Deste modo, uma
decisão é racional sob o ponto de vista da solução que encerra, a qual pode ser
perspectivada de acordo com o corpus de informação conseguido, os valores que a
constituem e a capacidade do agente para tomar decisões correctas
circunstâncias que deixam antever uma racionalidade olímpica/óptima, limitada/
satisfatória e hermenêutica.
3.1 - Racionalidade olímpica/óptima
A solução prevista contém os germes de um ser humano que não existe na
realidade, um super-homem com capacidades infinitamente superiores às que são
próprias dos homens e das mulheres da vida real consideração que justifica a
conceptualização de "olímpica", proposta por Simon. É uma
racionalidade que se funda no pressuposto de que o sujeito está na posse de
toda a informação absolutamente necessária relativa ao curso da acção e à
possibilidade de prever todas as consequências daí resultantes, como se fosse
capaz de absorver toda a incerteza da realidade. Ou seja, o decisor possui uma
capacidade ilimitada para recolher e tratar a informação, como se pudesse
accionar um raciocínio sinóptico "que lhe permite proceder a um exame
comparativo ao mesmo tempo exaustivo e simultâneo de todas as soluções
possíveis com as suas consequências prováveis" (Friedberg, 1993: 45).
Conhecimento completo e antecipado, a opção por uma alternativa entre todos os
comportamentos alternativos configura esta racionalidade como utópica, porque
inalcançável.
O problema da racionalidade é sensível ao da informação, implicando, portanto,
que a tomada de decisões esteja dependente da quantidade de informação que
temos sobre determinada situação. Esta dependência é tal, que o simples
acréscimo de informação à que já possuímos pode alterar o nosso sentido de
óptimo. A racionalidade óptima, que Simon associa à racionalidade olímpica,
pressupõe o máximo de utilidade porque a decisão é orientada segundo soluções
que são simplesmente as óptimas, que têm em conta absolutamente tudo aquilo que
é indispensável daí que esta racionalidade esteja relacionada com a
optimização absoluta, dando sentido à ideia de que o idealmente racional será
fazer o óptimo.
3.2 - Racionalidade limitada/satisfatória
O conceito de racionalidade limitada, que encontramos na obra de Simon,
subentende a existência de factores que limitam a própria racionalidade. Neste
enquadramento, a racionalidade é sempre matéria de optimização relativa porque
a nossa capacidade, o nosso espírito é limitada/o o que vai ao encontro da
ideia de que a racionalidade é arte dos possíveis, de fazermos o melhor que é
possível em certas circunstâncias, inclusivamente as cognitivas (Simon, 1989:
47). Desta limitação releva um conhecimento fragmentado das condições que
circundam a acção e a impossibilidade de determinar todas as consequências de
forma antecipada, sendo que a esta visão está associado um conhecimento
limitado quer das alternativas, quer das suas repercussões. Esta ideia de
racionalidade está alicerçada no pressuposto de que seria impossível sermos
racionais se tal implicasse termos informação completa o que se transformaria
em algo totalmente irrelevante e sem sentido para o ser humano, que não opera
no âmbito de circunstâncias ideais mas reais. Postula-se aqui, contrariamente
ao raciocínio sinóptico, um raciocínio sequencial, mais concordante com a
complexidade dos processos mentais. No fundo, é considerarmos que esta
racionalidade subentende, nas palavras de Friedberg, um comportamento próximo
de "uma adaptação activa e razoável a um conjunto de constrangimentos e de
oportunidades percebidas no seu contexto de acção" (1993: 46).
A proposta de racionalidade satisfatória de Simon situa-se num quadro realista
e alcançável, ou seja, orienta-se por resoluções que são as melhores ao nosso
alcance tendo em conta tudo aquilo que é relevante em correspondência com o que
nos é possível realizar em certas circunstâncias o que assenta no
reconhecimento de uma maximização que nunca é absoluta. Diríamos que é o óptimo
praticável e circunstancial face à informação disponível e incompleta que temos
ao nosso alcance; é o nosso melhor possível, apesar de não termos garantias
absolutas do êxito pelo que jamais podemos estar seguros de que continuaria a
ser o óptimo se tivéssemos outra informação, ou se esta fosse mais completa
(Recher, 1993: 44).
