Os novos desafios epistemológicos da sociologia
Em que ponto se encontra a sociologia?1 Esta é uma questão recorrente,
nomeadamente na tradição anglo-saxónica, habituada a States of The Art
periódicos. É uma questão que pode ser abordada de diversas maneiras. Pode-se
dedicar interesse à situação empírica actual da sociologia, ou ao seu estatuto
teórico. Pode-se querer retomar o empreendimento fundador dos grandes teóricos
(Habermas, 1981; Freitag, 1986). O nosso propósito será parcialmente diferente.
Interrogar-nos-emos sobre como a sociologia pensa hoje o seu programa
epistémico fundamental.
Esta interrogação merece alguns esclarecimentos. Se se olhar para a história da
sociologia no decurso dos últimos cem anos, torna-se claro que esta disciplina
não retira a sua unidade nem de um consenso sobre o objecto, nem de um consenso
sobre o método, mas do que se poderia chamar, um tanto paradoxalmente, um
consenso polémico sobre o objectivo visado: elaborar um corpus de referências
científicas. Esta pretensão comum constitui o terreno de um debate sobre a
cientificidade, debate cuja recorrência, depois da célebre polémica sobre os
métodos do século XIX, constitui talvez o traço mais específico da sociologia.
Este debate foi durante muito tempo delimitado de forma bastante clara por três
posições que poderiam grosseiramente resumir-se da maneira seguinte.
1 A sociologia não pode fundar-se senão sobre uma determinação crítica do seu
objecto, irredutível a uma simples fenomenologia do existente. Esta posição é
ilustrada exemplarmente por Adorno, na controvérsia que o opôs a Popper em 1961
(Adorno e Popper, 1969). Liga o projecto epistémico da sociologia ao programa
de uma filosofia crítica.
2 A sociologia não pode ser senão uma ciência como as outras, devendo-se
admitir que, se a natureza está submetida à autoridade do princípio da
causalidade, não há nenhuma razão para que a sociedade escape à sua legislação.
Esta posição, inaugurada por Durkheim (1981) com a força que se conhece,
encarnou-se depois nas diversas variantes do racionalismo experimental e do
positivismo, por exemplo no sistema de Bourdieu (1970), o qual, na sua versão
estruturo-funcionalista, ilustra um objectivo de refundação unitária da
sociologia científica, com o risco recorrente de naturalismo que sem dúvida
comporta.
3 A sociologia, enfim, deve aceitar ao mesmo tempo o princípio do racionalismo
experimental e o princípio do pressuposto transcendental da subjectividade.
Esta associação difícil mas fundamental é enunciada pela primeira vez por Weber
(1904-1917, 1922) e é retomada por Schutz (1953, 1963) no seu diálogo com
Hempel e Nagel (1963).
Destas três posições clássicas podem encontrar-se com facilidade múltiplos ecos
nas diversas correntes de pensamento que atravessam a sociologia contemporânea.
Esta, no entanto, é percorrida em simultâneo por tendências deletérias fortes
que já não se inscrevem no espaço conflitual de legitimação definido do modo
assinalado: é o próprio projecto epistémico da sociologia, a sua aspiração a
construir um conhecimento de carácter científico - qualquer que seja o critério
adoptado para definir este último - que parece ser contestado. Tudo se passa
como se, cem anos depois do seu nascimento como disciplina científica autónoma,
a sociologia fosse alvo de uma contestação radical do objectivo por ela visado.
Limitando voluntariamente a investigação à última década, ou pouco mais, vamos
procurar ver como se estabelece este novo debate da sociologia consigo própria,
a que críticas tem de responder o seu projecto fundamental e segundo que novas
modalidades ele é pensado. Um primeiro tema emergirá dos diversos contextos de
discussão, o tema do universalismo, sujeito a uma problematização renovada.
Internacionalização e indigenização: do debate político à questão
epistemológica
Em 1945, refugiado nos Estados Unidos tal como muitos outros universitários
europeus, Georges Gurvitch publicou, em colaboração com Wilbert E. Moore, um
tratado de sociologia que permite avaliar o caminho percorrido desde então. Era
uma obra efectivamente internacional; apesar da presença predominante dos
maiores nomes da sociologia americana, consagrava o seu segundo tomo às
sociologias nacionais, apresentadas na maioria dos casos por um dos seus
membros. Mas esta abertura consciente e conhecedora às tradições nacionais
aparecia a par de uma divisão temática a que era consagrado o primeiro volume.
Desde essa época, duas modificações fortes afectaram o quadro então
apresentado: as segmentações pertinentes do domínio da sociologia retidas na
obra a meio caminho entre as generalidades teóricas ou metodológicas e as
divisões sectoriais foram-se progressivamente confinando em especializações
cada vez mais acentuadas e com frequência estanques (Collins, 1986); e
sobretudo, desde a década de 80, a articulação entre as sociologias nacionais e
o corpo comum da disciplina cessou de ser tida como óbvia para se tornar
problemática. É a internacionalização da sociologia, cujo movimento, apesar de
esboçado desde o início do século XX, se acelerou fortemente e se aprofundou a
seguir à segunda guerra mundial, que é submetida a questionamento. Esta
interrogação nova é ela própria produto de dois fenómenos distintos, se bem que
ligados entre si. O primeiro é o da globalização, termo que designa,
nomeadamente no pensamento anglo-americano (Wallerstein, Tilly), a constituição
progressiva de um espaço-mundo único regido por mecanismos conjugados,
funcionando através de redes multiplamente interligadas tendendo a sobrepor às
diferenças culturais tradicionais um novo sistema comum de referências e de
comunicação (Sztompka, 1988). O segundo é o da constituição, com as associações
internacionais de sociologia, designadamente a ISA (International Sociological
Association), de um espaço internacional de discussão e de debate, apoiado em
larga medida em revistas como Current Sociology ou International Sociology.
A internacionalização da sociologia é objecto de um discurso novo, fortemente
contrastado. Aparece aos seus defensores como uma oportunidade para a
sociologia. Assente no processo de globalização que afecta o mundo moderno,
constitui um verdadeiro desafio, tanto institucional como científico. Permite
esperar que o projecto universalista dos fundadores da sociologia venha a
encontrar enfim, na superação dos particularismos nacionais, o seu verdadeiro
suporte (Sztompka, 1988; Genov, 1991). Convida os sociólogos do mundo inteiro a
tomar o mundo como horizonte, a constituí-lo em espaço de referência tanto dos
seus trabalhos como dos seus ensinamentos (Tiryakian, 1986). O título do
Congresso Mundial de Madrid da ISA (em 1990) inscreveu-se na mesma perspectiva:
Sociology for one World.
No entanto, esta linha de pensamento optimista, ou voluntarista, é obrigada a
enfrentar uma oposição cuja existência importa menos do que os argumentos por
ela avançados. Estes, com efeito, atacando uma internacionalização concebida
como processo de dominação, levantam a questão do estatuto, não somente
político mas também epistemológico, das diferenças nacionais na produção e na
difusão do discurso sociológico.
