Home   |   Structure   |   Research   |   Resources   |   Members   |   Training   |   Activities   |   Contact

EN | PT

EuPTHUHu0873-65292001000200006

EuPTHUHu0873-65292001000200006

variedadeEu
ano2001
fonteScielo

O script do Java parece estar desligado, ou então houve um erro de comunicação. Ligue o script do Java para mais opções de representação.

A música e o processo de identificação dos jovens negros portugueses

A música e o processo de identificação: a performance identitária A relação entre a música e o "processo de identificação", como o define René Gallissot, estabelece-se em duas dimensões.1 A primeira, através da metáfora do walk-man. Iain Chambers (1994) compara as narrativas de vida às caminhadas do walkman, walk-man, walking-man. Nesta óptica, as referências estéticas, as variantes, partes compósitas do processo de identificação, são os sons, as músicas que compõem a banda sonora portátil, de bolso (portable soundtrack) do indivíduo, e que, em última instância, o definem. A escolha da banda sonora, assim como a experiência do walk-mané sobremaneira uma experiência privada (intensively private experience) em relação ao mundo que o rodeia, sem deixar de delimitar este último, através da presença do corpo e das suas movimentações, isto é, através daquilo que poderíamos chamar as linhas de segmentaridade do walk-man. Estas linhas definiriam os contornos do corpo na própria experiência de walking-man, e, simultaneamente, as "linhas de desterritorialização" (Deleuze, e Guattari, 1980), tornando possível a extensão da experiência, da escolha das narrativas "portáteis", para o mundo, o ambiente, que as rodeia. O corpo reafirma o processo de identificação através de escolhas estéticas, coladas e interligadas circunstancialmente umas às outras (mutable collage), para dar o seu sentido às narrativas, e manifesta a presença participação destas narrativas no ambiente que circunda o próprio corpo (soundscape). Finalmente, o corpo-em- trânsito, definindo as linhas de desterritorialização fuga e de segmentaridade do próprio processo de identificação, ele também, e consequentemente, em movimento, em diáspora (diasporic identity). Diáspora, que permite a definição dos contornos identitários sob a forma de um design, que se evidencia por um conjunto intermutável de narrativas de vida e/ou de vidas possíveis ou ainda, como refere Iain Chambers (1994), por um conjunto de "micronarrativas".

Assim, a música define o território do corpo, numa intensa experiência pessoal privada, pela escolha particular de uma colagem mutável de sons referências/ variantes formando, em síntese, a própria banda sonora identificação de bolso, portátil, móvel, em diáspora.

A segunda dimensão remete para o facto de essa escolha particular/pessoal de uma banda sonora de bolso definir o "outro espaço", o espaço dos "outros ausentes", a outra-realidade, o soundscape: espaço da comunidade de consumidores no seu todo, onde, por último, se processa a identificação, ou a experiência de uma identidade musical, enquanto experiência de uma identidade estética, que remete para a escolha e para o movimento: "( ) um ir sendo e não um ser"(Frith, 1997: 109). Experiência identitária musical em movimento, em constante transformação, que alude à performance, à estória e à estética, no sentido em que se relaciona com o imaginário, com uma imagética visual. A identidade estética, esse imagined self, e simultaneamente imagined self of possible lives, ou ainda self-in- process (idem: 109), fazendo confundir-se "o que se é" e "o que se quer ser", "o ser negro em geral" e "o ser negro português". O soundscape é, em suma, um mediascape, um conjunto de referências estéticas musicais cuja reapresentação se efectua pela validação transnacional dos seus significados: estético, identitário, colectivo. Como a etnicidade, a música transfigura-se na sua imagética reapresentada, nas formas desterritorializadas que assumem as suas reapresentações estéticas; a música é, então e também, uma realidade endótica, que se reapresenta o exótico, o passado-presente, por forma a tornar válida a sua mutação enquanto metáfora performativa narrativa da identidade.

Neste sentido, e debruçando-nos sobre a forma como Simon Frith (1997) efectua a ligação entre os conceitos de música e de identidade, o enfoque está colocado no movimento e na problemática do sentido do espaço (de identificação).