Portanto, a solução encontrada não é absolutamente a melhor, nem mesmo quando
em causa estão os critérios de satisfação do decisor, porque nada invalidaria
que a escolha fosse outra se a procura continuasse. Neste caso, diremos que a
solução é a melhor considerando todas as outras que haviam sido examinadas, o
que exclui a possibilidade do decisor optimizar e maximizar. Diríamos estar em
presença de uma perspectiva de racionalidade que, por ser mais modesta, ou
seja, menos pretensiosa, é mais realista.
No entanto, a conceptualização de satisfatória ultrapassa o âmbito cognitivo e
assenta em decisões que resultaram de acordos que não foram alheios à presença
de preferências, interesses e subjectividades de cada actor educativo, motivo
pelo qual a solução encontrada se configure como aceitável querendo com isto
dizer que é uma solução que, não sendo a preferida por qualquer das partes
implicadas no processo, é a menos má.
3.3 - Racionalidade hermenêutica
Esta racionalidade, proposta por Gadamer, tem preocupações com a certeza e
verdade do conhecimento e concretiza-se num constante perguntar e responder,
numa permanente atitude argumentativa que se manifesta na capacidade de
refutação, disponível a outros pontos de vista (1984: 556). É uma racionalidade
que se confunde com um projecto de permanente actividade concretizado na
capacidade que o pensamento tem de indagar, no diálogo inter-subjectivo em que
é manifesta a discussão argumentativa, e na crítica das convicções adquiridas.
É a reflexão que auxilia na procura das possibilidades do conhecimento e a
linguagem que se assume como meio por excelência desse conhecimento.
Este tipo de racionalidade, pelos contornos que adquire, tem paralelo com a
racionalidade compreensiva proposta por Horkheimer, pelo reconhecimento da
razoabilidade de qualquer acção (1973: 195), e com a racionalidade activa
proposta por Sousa Santos, porque em trânsito, inquieta, desinstalada de
certezas paradigmáticas (2002: 39). Racionalidade comunicativa, na peugada de
Habermas, que se assume pela relação inter-comunicativa do sujeito com a acção,
com o mundo dos factos; que é feita através da mesma linguagem, assente numa
moral universal liberta de constrangimentos e, por isso, autêntica, livre para
criticar e problematizar mas nem por isso infalível, porém visando a
transformação dos interlocutores (1987: 36).
4 - Objectivo
As decisões, sejam elas quais forem, estão sempre ao serviço de um projecto que
torna visível o seu alcance. Não só o conteúdo que incluem, mas também a forma
que presidiu à sua produção, evidenciam o sentido que lhes está subjacente em
termos de comprometimento e defesa dos actores educativos, no que respeita à
sua autonomia e liberdade, numa alusão à problemática do poder. Desta feita,
toda a decisão pode ser traduzida numa forma de acção, ao mesmo tempo que é
inspirada em valores. Assim, a racionalidade assume o carácter de
instrumentalizadora ou emancipatória.
4.1 - Racionalidade instrumentalizadora
Releva de uma decisão que não permite o desenvolvimento das capacidades de
homens e mulheres e inviabiliza a sua acção decisória pela força do poder de
outrem. Dispensa a opinião formulada por aqueles e recusa a entrada de
considerações de outra natureza que não a economicista, que poderiam colocar em
causa a lógica da reificação. As suas ideias, desejos e acções ficam balizadas
por uma política já concebida e, assim, impede-se a construção de esferas de
debate público o que se converte numa situação de alienação para o sujeito
porque incorpora valores anexados à eliminação de interesses conflituantes,
reproduzindo uma perspectiva cultural comum e suprimindo as possíveis
diferenças, no intuito de homogeneizar, de onde deriva o seu carácter de
universalidade. Daqui se depreende que as relações são mobilizadas pela
acriticidade e pela mecanização, que domesticam, em vez de cuidar da
perfectibilidade do ser humano, acabando por o converter num simples executor,
reduzido à condição de sujeito passivo.