O espectro de posições é evidentemente largo. No entanto, a articulação da
dimensão política com a dimensão epistemológica é decisiva. É, antes de mais, a
um primeiro nível que funciona uma oposição recorrente entre
internacionalização e indigenização: a sociologia internacional é definida como
uma sociologia ocidental que exporta para os países do terceiro-mundo modelos
teóricos inadaptados, como os da modernização ou da mudança social, os quais
não resistem à prova da respectiva aplicação a contextos sociais e culturais
diferentes (Sanda, 1988). A indigenização, como movimento inverso, designa
tanto um processo cognitivo de elaboração de modelos adaptados às situações
concretas de um dado país como um processo institucional de constituição de
comunidades nacionais de ciências sociais, autónomas e estabelecendo permutas
com quaisquer outras em estrito pé de igualdade (Loubser, 1988).
Internacionalização conjuga-se pois com dominação, etnocentrismo e
imperialismo. Esta tese pode apoiar-se no estudo pormenorizado do sistema de
produção e de troca de conhecimentos em ciências sociais e do lugar
determinante que nele ocupam os autores ocidentais e, mais especificamente,
americanos (Gareau, 1985, 1988).
Por detrás deste debate político joga-se, no entanto, um debate epistemológico
de alcance bem mais vasto. O postulado da universalidade dos modelos teóricos
em sociologia pode ser afectado de maneira diversa segundo a posição adoptada e
o estatuto atribuído ao enraizamento nacional da disciplina. A polémica que
opôs Jeffrey C. Alexander a Richard Münch acerca da avaliação da tradição
germânica comparada com a tradição americana revela claramente que a questão
não se reduz ao par internacionalização/indigenização e às suas conotações
Norte/Sul, mas envolve a questão da pertinência epistemológica de se tomar em
consideração o contexto societal de elaboração das abordagens teóricas. Afirmar
que a definição dos paradigmas microssociológicos implica a concepção
etnocêntrica de uma sociedade constituída pelas múltiplas actividades de
agentes livres e independentes (Münch, 1995: 553) transforma a transferência e
a generalização de tais paradigmas num empreendimento ilegítimo de imposição,
justificando a crítica de reducionismo (Alexander, 1995: 544). Por trás da
denúncia política de hegemonismo pode perfilar-se, directa ou indirectamente, o
questionamento da própria pretensão da sociologia a elaborar um discurso
universalizável.
No debate sobre a internacionalização é, de facto, e qualquer que seja a
posição adoptada, a questão do universalismo que é colocada: a globalização é,
para uns, o garante de uma internalização que aproxima os contextos de vida e
de experiência, permitindo a realização prática do ideal dos fundadores da
sociologia (Sztompka, 1988); a falência do universalismo é, para outros, um
estado de facto verificado pela precariedade das teorias sociológicas (Sanda,
1988) e pela incapacidade dos investigadores das ciências sociais em
constituírem comunidades científicas unidas em torno de consensos como nas
ciências da natureza (Gareau, 1988). A determinação social e cultural dos
conhecimentos tem de se aplicar à sociologia tal como aos outros sistemas de
conhecimentos, e o mito universalista não passa finalmente de um produto da
ilusão positivista de uma ciência universal (Park, 1988).
Seja qual for a pertinência destes argumentos, e mesmo que seja possível
desenvolver uma posição intermédia distinguindo universalismo lógico e
universalização, e registando tanto os factores favoráveis como os hostis à
universalização do saber em ciências sociais (Smelser, 1991), é claro que o
contexto de discussão que se reporta à internacionalização da sociologia afecta
a pertinência do objectivo original desta. Mesmo se, como declara
apropriadamente Bryan S. Turner (1996), no seu comentário ao debate Alexander-
Münch, os conflitos entre os aspectos nacionais e universais da sociologia
forem resultante necessária de uma dialéctica do local e do global, e se se
incorre numa reductio ad absurdum ao querer designar-se uma sociologia pela sua
origem nacional (porque não uma sociologia da Vestefália ou da Baviera?),
fica colocada em questão a possibilidade de subsistir a pretensão da sociologia
à cientificidade, isto é, a um saber cuja validade seja irredutível às suas
condições de produção.
Esta questão é nova na tradição sociológica. O debate anterior não incidia
sobre a legitimidade do objectivo visado, mas sobre a definição de
cientificidade: seria de ligá-la ao modelo fisicalista das ciências da
natureza, inscrevê-la no desenvolvimento de uma reflexão crítica ou instalá-la
na especificidade de um conhecimento do homem? Ninguém pensava, fosse qual
fosse a via que privilegiasse, em negar o valor de verdade da via que adoptava.
Pelo contrário, submeter o conhecimento sociológico à determinação exclusiva do
seu contexto de produção, é declará-lo de valor relativo. O que significa, por
conseguinte, entrar num debate novo, e muito mais amplo, associado ao
desenvolvimento da epistemologia pós-positivista e do movimento de reflexão
pós-moderno, opondo já não universalismo e particularismo, mas, bem mais
radicalmente, racionalismo e relativismo.
A sociologia perante o relativismo
Ao introduzir a retranscrição da mesa redonda consagrada ao problema do
universalismo e do indigenismo aquando do Congresso da ISA realizado no México
em 1982, Akinsola Akiwowo escrevia: Até que ponto os esquemas conceptuais e as
proposições constitutivas das principais teorias sociológicas podem ser tidos
como relevando de princípios universais de explicação de toda e qualquer
sociedade? (Akiwowo, 1988: 155). Fazendo desta questão o cerne do debate entre
internacionalização e indigenização, o autor retomava implicitamente uma
problemática clássica da sociologia do conhecimento, a qual não é inútil
evocar, menos para captar uma mudança de temática do que uma mudança de
contexto.
Quer se trate da teoria marxiana da produção social das ideias, da teoria
durkheimiana da sociogénese das categorias lógicas (Durkheim e Mauss, 1903;
Durkheim, 1985) ou da interrogação weberiana sobre as condições de emergência
do racionalismo ocidental (Weber, 1905), a sociologia reconheceu, desde as suas
origens, o papel das determinações sociais na elaboração do conhecimento. Mas
isso não lhe surgiu como um obstáculo ao reconhecimento, em simultâneo, da
validade desse conhecimento. O materialismo histórico é, em Marx, a concepção
do mundo mais capaz tanto de exprimir os interesses do proletariado como de
analisar de maneira científica as configurações históricas e sociais. O
pensamento científico, para Durkheim, retira a sua lógica e a sua força
originais da religião, enquanto se vai desta progressivamente distinguindo pela
sua exigência de controlo: O conceito que, primitivamente, é tido por
verdadeiro porque é colectivo, tende a tornar-se colectivo apenas na condição
de ser tido por verdadeiro: pedimos-lhe os seus títulos antes de lhe conceder a
nossa crença (Durkheim, 1985: 624). Enraizado, segundo Schutz, no conhecimento
corrente e nas suas tipificações, o conhecimento científico não deixa por isso
de se desprender dos limites do hic et nunc, através do sistema de pertinência
que promove (Schutz, 1953). Não se reduzindo ao estereótipo positivista, sendo
pelo contrário susceptível de modulação, de acordo com a diversidade das
filiações filosóficas, o universalismo racionalista continua a ser o padrão de
referência comum da profissão de fé sociológica.