Deste modo, como salienta o referido autor: "O problema pós-moderno é o nosso medo do sentido do lugar ( ) o que está em jogo nesse tipo de discussão é o problema do processo, da nossa experiência do movimento entre posições" (idem: 110). A metáfora do walk-man, experiência de identificação gerada numa tensão entre a presença do corpo o eu e o soundscape o dehors, os outros, os outros ausentes serve para validar a hipótese de que a música a prática de relacionamento com a música no sentido lato é a chave para entender os contornos do processo de identificação. Com efeito, a música possibilita a construção das noções do eu e dos outros, no contexto de uma performanceidentitária, que se serve das referências/variantes como elementos estéticos desterritorializados e redesterritorializáveis. Neste sentido, a música é uma prática esteticizada que não define o processo de identificação, mas que, ao invés, está contida neste último; articulada com as demais práticas que remetem para os códigos éticos e para as ideologias sociais (ibidem), e que, por fim, situa o eu no dehors e vice-versa. O carácter estético da prática consumo/ experiência musical não remete para a realidade, como se esta estivesse num outro plano de análise. Pelo contrário, a esteticização da prática musical é a própria ritualização dessa realidade a comunidade de consumidores no seu todo, o soundscape contida na própria prática. Por outras palavras, a actividade (acto: consumo, etc.) musical ritualiza a identidade ou o próprio processo de identificação.

A música coloca então, segundo Simon Frith, a questão dos espaços de identificação, através da problemática da delimitação entre o individual e o colectivo, que se traduz na problemática da escolha individual face aos constrangimentos de uma lógica colectiva familiar, que o autor chama "lógica cultural" (cultural logic): "( ) Existe um mistério no que diz respeito aos nossos próprios gostos musicais pessoais ( ) alguém terá ditado as convenções" (1997: 121). Isto é, como é que se define o gosto musical para um indivíduo, previamente sujeito a uma escolha musical que não fez, mas que lhe foi transmitida através do seu contexto familiar, como se essa escolha simbolizasse, ou ritualizasse, a experiência imediata de uma consciência de pertença comunitária, consciência de pertença de we-group etnicizado? No entanto, a questão não está na articulação entre o "individual" e o "colectivo", como Simon Frith a entende. Outra tensão é gerada entre um individual e um colectivo, ambos derivados da permuta entre a problemática anterior e uma outra, uma "nova" problemática. Essa mesmo vem dar ênfase ao sentido do colectivo não etnicizante, mas enquanto referência ou variante estética, porque interpenetrada de significado imagético através da sua presença no mediascape. O colectivo, cedendo o seu lugar à sua própria reapresentação, transforma-se numa referência esteticizada e assume o carácter de referência, deixando de lado o seu potencial de pertença. A "lógica cultural" permuta, assim, com um novo significado de referência a um colectivo. Esse significado assume os contornos de uma escolha de narrativa para um "colectivo" esteticizado. Com isto, e voltanto a Simon Frith, não o individual como o colectivo são matérias de escolhas que remetem para reapresentações do valor estético, inclusive da prática musical.

A identidade, ou o processo de identificação é então esta (micro)narrativa, que I. Chambers (1994) sob a forma de banda sonora, microcontextualizando o indivíduo e o soundscape colocados num mesmo plano, gerando a tensão que gera a própria narrativa. Esta é a narrativa de bolso, o processo de identificação portátil. Para Simon Frith (1997), o equilíbrio entre o colectivo e o individual gera uma coerência pessoal, que não é mais, se pensarmos no colectivo enquanto referência transesteticizada, que o exacto ponto crítico o hífen entre "o que se é" e "o que se quer ser", o ponto de convergência/confluência de todas as identificações por referência, ou de todas as "vozes artificiais" (Frith, 1997: 122), que determinam, em última instância, o processo de identificação, o play-acting identitário: "( ) a unidade da vida através de uma crença recorrente na coerência pessoal" (idem).