4.2 - Racionalidade emancipatória
Em coerência com os princípios democráticos, esta racionalidade, preconizada
por vários autores, dos quais destacamos Freire e Sousa Santos, apela ao
fortalecimento do pensamento e da experiência humana concretizada pelas
decisões que homens e mulheres produzem, sem que visem uma eficácia em prol de
finalidades económicas (antes as questionando). É uma racionalidade de carácter
mobilizador que se traduz numa esfera dialógica dos sujeitos e que é capaz de
identificar os mecanismos de opressão, de controlo e de dominação que
dificultam a revitalização da esfera pública. Pressupõe um sujeito ligado às
condições da sua circunstância e assegura soluções expressivas face à realidade
que se configura como diferente. Comprometida com a crítica e o questionamento
dos discursos hegemónicos só possível porque incita a uma cidadania
verdadeiramente democrática, em que o ser humano se transforma em autor da sua
própria história, o que reverte em favor da sua emancipação , evidencia modos
permeáveis ao princípio de intervenção concretizável através das decisões dos
indivíduos, daí que se afirme pela dissolução de qualquer relação de poder
autocrático.
A ESCOLA: LUGAR DE INSTRUMENTALIZAÇÃO E DE EMANCIPAÇÃO
As multiracionalidades acontecem à medida que as actividades se realizam e que
os actores organizacionais se relacionam entre si, podendo resultar de
estratégias e de negociações cuja finalidade será sempre encontrar uma
resposta, em forma de solução, para determinada situação decisória.
Os homens e as mulheres da vida real constatam a realidade à margem de uma
imagem totalizadora e perfeitamente ordenada em conformidade com as decisões
pré-definidas que se traduziria, no que à escola diz respeito, numa
configuração fixa e imutável. E se a racionalidade instrumental, que o modelo
centralista compreende, objectiva o sujeito, existe a possibilidade de as
decisões, de que eles próprios são os autores, encerrarem uma racionalidade
mais comprometida com os valores e com as finalidades do acto de decisão 10.
Deste ponto de vista, o importante é não rejeitarmos o confronto entre as
diferentes racionalidades que as decisões, em coerência com uma particular
orientação, transportam.
Na verdade, uma racionalidade que se mostra isenta de qualquer resquício de
erro exerce grande atracção nos actores educativos, mesmo porque está vinculada
a decisões a que é preciso obedecer caso não se queira incorrer em actuações
marginais, ou desviantes, em alguns casos passíveis de serem sancionadas. De
resto, tais decisões são apresentadas como vinculadoras de valores e interesses
consensuais. Contudo, a ocorrência de outras racionalidades, evidenciadas em
outras decisões que também compõem a dinâmica organizacional e que confirmam o
postulado de March de que "Organizations rarely do exactly what they told
to do" (1991: 563), conduzem-nos a percepcionar este fenómeno à margem de
acontecimentos meramente episódicos ou acidentais. Por ter uma existência
continuada e usual por parte dos actores educativos de onde se depreende que
estes não se esvaziaram de si próprios no que respeita aos seus objectivos,
interesses e expectativas (por vezes de aparência fluida, ambígua e
contraditória) e não se negam enquanto detentores de alguma margem de autonomia
, não podemos subestimar a sua importância quando em causa está caracterizar
os comportamentos dos actores e a respectiva acção organizacional. Não é só o
desconhecimento de certas decisões elaboradas pela administração central que
motiva a emergência de racionalidades dissonantes, mas, essencialmente, o
resultado fracassado de uma política de adaptabilidade que não conseguiu evitar
o questionamento em prejuízo do conformismo, ou ainda o resultado de um
encontro fortuito e surpreendente que não deixou espaço à ponderação mas que
teve em conta a sensibilidade, a intuição, a emoção, os interesses e
expectativas, a que a racionalidade formal se nega.