É este pano de fundo que, no decurso do século XX, se vê abalado, dando lugar,
a pouco e pouco, a novas convicções, relativistas e cépticas. Desde o fim da
segunda guerra mundial que Robert K. Merton (1945) as tinha identificado muito
claramente. Merton via na complexificação das sociedades contemporâneas, no
estilhaçamento dos valores e na multiplicação conflitual das referências daí
resultante, o fundamento de uma perda de comunidade de sentido, de uma
desilusão traumática, de uma desconfiança activa e recíproca aberta a todas
as propostas de redução da validade de um enunciado aos interesses sociais que
é suposto ele servir: Não só se formam universos de pensamento diferentes, mas
a existência de qualquer um deles torna-se um desafio à validade e à
legitimidade dos outros (Merton, 1945: 379). Sem ser explicitamente formulado,
o conceito de incomensurabilidade está já presente, e com ele o questionamento
de toda a concepção racionalista de verdade: A revolução coperniciana' neste
domínio de investigação é a hipótese de que não somente o erro, a ilusão ou a
crença sem fundamento, mas mesmo a verdade, são condicionadas pela sociedade e
pela história (Merton, 1945: 381).
Se esta retrospectiva histórica se impunha, é porque a questão da
internacionalização não se limita a redescobrir um debate epistemológico
subjacente, mas manifesta, em simultâneo, as transformações em profundidade que
nele ocorrem. O problema do enraizamento social do conhecimento muda de
perspectiva e de amplitude. Já não é só objecto de análise circunscrito a um
segmento particular da sociologia, por fundamental que ele seja. Torna-se um
escolho para a própria disciplina, enquanto tal, e, de forma mais ampla, um
obstáculo a qualquer pretensão à cientificidade. Deixa de constituir um debate
no âmbito da sociologia, passando a ser, de forma bem mais alargada, uma
confrontação entre filosofias, concepções do mundo, sistemas de pensamento e de
valores. Como declara Raymond Boudon, perto de cinquenta anos depois de Merton:
O cepticismo, o relativismo, são deste modo promovidos ao estatuto de
filosofia vulgar das sociedades modernas (Boudon, 1995b: 240). Como é que a
sociologia reage a este novo desafio, radicalmente diferente dos que presidiram
à sua emergência no século XIX, quando se tratava de fazer prova da sua aptidão
à cientificidade?
O relativismo contemporâneo tem fontes e formas diversas (Hollis e Lukes,
1984). Vai buscar as suas raízes filosóficas a diversas correntes que, de
Nietzsche a Wittgenstein, Foucault, Derrida ou Rorty, se empenharam em
desconstruir a ilusão assertórica, quer dizer, a ideia de que um enunciado
sobre a realidade possa enunciar simplesmente sobre esta aquilo que pretende
enunciar. Amplifica-se com a ressonância e a dramaturgia históricas carreadas
por uma nova grande partilha entre modernidade e pós-modernidade, sugerindo que
ao esgotamento do projecto da modernidade corresponderia o estilhaçamento das
formas tradicionais de discurso e que aos valores lógicos viriam substituir-se
os valores estéticos, éticos e políticos (Seidman e Wagner, 1992; Rosenau,
1992). Alimenta-se dos debates e das tomadas de posição que, fazendo apelo
tanto à crítica ao etnocentrismo como às reivindicações de grupos minoritários,
recusam o postulado weberiano da neutralidade axiológica. Proteiforme, o
relativismo contemporâneo precisa de ser definido com mais precisão, sob pena
de se misturar o que decorre da investigação e da crítica legítimas dos
sistemas de pensamento e o que constitui uma posição preconcebida contestável.
Proporemos aqui, no plano epistemológico que nos ocupa, o critério seguinte:
são relativistas todas as posições que reduzem o significado de um enunciado à
expressão do seu contexto singular de enunciação. É com esse relativismo
epistemológico que fundamentalmente se vê confrontada a sociologia
contemporânea. Que posição é por esta adoptada?
Teria sido muito surpreendente se a sociologia, tendo em conta a sua
diversidade interna, tivesse ficado à margem do debate. No entanto, na medida
em que seja possível apresentar uma visão panorâmica, o seu envolvimento parece
ter assumido no essencial quatro formas:
- a de uma promoção do relativismo epistemológico, a partir do programa forte
da sociologia da ciência, desenvolvendo de algum modo até ao limite as
tendências já diagnosticadas por Merton no pós-guerra;
- a de uma emancipação relativamente aos critérios positivistas de
cientificidade, encontrando legitimidade histórica na tradição hermenêutica,
vendo no pensamento pós-moderno a ocasião de traçar novas vias de conhecimento
e de escrita, mais estéticos e figurativos;
- a de uma crítica frontal ao relativismo e aos seus pressupostos;
- a de uma tentativa, enfim, de tomar em conta esta nova situação
civilizacional, social e epistémica, num aprofundamento do projecto de
cientificidade da sociologia.
Estas quatro formas constituem ideais-tipos weberianos. Na prática, as
diferenças podem ser mais fluidas. Mas é relativamente fácil situar nesta
categorização um conjunto de posições contemporâneas. Assim, Jean Braudillard é
a figura emblemática de uma sociologia que se desfaz da armadura habitual da
demonstração e da prova para usar recursos literários de expressão e de
construção de sentido. Este estilo, no verdadeiro sentido, praticado em grande
medida nas margens das disciplinas, pode procurar a sua justificação
epistemológica numa crítica da razão abstracta, num regresso a uma
fenomenologia do mundo vivido, numa sensibilidade desejosa de restituir a
plenitude da experiência (Maffesoli, 1985, 1996). Caracteriza-se mais pelas
liberdades que toma relativamente às normas de um conhecimento standard e pela
sua aversão ao modelo positivista de cientificidade do que por uma rejeição
relativista do projecto de conhecimento sociológico. Pelo contrário, e é a
quarta forma acima localizada, certos fenómenos e certos problemas
referenciados pelas correntes pós-modernistas podem ser retomados sem mobilizar
a retórica destas últimas, considerada mais como um reflexo da condição pós-
moderna (a mimetic representation, Bauman, 1988: 806) do que como a sua
teorização sociológica. Esta far-se-á então por outras vias, re-interrogando a
modernidade e o seu projecto, sem cortar por isso as amarras que a ligam à
tradição sociológica (Balandier, 1988, 1994; Touraine, 1992).