A correspondência entre a identidade, ou o processo de identificação, e as suas formas narrativas, estabelece-se com a ficção das identificações por referência, reapresentadas nas estórias de vida, tornando familiares afinidades inventadas, e tornando circunstanciais proximidades derivadas de "lógicas culturais", como as define Simon Frith. Esta ficção da identidade ganha, através da prática musical, os contornos de um exercício de construção identitária; delimita-se um percurso do consumo de música, onde estão projectados no quotidiano, sob a forma de uma performancede ventríloquo blackface performer (ibidem) os encontros ficcionados entre "o que se é" e "o que se quer ser", os encontros entre "o ser negro" e "o ser português", entre "o ser negro português" e "o ser negro em geral".

A música africana: world music e diáspora digital A relação entre a prática musical o exercício do consumo de música e o processo de identificação dos jovens negros portugueses passa, então, pelo desempenho da tal performancede ventríloquo, que promove a reapresentação no quotidiano de estéticas transestéticas vinculadas ao mediascape, que, pela via da escolha, facultam a posse de uma identificação de bolso, intercambiável, portátil, do eu e dos outros, individual e colectiva. Dessas estéticas, cuja reapresentação por parte dos jovens negros portugueses passa pela prática do consumo de música, duas se destacam: uma que alude ao espaço de reapresentação de uma imagética "africana", outra que remete para uma imagética "negra". Assim, das estéticas africana e negra sobressaem as músicas africana e negra; opções, escolhas, derivadas de transestéticas vinculadas aos mediascape/soundscapeque os jovens negros portugueses reapresentam. Importa, portanto, clarificar o que se entende por música africana e música negra, e o que, em termos estéticos/transestéticos, estas opções e escolhas têm de "valor de propriedade" (Deleuze e Guattari, 1980) ou de valor de identificação para estes últimos.

A música africana, aqui entendida enquanto "ritmo local", seguindo Vladimir Monteiro (1998), remete para estilos tais como a morna, a coladera, o funaná, assim como para estilos tais como a kizomba, o kuduro, e o zouk. Estes estilos, prossegue ainda Vladimir Monteiro, manifestam um sentido do local africano através de sons sinónimos de cantos de sofrimento, de esperança, sensuais, satíricos e urbanos, sejam eles cabo-verdianos, se nos referirmos à morna, à coladera, e ao funaná, ou sejam eles angolanos, se nos referirmos à kizomba, ao kuduro e, de certa maneira, ao zouk, embora este último remeta para a kizomba, ela própria uma reapropriação do som zoukdas Antilhas francesas (Guadalupe, Martinica, etc.). Numa abordagem preliminar, estes estilos, inseridos no domínio da "música africana", parecem aludir ao universo da "lógica cultural" de que nos fala Simon Frith (1997): uma música africana que remete para o étnico, naquilo que o étnico tem de pertença, de identificação por pertença de uma consciência intergeracional de grupo étnico we-group partilhável de pais para filhos. A presença da música africana no processo de identificação dos jovens negros portugueses seria a presença de mais um factor de consolidação do "étnico", enquanto "dado natural" ou "activo cultural intelectual", citando, respectivamente, K. Mannheim e W. Ditley (emContador 1998: 58). Estas noções reafirmam, por um lado, a identidade por pertença ao colectivo etnicizado, e reafirmam, por outro, o facto de as referências disponíveis se situarem num território cultural natural com proeminente realce geográfico, classista e etnográfico. Neste sentido, a música africana, enquanto referência ao étnico, viria colocar de novo a análise do processo de identificação dos filhos dos imigrantes africanos por contraponto, ou por mimetismo, em relação às formas de inserção integração, aculturação, aspiração dos próprios pais na sociedade portuguesa.