Estas racionalidades informais 11, que sistematicamente deambulam pela
organização, têm um grau de aceitação diferenciado que está em relação directa
com o conteúdo que abrigam, que lhes confere um carácter mais humanista, e com
a verificação de que existem outras vias e procedimentos que permitem o
reconhecimento inteligente de situações decisórias bem mais importantes do que
os cálculos que se podem efectuar. Trata-se de contrariar a natureza
mecanicista dos comportamentos e reconhecer a importância de outros
contributos, de natureza variada, repercutidos nas racionalidades dos actos
decisórios. Apesar de mais modestas, porque mais realistas, estas
racionalidades, com frequência, sustentam decisões que passam a vigorar nas
práticas organizacionais, carregando, por vezes, um estatuto institucional e
sendo constantemente reclamadas pelos actores como sintomáticas de uma
autonomia que lhes é repetidamente recusada.
Destaca-se, assim, o frequente combate dos actores à racionalidade formal
através da produção de multiracionalidades, como se estivéssemos em presença de
uma contenda em que as racionalidades informais se erguem contra a formal. A
racionalidade formal, pese embora toda a instrumentalidade de que se reveste,
traduz uma universalidade que assegura uma igualdade representativa dos
direitos e dos deveres e incorpora receitas que são preferíveis a soluções
produzidas por outros, a quem não se reconhecem qualidades suficientes, pois
raramente redundam em êxito 12. As racionalidades presentes em decisões
efectivadas pelos actores educativos são representativas dos contornos de
incerteza e de risco a que a realidade não escapa e evidenciam um comportamento
que não é compatível com paralisias que uma análise demasiado minuciosa pode
conter, o que não invalida que incluam os mesmos propósitos e a mesma
formalização das anteriormente citadas. Acentuam e explicam a importância de
avaliações individuais, já que são racionalidades marcadas pela subjectividade
dos actores e pelo conhecimento limitado da situação, e pressupõem um
ajustamento dinâmico à situação, que por vezes resulta de preferências
produzidas pela situação da escolha. No interior desta lógica, a optimização
absoluta é um conceito vazio de sentido e assume-se que podem existir vários
meios para se chegar a determinado fim, tanto quanto se assume que não há uma
solução única, mas várias. De resto, a racionalidade das decisões não reside
somente na maneira como se tomam, mas também no conteúdo que transportam.
Recorde-se que assumir a existência de multiracionalidades é desmistificar o
centralismo administrativo enquanto mecanismo absoluto de coação, contraposto à
ideia de sujeito autónomo, comprometido e permeável a desafios situados na sua
trajectória.
CONCLUSÃO
Esta proposta resultou da apreciação de diversas perspectivas estudadas, na
pretensão de que seja útil enquanto ponto de partida para o estudo das
diferentes racionalidades inclusas nas decisões dos professores da escola
secundária. Será a base de que nos munimos no pressuposto de que, dentro dos
possíveis, poderá dar conta da multiplicidade e complexidade de situações
decisórias que acontecem na escola fenómeno que, por si só, encerra uma
dimensão política pelo sentido de democracia que, a nosso ver, é central, e
que, à semelhança dos conceitos de descentralização e autonomia, se constitui
como uma conquista, e não como um dado adquirido, porque, à semelhança do que
acontece com a participação 13, a natureza da decisão reside na sua prática (o
contrário obrigaria a considerá-la apenas como letra morta). As decisões
praticadas não dispensam, para a sua caracterização, a alusão às diversas
categorias dos actores que os diferentes órgãos evidenciam, pois só assim será
possível recusarmos um quadro monolítico de racionalidade suportado por visões
unitárias da organização escolar.
A organização escolar, sob este prisma, será um espaço de convergência de
ordens diversas e, nesse sentido, por parte dos actores educativos, abrange
comportamentos de mera observância e de manifesta criação, de acomodação e de
transformação, de aceitação e de resistência. Este é o mote que permite defini-
la, no que concerne às racionalidades, enquanto lugar de instrumentalização e
de emancipação.