Em contrapartida, o relativismo epistemológico, no sentido preciso que lhe foi
dado acima, encontrou na nova sociologia da ciência um recurso tanto mais
forte quanto esta enfrentava o próprio coração da cidadela racionalista e não
hesitava em voltar contra ela as suas próprias armas: os quatro princípios do
programa forte de David Bloor (1976), que reconduzem qualquer elaboração
conceptual ao efeito de uma causa mecânica e qualquer superioridade de uma
concepção sobre outra ao efeito de uma variável determinante, não se limitam a
estabelecer um princípio metodológico de simetria entre teorias verdadeiras e
falsas; suprimem simultaneamente qualquer diferença pertinente entre os dois
termos do ponto de vista do conhecimento. A dissimetria entre o verdadeiro e o
falso já não decorre, em última análise, do valor científico das teorias mas da
força do veredicto social que repudia implacavelmente as teorias reputadas
falsas, à imagem do infeliz Pouchet, vítima da sua controvérsia com Pasteur
(Farley e Geison, 1974; Latour, 1989). Mais ainda, tanto o estudo histórico
minucioso das controvérsias ou dos produtos científicos como a descrição
meticulosa do trabalho diário dos investigadores não cessam de alargar o fosso
entre a ciência tal como ela se faz e tal como ela se diz, entre a realidade da
sua inscrição concreta e a idealização da sua representação normativa. A
concepção segundo a qual a validade de um enunciado pode ser reduzida à
especificidade das suas condições de enunciação parece, assim, graças ao
programa forte e aos seus derivados, passar do estatuto de especulação
filosófica ao de observação empírica. Isto, aliás, na sua versão já não
estritamente mecanicista, mas construtivista (Latour, 1984), reencontra as
seduções do estilo pós-modernista.
A crítica ao relativismo epistemológico é conduzida, na sociologia
contemporânea, de diversos pontos de vista. Pode ser necessário relembrar,
perante a diversidade dos ataques anti-ciência de que ela é objecto, que um
grande número destes ataques resultam mais de uma caricatura do que de uma
apreciação justa da actividade científica (Collins, 1989). Uma outra via
consiste em ater-se ao próprio fundamento do argumento relativista, quer dizer
à redução da validade de uma proposição ao seu contexto de enunciação. Isto
implica duas denegações que o relativismo deveria ser capaz de provar: a do
carácter universal dos princípios lógicos, e especificamente do princípio da
não-contradição, pedra de toque da inteligibilidade enquanto tal; e a da
possibilidade de translação bem sucedida do significado de conceitos ou de
sistemas de conceitos (Archer, 1987, 1991). Apoiando-se em exemplos tirados da
antropologia, Steven Lukes (1984) ou Margaret Archer chegam à conclusão que,
inversamente, a universalidade dos princípios lógicos e a possibilidade de
translação dos significados de um contexto para outro são condições de
exercício do pensamento. Pode-se igualmente sublinhar o dilema lógico em que se
envolve o relativismo, cuja posição ou é ela própria universal, o que o nega,
ou é relativa, o que o nega na mesma (Berthelot, 1996)!
Numa perspectiva inscrita sobretudo na sociologia do conhecimento, Raymond
Boudon relembra que, sendo a ciência ao mesmo tempo contextualizada e produtora
de proposições universais, a verdadeira questão é a de saber porque é que os
partidários de cada campo se deixam persuadir por soluções absolutizantes ( ) e
porque é que a solução sociologista é hoje em dia dominante (Boudon, 1994:
32). Numa espécie de inversão, simétrica à operada pela nova sociologia da
ciência a propósito das práticas científicas, o autor coloca sob interrogação
as razões da adesão aos pressupostos relativistas. O mecanismo da adesão
reenvia para um modelo lógico evidenciado por Simmel, modelo que consiste em
retirar de premissas válidas ou aceitáveis uma conclusão falsa, devido à
intervenção implícita de enunciados não especificados. É o que se passa com o
trilema de Munchausen, aduzido por Hans Albert, no qual se pretende que
nenhuma proposição dedutiva pode ser fundamentada em definitivo, o que pode
conduzir tanto a uma conclusão racionalista de tipo popperiano como a uma
conclusão relativista. A diferença estará em critérios implícitos, os quais,
para uma posição relativista, serão afinal os de que uma teoria só pode ser
dita objectiva se puder ser definitivamente fundada, sendo que, em caso
contrário, qualquer adesão a ela releva necessariamente da crença (Boudon,
1995a: 509-511). A escolha desta conclusão relativista em vez da conclusão
racionalista terá a ver, em última análise, com o contexto global, céptico e
niilista, que a torna mais credível (Boudon, 1995b).
Assim, os debates sobre a internacionalização e a indigenização, sobre o
racionalismo e o relativismo, associam aspectos epistemológicos e aspectos
contextuais: a tese da indigenização encontra pontos de apoio fortes na crítica
ao universalismo e ao racionalismo que lhe está na base; a adesão a uma posição
relativista, ao invés, vai buscar paradoxalmente argumento e credibilidade ao
sucesso das próprias ciências sociais, à contribuição destas para o
reconhecimento da diversidade cultural e à legitimidade que elas conferem às
reivindicações de grupos minoritários ou dominados. Podemos pois perguntar-nos
se, endurecendo posições, reduzindo-as a disjunções estritas, a sociologia não
estará a submeter-se à sobredeterminação do seu espaço epistémico por conflitos
que lhe são exteriores. Mais precisamente, não aceita ela assim uma leitura
bipolar de uma realidade muito mais complexa e matizada, em que a questão
central não é deitar às urtigas a finalidade inicial definida há um século mas
repensá-la à luz das evoluções ulteriores? É esta, com efeito, a via que segue,
nos debates precedentes, um conjunto de autores, rejeitando as oposições
biunívocas a favor de um paradigma pluralista (Oommen, 1988).
Pluralismo e racionalismo
O termo pluralismo é por vezes associado ao de relativismo. Pode efectivamente
ser assim quando o pluralismo exprime uma reivindicação defendendo a
relatividade dos pontos de vista para justificar a pluralidade destes. Em
contrapartida, o termo pode designar igualmente o reconhecimento - a um nível
de elaboração intermédio, o das teorias e dos programas - de uma pluralidade de
construções, diferentes na sua orientação específica, mas reclamando-se de uma
referência comum aos princípios racionais que regem a actividade de
conhecimento. Este pluralismo é uma das características fundamentais das
ciências sociais. É igualmente um resultado da sua história. E, hoje, as
ciências sociais devem assumir a tarefa de lhe analisar as formas e de lhe
pensar os fundamentos.