No entanto, outra análise é possível. A música africana corporiza, por excelência, a etno-referência, a reapresentação imagética da etnicidade, do étnico, que passa pela reapresentação do imagético dado pela inserção dos pais na sociedade portuguesa. Os processos de integração, aculturação e aspiração, vivenciados pelos pais, assim como o ritmo tribal e a cadência repetitiva do fraseado sónico amelódico da música africana, passam para o lado do mediascape, para o lado das referências e variantes ao étnico, disponibilizadas pelo seu conteúdo esteticizado. Isto porque estas referências remetem, por um lado, para um imaginário da diáspora secular africana em direcção ao ocidente, que inclui, num mesmo plano, a migração dos pais, a migração dos conterrâneos dos pais, a exploração da mão-de-obra vinda de África, a escravatura e o próprio tráfico de escravos; e remetem, por outro, para um imaginário que transfigura o mito do eterno retorno em valor ecológico ocidental, ligado ao mito do paraíso perdido.

Neste caso, a música africana ganha contornos de "nova" música africana, e metamorfoseia-se em world music; uma música uma estética ligada ao imaginário ocidental transnacional que propõe uma visão estereotipada dos espaços de novo geograficamente circunscritos de referência, repondo na ordem do dia a questão do equilíbrio entre "centro" e "periferia". Por outras palavras, o imaginário produzido em torno da world music remete para uma world aesthetic, para a recriação de um espaço território etnocêntrico do outro, dos "outros ausentes" incorporados numa periferia de produção cultural musical que se define pelo "autêntico", pelo "exótico", pela "tradição" e "pureza", por contraponto a um centro cultural ocidental "desvirtuado", "desregrado", "endótico" e "contaminado". Com o ressurgimento da questão da bipolarização da produção cultural, dividida pelo tal eixo genético "centro/ periferia", é posta em causa a noção deleuziana de "zonas de vizinhança". Esta reapresentação endótica da noção de espaço do eu, e de espaço do outro, alude não a uma análise psicodramática da noção de hiper- realidade, no sentido em que esta reflecte o esvaziamento dos significados securizantes de distância, genuinidade e unicidade culturais, como também alude à reapresentação do próprio passado no tempo presente, enquanto recriação, reinvenção da ascética nostalgia de um passado não vivido, reinvenção do próprio passado, do outro, isto é, das próprias diferença, genuinidade e unicidade culturais, centrais e periféricas: "( ) a orgia das diferenças tem todas as qualidades de um melodrama, de um psicodrama ( ) simulamos e dramatizamos num acto acrobático a ausência do outro" (Baudrillard, em Erlmann, 1996: 468).

Contudo, a produção desta "nova" diferença, salienta ainda Veir Erlmann (1996), não está mais ligada à noção de que é o próprio sistema que produz a diferença, enquanto antítese dos valores que lhe estão associados.

Neste caso, ao invés, a diferença está contida rizomorficamente no próprio centro, enquanto seu elemento excêntrico. Este elemento, este valor, autoproduz-se por um processo de criação, desterritorialização e reapresentação de novos significados, novas referências, que alimentam a própria noção de diferença, ou seja, que a mantêm "viva". É, portanto, aqui que se enquadra a música africana, ela própria desterritorialização dos seus significados que, por força, a "territorializam" num constantemente novo "autêntico", "genuíno", "puro", "exótico", e "periférico" re-inventados a partir do centro e para o centro: "( ) A world music não é a nova música do ‘non-western world'" (Erlmann, 1996: 475).

No entanto, inevitavelmente, o eixo "centro/periferia" fracturou-se.

A produção dessa nova diferença legitima o etnocentrismo, mas coloca o próprio centro numa espécie de periferia de si próprio; isto é, os anteriores valores que viabilizavam a distância, a unicidade cultural, não estão mais à mercê das relações de proximidade, no uso cómodo e lógico de uma rede de significados dependentes da troca directa. Os novos significados e valores, voltando a Jean Baudrillard (1997), surgem, proliferam, a partir de contingências, de estados de emancipação ocasionais, transitórios, sem o mínimo ponto de ancoragem, isto é, sem território, sem corporização, sem terra-de-origem, sem origem, sem raízes e sem passado de pertença. A produção de uma nova diferença faz apelo a raízes "alugadas" a um passado "de aluguer", de bolso, portátil, e tudo isto em função de um gosto, de escolhas, que reflectem um imaginário mediatizado, flutuante, mas centrípeto: "A world music, neste ponto de vista, parece ser o soundscape de um universo que por detrás de toda essa retórica a propósito das raízes se esqueceu da sua própria génese" (Erlmann, 1996: 475).