Esta questão é para a sociologia, mais uma vez, relativamente nova. É uma
questão que transborda as grandes oposições clássicas entre positivismo ou
sociologia compreensiva, individualismo ou holismo, as quais podem aparecer
como redes de malha demasiado larga que deixam passar a especificidade de
abordagens significativamente distintas. Os desenvolvimentos, ao longo do
século XX, de escolas e correntes que se cristalizam para melhor se
distinguirem entre si mostram uma multiplicação e um pulular que alguns não
hesitam em analisar em termos de seitas (Gareau, 1985) e que recolocam de um
novo modo a questão da finalidade fundamental da sociologia. Se a hora já não é
de combates fundadores, se a sociologia é uma disciplina académica instalada
tendo lugar assente no mundo inteiro, poder-se-á atribuir algum crédito a uma
ciência assim tão dividida e estilhaçada? Sabe-se o que a referência a Kuhn e a
utilização imoderada do termo paradigma fizeram para clarificar esta
situação: se o que caracteriza a ciência normal é a unidade paradigmática, se
dois paradigmas são incomensuráveis, então a sociologia, multiplicando à
vontade os paradigmas, seria, de algum modo, uma sub-ciência ao quadrado! Visão
apenas ligeiramente caricatural, a crer em Giordano Busino que fala, de maneira
mais comedida, de uma ciência doente (Busino, 1993), estigmatizando uma
comunidade sociológica fragmentada (Busino, 1993: 10). Visão esta que poderia
ir buscar argumentos à incapacidade da sociologia em dar de si própria uma face
mais unificada, incluindo nos seus melhores tratados, obrigados quer a assumir
essa pluralidade (Bottomore e Nisbet, 1978), quer a reduzi-la a favor de uma
orientação particular (Boudon, 1992), quer, ainda, a postular-lhe a
reunificação no seio de uma matriz disciplinar única (Wallace, 1988).
A novidade deste desafio é que ele já não confronta o projecto de
cientificidade da sociologia com uma petição de princípio, mesmo se alicerçada
na mais rigorosa reflexão epistemológica, como nos casos de Durkheim e de
Weber, mas com uma avaliação do existente. A sociologia está a cumprir o seu
contrato? As suas turbulências e as suas disputas de superfície, não passarão
elas de epifenómenos mascarando avanços reais (Collins, 1989), ou constituirão
divisões inultrapassáveis, comprometendo irremediavelmente o seu projecto
fundamental? A dificuldade na resposta a estas questões está em que, na
ausência de observadores neutros, ela envolve os autores enquanto julgadores e
enquanto partes, podendo tentá-los a limitar a reflexão epistemológica à
justificação da abordagem que propõem. Em vez disso, operar esse diagnóstico
requer uma mudança de sistema de pertinência (Schutz, 1953) ou de nível
argumentativo (Habermas, 1972): implica a passagem de um metadiscurso
justificativo a um metadiscurso analítico. Este último distingue-se muito
claramente de um metadiscurso de fundação, do qual diversas manifestações são
facilmente identificáveis na sociologia contemporânea em autores como Giddens,
Bourdieu, Freitag, Habermas, etc. O seu objecto não é produzir o fundamento
teórico de explicações unitárias, resolvendo as contradições que atravessam o
pensamento sociológico, mas submeter este último à análise epistemológica das
suas formas constitutivas.2 A sociologia francesa recente manifesta um
interesse sustentado por esta ordem de questões. As respostas que nela
encontramos envolvem uma visão e uma avaliação contrastadas mas renovadas da
capacidade da sociologia para estabelecer articulações entre a pluralidade de
abordagens e o objectivo da cientificidade.
Num texto escrito por ocasião do aparecimento da obra de Henri Mendras, Comment
Devenir Sociologue, Raymond Boudon (1996) exprime o seu desacordo relativamente
ao niilismo de cátedra que percorre o livro. Vê nele mais uma expressão do
cepticismo contemporâneo já denunciado anteriormente (Boudon, 1994, 1995a e
1995b). Opõe-lhe, pelo contrário, a tese de que existe no magma das ciências
sociais uma corrente científica orientada para a produção de um autêntico
saber (Boudon, 1996: 58). Essa corrente é composta por teorias de diversos
níveis (A, B, C), constituindo uma arquitectura conforme às exigências de
cientificidade em vigor em todas as disciplinas. No escalão inferior (A), uma
teoria é um conjunto proposicional dando conta de um enigma: é uma teoria que
deve preencher o duplo critério da congruência das suas proposições empíricas
com todos os factos disponíveis e de aceitabilidade das suas proposições não
empíricas. Satisfazem tal exigência tanto as teorias clássicas da física como
um grande número de teorias sociológicas que se propõem resolver enigmas sócio-
históricos ou sociológicos: porque é que, contrariamente à tese do desencanto
do mundo, é nos Estados Unidos da América, o país mais moderno, que se mantém o
mais alto nível de religiosidade? Porque é que os pintores holandeses do século
XVII pintavam naturezas mortas em profusão? etc. (Boudon, 1996: 61). A um
segundo nível (B), existem teorias que explicam fenómenos heteróclitos. Um
mesmo modelo pode ser aplicado a uma série de fenómenos independentes uns dos
outros: é o caso do modelo proposto por Olson para dar conta de comportamentos
paradoxais ou o dos efeitos perversos para dar conta das consequências não
desejadas. A um terceiro nível (C), por fim, mais perto do que se poderia
chamar um paradigma, situam-se teorias de um nível mais elevado de abstracção,
susceptíveis de aplicação a múltiplos casos, como a teoria da acção racional ou
o funcionalismo. No próprio interior deste domínio é possível construir teorias
ainda mais englobantes, como a teoria cognitivista das razões justificativas.
A avaliação proposta por Raymond Boudon converge, pois, no fundo, com a que se
pode encontrar nos diversos autores que prosseguem o objectivo de
cientificidade da sociologia. Tem, além do mais, o duplo interesse de tomar a
forma de um balanço do existente e de pensar a pluralidade sob os auspícios de
uma hierarquia de níveis de aplicação.
Se bem que de inspiração diferente, o trabalho de J.-C. Passeron (1991, 1994)
permite comparações interessantes com esta concepção. A diferença resulta de
uma leitura estrita do popperianismo que, excluindo a sociologia do quadro da
falsificabilidade popperiana, torna nela muito problemática qualquer tentativa
de cumulatividade. O núcleo da argumentação reside na diferença estabelecida
por Popper entre dois tipos de universalidade: a universalidade lógica, em que
uma proposição p é tida por verdadeira quaisquer que sejam as variações de
condições espaciais e temporais; e a universalidade numérica, em que uma mesma
proposição p só é válida num certo contexto espaciotemporal determinado.
Resulta desta distinção que só os enunciados da primeira categoria
correspondem às exigências lógicas da mecânica falsificadora (Passeron, 1991:
378) e que por definição os enunciados sociológicos pertencem à segunda
categoria. Tirando sistematicamente as consequências desta situação, J.-C.
Passeron renova a problemática da inscrição da sociologia nas ciências
históricas. Não conclui, recusando o dilema estéril do tudo ou nada
(Passeron, 1994: 78), pela exclusão da sociologia de qualquer espaço de
cientificidade, mas sim pela constituição de um espaço de racionalidade
específico, exterior aos critérios popperianos, estabelecendo os graus de
severidade dos seus modos de protocolização, mas sem jamais poder pretender à
culminância lógica do modus tollens.3 Este espaço de racionalidade pode ser ele
próprio descrito a dois níveis: o da diversidade das teorias empíricas (T2); e
o da unicidade dos princípios que as constituem, precisamente, como teorias
sociológicas. Este segundo nível transempírico, (T1), constitui um índex, no
sentido em que se pode falar em física de índex galilaico. Não é teoria
sociológica, mas sim teoria do conhecimento sociológico. Define o campo de
formulação teórica das T2 e foi à respectiva explicitação que os fundadores da
sociologia consagraram o seu esforço epistemológico. O problema, a partir daí,
é definir para a sociologia um referencial T1 suficientemente aberto para
aceitar a diversidade de teorias T2 que a história da sociologia multiplicou, e
suficientemente estrito para não aceitar uma construção qualquer, não importa
qual, como teoria sociológica. Os quatro princípios definidos por J. -C.
Passeron são discutíveis, nomeadamente a respeito da articulação entre o
postulado da interpretação subjectiva de Weber-Schutz e o princípio
durkheimiano da não transparência.4 O essencial, no entanto, parece-nos situar-
se noutro plano. Reside na afirmação de que o quadro de cientificidade da
sociologia não pode ser definido a priori mas tão-só como resultante de uma
dupla análise, uma análise lógica das modalidades de conhecimento sociológico e
uma análise histórica do que no seu seio é reconhecido valer como ciência.
Diferindo sobre o diagnóstico do regime de cientificidade da sociologia
(popperiano ou não popperiano), Raymond Boudon e Jean-Claude Passeron estão
próximos, em contrapartida, na concepção de uma hierarquia de níveis, a qual
permite subsumir a proliferação de teorias sob a unidade de alguns grandes
paradigmas (as teorias C, em Boudon), eles próprios susceptíveis de inscrição
numa metateoria global (a T1 de J. -C. Passeron).
Um problema, no entanto, é ignorado pelas duas análises. Diz ele respeito à
própria pluralidade das abordagens e dos quadros de análise usados pelas
diversas teorias. Esta pluralidade exprime-se nas designações que a história
das ciências antropossociais multiplica numa espécie de desordem permanente:
funcionalismo, estruturalismo, interaccionismo, construtivismo, etc. Podendo
ser considerados como teorias C na análise de Raymond Boudon, não sendo
especificamente tomados em conta na análise de Jean-Claude Passeron, pode
avaliar-se a importância destes quadros de análise quando se repara que eles,
não só são relativamente independentes das teorias entendidas como sistemas de
conceitos e conjuntos de proposições, mas são susceptíveis de induzir nelas
inflexões e leituras diferentes: por exemplo, o marxismo e a psicanálise, duas
armaduras conceptuais (Valade, 1996: 435) dominantes no século XX, puderam
ser interpretados de um ponto de vista sucessivamente mecanicista,
funcionalista, hermenêutico, estruturalista e até accionalista, sem que os seus
termos fossem modificados. Ora, designando cada um deles programas ou conjuntos
de programas de análise, esses termos tendem a definir abordagens
incomensuráveis entre si, pela própria lógica de uma exposição cujo objectivo
primeiro é fundar a sua pertinência na distinção face a outras. Em sentido
inverso, levámos a cabo a tentativa de uma desconstrução lógica das diversas
abordagens significativas em sociologia (Berthelot, 1990). Tomando como fio
condutor o modelo de inteligibilidade promovido por cada abordagem, chegámos à
construção de uma tabela lógica de seis esquemas, dotados das seguintes
propriedades: especificidade lógica de cada esquema, identificável com uma
forma lógica determinada; passagem possível de um esquema a outro, através de
um jogo de traduções e de neutralizações invalidando a tese da
incomensurabilidade; especificação de cada esquema em programas particulares,
tendo o mesmo núcleo de inteligibilidade fundamental mas separando-se quanto a
axiomas auxiliares; inscrição, enfim, destas diferentes abordagens num espaço
comum mas bidimensional da prova, privilegiando num pólo a pertinência
semântica e no outro a verificação empírica.
Este tipo de análise é completamente congruente com os dois antes apresentados,
de Raymond Boudon e Jean-Claude Passeron: os dois critérios weberianos da
adequação causal e da adequação significativa (Weber, 1904-1917, 1922) definem
uma teoria científica para Raymond Boudon, podem ser inscritos, de forma algo
mais matizada no que toca ao segundo, nas T1 de Jean-Claude Passeron, delimitam
enfim o espaço da prova no nosso caso. A articulação, nas teorias T2 de Jean-
Claude Passeron, dos diversos níveis distinguidos por Raymond Boudon é paralela
ao jogo dos esquemas e da sua especificação em programas na análise que
propusemos. Esta congruência, para lá das diferenças que separam os autores,
permite responder à questão inicial: o pluralismo de facto que a sociologia
revela não fragiliza as suas pretensões iniciais à cientificidade. Em
contrapartida, coloca três problemas: o da depuração das diversas abordagens da
sua ganga terminológica e da sua retórica de exposição que, com demasiada
frequência, tendem a transformar os seus discursos em máquinas de guerra; o da
determinação de critérios que permitam, para diversas teorias relevando de
abordagens diferentes, operar um confronto regulado conducente a uma espécie de
balanço cognitivo, destacando os contributos e as falhas de cada uma e
incentivando a ultrapassar estas últimas; enfim, o da determinação do modo de
cientificidade próprio da sociologia. Sobre este ponto, a referência popperiana
estabelece uma linha de clivagem determinante entre duas apreensões do
racionalismo.
Estas três questões podem resumir-se numa só, tão mais actual quanto se está em
tempo de balanços: de que cumulatividade é capaz a sociologia? A resposta a
esta questão exige, parece-nos, um argumento não só lógico mas histórico.
A dialéctica da pluralização e da redução
As tentativas para reconduzir a diversidade das construções sociológicas a uma
organização lógica subjacente, trate-se de teorias, de paradigmas, de
esquemas de análise ou de programas, chocam frequentemente com o cepticismo
mais ou menos vincado da comunidade sociológica. Esta parece estar sempre em
busca de novos pontos de vista pertinentes e sempre pronta a imputar ao
trabalho de racionalização intenções e efeitos normalizadores. O rótulo de
anarquismo metodológico dado por Feyerabend às suas posições indica como a
assimilação de uma redução analítica a uma imposição arbitrária pode facilmente
ser feita. O debate entre internacionalização e indigenização, qualquer outro
fundamento que tenha, é igualmente uma manifestação deste mecanismo. Ora a
redução analítica inscreve-se numa verdadeira dialéctica histórica em que a
proliferação de novas abordagens, associadas à descoberta de novos enigmas ou
problemas, engendra por sua vez processos de decantação e de filtragem, aos
quais sucedem novas criações e nova fragmentação. O jogo de fertilização
recíproca entre teorias A, B, C evocado por Raymond Boudon é, em simultâneo, um
jogo de decantação histórica. Avançamos a tese de que o estudo deste processo,
mobilizando de maneira positiva a história e a sociologia da ciência, pode
concorrer de forma decisiva para a determinação do regime de cientificidade da
disciplina e esclarecer as modalidades de uma cumulatividade que não pode ser
do mesmo tipo do que a presente nas ciências da natureza.