Importa, aqui chegados, focar do novo o papel dos média, do mediascape, na produção e na validação dos novos significados da diferença que não são legitimados, como vimos, pelo retorno à dicotomia "centro/periferia".

Isto porque o mediascape desterritorializa o próprio centro e a própria periferia, incorporando estes seus novos sentidos num gosto criado num único e novo centro que, por contingência, também ele deixou de o ser. Por isso, os únicos territórios que subsistem são o mediascapee o corpo lembrando novamente a metáfora do walk-mande Iain Chambers (1994) do novo agente cultural por excelência: o "homem-terminal", ou "teleactor", como o designa Paul Virilio (1995). Assim, apagando-se os significados de "centro" e "periferia", com eles vão também os significados de "emissor" e "receptor", num desaparecimento simulado, imaginado, inventado, que, contudo, volta a colocá- los de novo em acção num terreno, agora, visual, numa paisagem landscape televisiva e colectiva, por isso una, por isso com um novo sentido do eterno.

Um eterno que não tem nada para se reapresentar: "( ) se não houver mais nada para representar, a procura de alguma experiência autêntica com um sentido do verdadeiro transforma-se num empreendimento em vão"(Erlmann, 1996: 481).

A música negra: a negritude acessível a custo moderado A primeira hipótese levantada no que diz respeito à relação entre a música negra e o processo de identificação dos jovens negros, e em particular dos jovens negros portugueses, é a de que a música negra ritualiza, por excelência, a tal transestética negra veiculada pelo mediascapee vinculada ao mesmo. Um ritual com características de autodidactismo popular, atribuindo ao conceito de negritude uma forma outernational, e servindo-se das etnoreferências referências a África, à diáspora africana, ao tráfico de escravos, etc. para vincar o carácter rizomórfico da própria negritude, produzida e espalhando-se desterritorializando-se no "centro", a ocidente, com um discurso pronunciadamente periférico. Contudo, vários autores, nomeadamente Les Back (1996), salientam que a cultura negra, e por conseguinte a música negra, surgem do encontro, da tensão, contingencial entre as noções de tradição, autenticidade e arcaísmo, atribuídas à periferia, e entre a reapresentação destas mesmas noções num espaço de recriação, que se serve, por via da música, da electrónica e das novas tecnologias coisas do "centro" para as reposicionar numa estética/transestética televisiva e colectiva, que perde em africanidade o que ganha em negritude. Assim como a música africana, a música negra promove o mesmo discurso, a mesma estética de world music, erguida com as noções de back to Africa, back to the roots, Motherland, isto é, erguida com noções que remetem para uma esteticização da etnicidade que, não reinterpreta afinidades históricas etnicizadas, como, sobretudo, as inventa, esteticizando-as, inventando o próprio discurso afrocêntrico, contra um ocidente visto como nefasto e "civilizador/colonizador".

Este é, em larga medida, e entre outros, o discurso do estilo musical negro denominado rap. Parte de um mais vasto leque de expressões artísticas plásticas e performativas,2 o rap é a expressão musical por excelência da juventude negra e urbana dos Estados Unidos a partir da década de 70. Acerca do ritmo, quando se fala de rap, argumenta-se com a linearidade e o estilo inconfundivelmente repetitivo e sincopado que o caracteriza, levando a que se teçam paralelismos entre o ritmo tribal da música africana, apelidada de tradicional, e o do rap.

Acerca da prosa e da poesia, imputa-se-lhes ausência de metaforização e bolimia de controvérsia à volta de um desígnio de eterna periferia cultural, cuja voz negra proclama a autenticidade das raízes africanas e o sentido de uma negritude construída bem longe geograficamente de África. Como se a nova ágora das cidades dos Estados Unidos e a partir de meados da década de 80 de uma grande parte das urbes europeias e ocidentais se tivesse transfigurado em block party, num acto ou performanceimprovisada, juntando os dois ícones proeminentes do rap: por um lado, os seus actores disc jockeys, mestres de cerimónia, breakdancers, graffiters e consumidores em geral do estilo musical rap , e por outro, a reapresentação de uma estética urbana e negra que lhe está associada e que se desenvolve na recriação ficção dos mitos das origens da africanidade e da negritude.3 O take offcomercial do rap, indissociável da sua presença no mediascape, marca o reforço do uso popular autodidacta da tecnologia no domínio da produção musical popular, numa amálgama conceptual que junta um certo revivalismo do espírito festivo do be-bop,do R&Be do funk, com as vanguardas estéticas europeias sobretudo alemãs que fazem da electrónica o alicerce das novas linhas de montagem musical. A cadência irreverente da batida ou break beat em parelha com a indolência de uma linha de baixo circular, são o cenário sonoro auspicioso para as guerras de rimas, verdadeiras batalhas vernaculares onde o arrojo da estiga,ou insulto verbal,prevalece em detrimento de um fraseado poético, melódico e metafórico próprio da música pop em geral. O rap é antielíptico porque introduz nas rimas as estórias de vida dos negros do Bronx(Nova Iorque) ou de Watts (Los Angeles), cruzando-as com a distopia legitimada pela ética estética do sonho americano. O rap é, por isso, indissociável dessa tensão entre group established e group outsider, voltando às definições de Norbert Elias (1994).

Consequentemente, o rap apresenta-se enquanto banda sonora, soundscape, dessa tensão.

O rap é parte de uma "nova" urbe, cujos limites extravasam os seus simples contornos geográficos, desterritorializando-se em novas reapropriações das suas estruturas, dos seus espaços, das suas ruas, das suas paredes e muros, dos seus "não-lugares". O rap, enquanto componente do hip-hop, participa na desterritorialização do corpo da urbe, transformando-a, ficcionando-a, identificando-a, num conjunto de não-lugares desterritorializados. O palco do rap é, por excelência, a rua, não-lugar, metáfora ou parábola da desterritorialização do "todo-cidade", onde floresce o calão, novilíngua que corpo aos faits-divers, aos clichés e às estórias quotidianas. Sendo esta novilíngua, ela própria, uma linha de fuga, uma desterritorialização de um conjunto de referências linguísticas inventariadas e reapresentadas. O rap verifica este princípio de heterogeneidade da língua, avançado por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1980); o calão, o crioulo-língua-de-calão, que alguns jovens negros portugueses usam nas canções rapque praticam, participa na sua desterritorialização, na criação das suas linhas línguas de fuga, e, por conseguinte, na validação do rapenquanto forma de expressão artística e performativa de uma negritude ficcionada logo vivida pelos jovens negros portugueses.

Onde situar o rapem crioulo-língua-de-calão produzido e consumido pelos jovens negros portugueses? No espectro da "nova" música africana ou na categoria de rapportuguês negro? O rapem crioulo-língua-de-calão é uma nova desterritorialização da negritude vinculada a uma transestética negra media mediate e esteticizada, num espaço de definição identitário que também abarca as desterritorializações ou as reapresentações de uma certa portugalidade: reapresentações das expressões e formas culturais territorializáveis no espaço da sociedade portuguesa. A essa portugalidade, ficcionada e vivenciada pelos jovens negros portugueses, acrescentam-se as reapresentações da africanidade e, sobretudo, como avança Paul Gilroy (1996), as reapresentações da negritude que perturbam, promovendo a criação das suas linhas de fuga, a definição do sentido do eu sense of self dos jovens negros portugueses. Na prática, e ainda segundo Paul Gilroy, estas reapresentações da negritude definem-se pela manifestação de uma espécie de resposta negra à modernidade, traduzível na legitimação de uma linguagem transestética particular. Linguagem essa que, no caso dos jovens negros portugueses, poder-se-á traduzir na criação e no uso de um crioulo-língua-de- calão, mas também por códigos gestuais e comportamentais específicos, expressos através de uma postura estereotipada do black modernism. Postura ou performance do rapper negro português num cenário prosaico acrioulizado, onde coabitam um quotidiano português e a expressão da opressão secular do povo africano, do povo negro. Posturas estéticas negras exploradas a partir de uma transestética negra que reafirma a negritude esteticizada enquanto "( ) ‘play acting' de uma consciência negra global. ( ) A identidade negra ( ) é vivida como um coerente (senão sempre estável) e experimental sentido do ser"(Gilroy, 1996: 73).