A memória das disciplinas exerce-se de modo diferente consoante elas sejam
constituídas ou não por teorias matematizadas. No caso das ciências físicas,
por maioria de razão das matemáticas, o passado inscreve-se no presente sob a
forma de tradução: a cada passo da disciplina, a linguagem mais contemporânea
recupera e depura os resultados anteriores inscrevendo-os numa sistematicidade
ao mesmo tempo mais ampla e mais aguda. O passado disciplinar, não na
especificidade da sua historicidade o contexto de produção do resultado ,
mas na universalidade dialéctica porque sem cessar recolocada sob análise
dos conteúdos racionais elaborados, está sempre activo no presente. Inscreve-se
na linguagem, nos procedimentos de cálculo, nos instrumentos de experimentação.
Incorpora-se no horizonte de trabalho actual de cada um. Nas ciências humanas,
as coisas passam-se de maneira muito diferente. A língua natural que elas usam
impossibilita que, na utilização deste ou daquele conceito, se leiam
imediatamente os estratos sucessivos da sua elaboração histórica. Estes não
resultam duma depuração lenta, de uma percolação (Serres, 1993), como nas
matemáticas, mas do jogo indefinido das denotações e das conotações. A memória
disciplinar exerce-se então, não de maneira imediata e incorporada, mas de modo
disjunto, por lembranças e referências. Disso é caso exemplar a sociologia, de
que se pode mostrar, em comparação com a antropologia, a história ou a
economia, que é a menos sujeita a constrangimentos textuais fortes (Berthelot,
1996). Acumulação recorrente e ritual de regressos dispersos e por vezes
interessados ao passado, mais numa preocupação de legitimação do que de
análise, assim parece funcionar a memória sociológica, a qual importa
distinguir de todo em todo da história da sociologia.
Este funcionamento da memória pode também concorrer para uma desvalorização
radical da sociologia. Os positivistas estritos verão nele a marca
incontestável da incoerência epistémica da disciplina. Os relativistas poderão
facilmente evocar essa multiplicidade irredutível dos pontos de vista e das
referências; os mais irónicos farão mesmo notar que qualquer indigenização
constitui uma espécie de relativismo ao quadrado, pelo cruzamento de
referências locais com referências internacionais, elas próprias seleccionadas
segundo o jogo das áreas de influência linguísticas. A corrente científica
evocada por Raymond Boudon para refutar o cepticismo envolvente poderá nesse
sentido aparecer bem estreita e frágil.
Ora, pelo contrário, acontece que, se o funcionamento quotidiano da memória
disciplinar no trabalho habitual dos sociólogos pode parecer levar água ao
moinho relativista, a concretização de uma história racional da disciplina
recusa-o tão fortemente quanto a análise lógica referida na parte precedente.
A história das disciplinas tem o mérito de constituir as respectivas memórias
como um misto irredutível de preservação e de idealização do passado. Tem,
aliás, a vantagem decisiva de reduzir a distância entre as diversas ciências,
de pôr em evidência os mecanismos comuns da sua constituição, de sugerir
aproximações inéditas. Assim, se as ciências matematizadas e as próprias
matemáticas podem sugerir, em virtude dos seus processos de incorporação e de
reescrita permanente, a ideia de um desenvolvimento linear, mesmo que quebrado
por saltos que constituem mudanças de epistemologia (Bachelard, 1934) ou de
paradigma (Kuhn, 1962), a sua história, ao invés, revela a textura espessa de
continuidades e descontinuidades, de recorrências e reversões, de
complexificações e depurações, pelas quais, pelo menos em geometria, se
constrói um universal (Serres, 1993).
A sociologia é susceptível do mesmo esclarecimento pela história. Esta permite,
ao mesmo tempo, complexificar cada momento, revelar-lhe as determinantes
múltiplas, sociais, culturais, políticas, científicas, institucionais, até
mesmo biográficas (Fournier, 1994), e captar as filiações profundas, a
depuração progressiva de grandes tendências explicativas ou de grandes pontos
de vista analíticos. É possível assim, cem anos depois das Règles de la Méthode
Sociologique, fazer o balanço duma recepção contrastada do texto (Borlandi e
Muchielli, 1996; Cuin, 1997) e localizar, através das conjunturas sucessivas da
sua leitura, a libertação, relativamente à ganga terminológica do fim do século
XIX que o envolvia, do programa causalista e experimentalista em sociologia
(Berthelot, 1995). Três mecanismos entrelaçados, característicos da
constituição da sociologia como ciência ao longo do tempo, podem assim ser
identificados.
O primeiro é um mecanismo de proliferação-redução: cada conjuntura da história
da sociologia aparece sempre, à leitura histórica, como de uma complexidade
infinitamente maior do que aquilo de que a memória da disciplina tinha
conservado traços. O grupo da Année Sociologique não é um conjunto de antigos
discípulos às ordens do mestre. Junta um complexo de individualidades
diferentes, inscritas é certo em redes de proximidade e transacção (Besnard,
1979), mas em que a adesão a um projecto colectivo passa pela complexidade
singular das convicções e pela troca reiterada de argumentos (Vogt, 1979;
Berthelot, 1995). Se a nascente sociologia alemã teve dificuldades em se
constituir como disciplina autónoma devido às suas raízes intelectuais, soube
rapidamente, graças à fundação da Deutsche Gesellschaft fur Soziologie, em
1909, e à instituição regular das Soziologentagen, constituir um meio de trocas
particularmente rico e diversificado (Käsler, 1984). O conflito entre os
qualitativistas da escola de Chicago e os operacionalistas da escola de
Columbia que, entre as duas guerras, pôs em crise a American Association of
Sociology, esteve longe de opor frontalmente dois departamentos rigidificados
no seu antagonismo. A escola de Chicago manifestou, pelo contrário, tanto
institucionalmente como cientificamente, uma preocupação permanente de abertura
à diversidade dos métodos (Bulmer, 1984). Do mesmo modo, as conexões entre
quadro teórico e técnica de pesquisa, com frequência reduzidas de maneira
apressada a uma espécie de implicação lógica, revelam-se no plano histórico de
uma complexidade bastante maior, como mostra Jennifer Platt para o
funcionalismo e o inquérito standard (1986). Perante esta multiplicidade de
rostos que a sociologia sempre apresenta, torna-se possível compreender o papel
da redução analítica das diferenças representado pelas diversas grandes obras
teóricas ou programáticas que entrelaçam a sua história. Pode defender-se a
tese de que elas ocupam, estruturalmente, o mesmo lugar que as obras
equivalentes nas disciplinas das ciências da natureza. O seu efeito, no
entanto, é diferente. Enquanto que, nestas últimas, definem um novo patamar de
abstracção e de recomposição linguística, em sociologia apenas constituem um
momento de fixação e de cristalização, num processo ininterrupto de
diferenciação.