Este é o rap, música negra, seguindo ainda Paul Gilroy, sinómino de blackism, mais do que blackness, no sentido em que o primeiro motiva a construção de um sentido da negritude recortada, "samplada" (de sampling)e que, no exacto ponto onde se situam as suas expressões dominantes e seleccionadas, se cruza com outras expressões dominantes, seleccionadas, apropriadas, reapresentadas. Este entrecruzamento define a tensão, o equilíbrio crítico, onde se joga num novo espaço posicional de identificação, ou third space (Bhaba, emSharma, Hutnyk e Sharma, 1996: 55) identitário, em constante expansão, fuga, das possibilidades de movimentações e conexões entre "o que se é" e "o que se quer ser". Mas onde se joga, também, a constante "digitalização", desterritorialização das estórias particulares de vida dos jovens negros portugueses, "( ) fora de uma experiência particular, de uma cultura particular"(Hall, emSharma, Hutnyk e Sharma, 1996: 41).

Notas 1    O conceito de "processo de identificação", segundo René Gallissot (1987a), vem dar conta da impraticabilidade da plenitude identitária, no caso, por exemplo, dos filhos de imigrantes. Furtando-se à lógica, presente no discurso comum das ciências sociais, do determinismo das expressões culturais dominantes a cultura dos pais e a cultura do país receptor ou de origem dos filhos na elaboração de uma definição operacional de identitade ou identidade étnica, René Gallissot, avança com a necessidade de se evidenciarem outros determinismos. Outros determinismos, ou simulacros de outros referenciais culturais transnacionais, que, no mesmo sentido de os precedentemente citados, vão ser outras tantas referências disponíveis em ordem à elaboração, não de uma noção de identidade stricto sensu, mas de uma matriz de possibilidades de modulação dos próprios referenciais culturais e, por conseguinte, de modulação do processo de identificação dos filhos dos imigrantes.

2    Como sejam o break dance, a dança performativa (acrobática) do ritmo sónico sincopado ou break beat imposto pelo rap; ou o graffiti, expressão artística e plástica fazendo uso de sprays para, nos suportes mais variados e com técnicas, regras e hierarquias próprias, definir a expressão plástica por excelência de todo o movimento juvenil, urbano, artístico e performativo denominado hip-hop. O hip-hopabarca, portanto, os componentes citados, a saber: o estilo musical rap, que se desdobra em duas dimensões, o DJing ou a prática de manipulação sonora através do uso de gira-discos e, mais tarde, do sampler e do sequenciador e o MCing (MC mestre de cerimónias), ou a prática de introduzir a prosa e a poesia amplificada por um microfone nos ritmos do rap.

E, finalmente, obreak dance e o graffiti. Veja-se a este propósito: Contador e Ferreira, 1997; Rose, 1994.

3    A block party designa a festa ilegal, improvisada num bairro cercado para o efeito. Estas festas marcam o início do rap, porque se juntavam osDJe MCque viriam a fazer história deste estilo musical. Para além destes actores da cena hip-hop, juntavam-se-lhes os breakdancers em grupos, ou crews. Movidos por uma invariável e necessária rivalidade, os breakdancers desafiam-se em figuras e estilos acrobáticos num clima de batalha performativa com vista a uma fama bairrista, cuja posteridade dependia do renovar do arrojo das próprias actuações ou performances. Ver: Rose, 1994; Contador e Ferreira, 1997.


transferir texto