O mecanismo de proliferação-redução, qualquer que seja a força das obras que, a
dada altura do desenvolvimento da disciplina, entendem canalisá-lo e controlá-
lo, aparece sempre, simultaneamente, como um mecanismo de redução-proliferação:
a delimitação provisória do que pode contar, não como teoria privilegiada, mas
como paradigma, no sentido que lhe é dado por Raymond Boudon na tipologia que
propõe, não leva apenas a precisar e a fundamentar os quadros de análise de um
programa existindo anteriormente em estado disperso. Torna possível ao mesmo
tempo a contestação, pondo a nu os postulados em que se sustenta. Se, no
seguimento de Lakatos, considerarmos que as grandes vias de análise sociológica
constituem programas e se, na continuidade do que foi lembrado acima,
remetermos estes para grandes esquemas analíticos, então o jogo de protecção de
um programa pela cortina de hipóteses auxiliares é tanto menos eficaz em
sociologia quanto o veredicto da experiência é nela mais ambíguo. Uma obra
forte fixa e depura um programa. Não reduz a diversidade programática, mas
desloca o palco de confrontação. Pode-se encontrar um exemplo recente no debate
Coleman-Sewell sobre as relações entre os níveis micro e macro na explicação
sociológica (Coleman, 1986, 1988; Sewell, 1988).
Esta persistência da pluralidade, inscrita numa verdadeira dialéctica da
pluralização e da redução, pode dar de novo alimento ao relativismo se nos
contentarmos em estabelecer tal constatação ou em fazer o respectivo
inventário. Defendemos, em contrapartida, que essa persistência manifesta em
profundidade um mecanismo de decantação a longo prazo do núcleo racional das
diversas abordagens sociológicas, homólogo ao mecanismo de filtragem e de
percolação de que fala Michel Serres a propósito da geometria. Através da
diversidade das ocorrências singulares e da multiplicação dos terrenos de
análise, por trás das oposições entre um universalismo sempre provisório e as
situações inscritas na singularidade de uma história e de uma cultura, tornam-
se progressivamente visíveis as articulações e as codificações conceptuais para
aquém das quais já não é possível retroceder: do organicismo proliferante no
século XIX ao paradigma funcional estabelecido por Merton, do causalismo ainda
impregnado de metafísica de Durkheim aos modelos da análise causal moderna, do
individualismo metodológico do início do século XX à sua tematização por
Coleman ou Boudon, realiza-se um verdadeiro progresso de conhecimento.
É certo que este não tem a amplitude dos grandes êxitos científicos míticos.
Mas não chegará para provar que, um século depois, a sociologia se ateve, pelo
menos no essencial, ao seu contrato: construir um projecto de cientificidade de
longa duração sujeito à verificação do real?
Conclusão
Esta construção é, afinal, um teste à própria cientificidade. As diversas
discussões de que nos fizemos eco são por vezes marcadas pelo primado de um
extremismo disjuntivo pronto a recusar a validade de uma construção ou de uma
proposição em nome de um princípio implícito de tudo ou nada (Boudon, 1995a).
Este princípio pode, no caso de certas reivindicações identitárias, ser
instrumento de boa causa e justificar-se. Está-se então na ordem do debate
político, não na da avaliação epistemológica. Esta é ao mesmo tempo mais
rigorosa e mais subtil. Requer que seja delimitado o regime de conhecimento
próprio de uma disciplina e que seja compreendida a dialéctica histórica da
constituição do racional no seu seio. Tal como os trabalhos fundamentais em
história das ciêncas de Koyré, de Bachelard, de Blanché ou de Holton não
invalidaram a natureza dos conhecimentos da física clássica ao revelarem o seu
pano de fundo metafísico ou simbólico, também o pluralismo recorrente da
sociologia não é argumento para qualquer relativismo que seja. Precisa, pelo
contrário, de ser descrito e analisado tanto pelos meios da investigação
histórica como da análise lógica a fim de que seja posto em evidência o regime
de cientificidade da sociologia. A oposição entre popperianismo e não-
popperianismo, por mais argumentada que seja, não nos parece pertinente na
medida em que postula que o popperianismo estrito constitui uma descrição
satisfatória da actividade das ciências naturais, o que está longe de ser
unanimemente aceite (Lakatos, 1970; Robert, 1993). Ao invés, conceber a
sociologia como um esforço de descrição reflectida do mundo social, de
resolução de enigmas, de elucidação de mecanismos constitutivos, de aferição de
esquemas interpretativos, permite definir um vector epistemológico comum,
irredutível sem dúvida a uma unificação teórica, mas suficiente para
circunscrever um espaço de problematização partilhado. Aprofundar esse espaço
pela depuração e pela comparação regulada dos grandes programas da sociologia,
favorecer os modos de cumulatividade crítica procedendo, não por simples adição
ou integração, mas por indexação clara dos resultados a referenciais
confrontáveis, constituem sem dúvida tarefas comuns que cem anos de sociologia
legam àqueles que, actualmente, continuam a reclamar-se do objectivo por ela
visado desde início.
[Tradução de António Firmino da Costa]
Notas
1 Uma primeira versão deste artigo foi publicada, em francês, na revista
Sociologie et Sociétés, XXX (1), 1998.
2 Estas contradições engendram, a par de obras de fundação, os seus próprios
debates. Encontram-se disso ecos nítidos na literatura dos últimos dez anos,
por exemplo a propósito dos níveis pertinentes da explicação sociológica e da
relação entre micro e macro (Coleman, 1986; Sewell, 1988), ou a propósito das
relações entre actores e estruturas, por exemplo no debate estabelecido ao
longo dos números da Revue Suisse de Sociologie publicados entre 1992, 18 (1) e
1994, 20 (2).
3 O modus tollens, quer dizer a lei lógica segundo a qual de p®q, só a
inferência ¬q®¬ qé verdadeira, é o núcleo da tese popperiana do poder
exclusivamente refutativo da experiência.
4 Princípios enunciados desde Le Métier de Sociologue, de construção do
objecto, de não transparência, de explicação do social pelo social, ao qual se
junta um princípio de pobreza do poder de organização sintética próprio a
qualquer teoria sociológica (Bourdieu, Chamboredon e Passeron, 1994, 1970:
115).