A responsabilidade e a cidadania na Administração Pública
Niklas Luhmann perguntou-se porque é que o indivíduo seria honesto no escuro?1
Porque ele assim o deseja ou porque há regras e procedimentos de controlo dos
comportamentos? (Luhmann, 1989). É natural que não se possa responder
univocamente a esta questão. Mas é normal que nos sirva de reflexão sobre a
responsabilidade e a ética no funcionamento dos sistemas administrativos e
políticos.
Tendo como pano de fundo o processo de modernização dos serviços públicos e
aceitando que é possível fazer uma distinção entre a mudança da administração
pública, num amplo sentido, como mudança na sua relação com o cidadão e, num
sentido restrito, como mudança na estrutura interna do sistema administrativo
(Pitschas, 2001), penso que a questão da responsabilidade é um instrumento
analítico que permite articular estas duas dimensões. Isto é tanto mais
importante quanto, face à diferenciação dos sistemas sociais e à complexidade
dos actos e funções, torna-se necessário dispor de uma generalização de
símbolos que exprimam a unidade do sistema: a responsabilidade política e ética
é um deles (Luhmann, 1980). A responsabilidade como conceito, por um lado,
abrange o funcionamento do sistema administrativo prestar contas dos actos e
decisões, cumprir prazos e procedimentos, desempenho profissional,
comportamentos neutros e impessoais, etc. e, por outro, afecta a produção (ou
não) de confiança do cidadão no sistema, na difusão da ética profissional e na
realização eficaz dos programas públicos, como valor de legitimação do
funcionamento da administração. A adesão dos indivíduos ao processo de
modernização e de racionalização da administração é, além de um acto que diz
respeito ao próprio interesse, um acto de confiança na forma como a ética
profissional é respeitada pela autoridade.
A ética é hoje um valor em relativo declínio, mas sem confiança nos
comportamentos e nos processos, não haverá adesão a uma reforma modernizadora.
A ética profissional é um procedimento e um modelo de acção. Ora, uma prática
administrativa e política alheada das exigências dos cidadãos em matéria de
responsabilidade face à utilização dos recursos públicos (menosprezando os
programas de accountability, ou seja, a obrigação de responder pelos actos e
resultados), face às decisões vinculantes que afectam os indivíduos e face aos
riscos e incertezas da sociedade, aprofunda o défice de legitimidade e de
desempenho dos sistemas administrativo e político. Nesse sentido o conceito de
responsabilidade, que, no nosso entender, vai além da noção de
accountability,constitui um dos fundamentos contratuais da vida em sociedade e
da confiança nas instituições políticas e administrativas. O conceito de
responsabilidade assegura o princípio tanto da utilização e prestação de contas
dos recursos públicos e da autoridade política e administrativa, como o
princípio de precaução e segurança das sociedades cada vez mais complexas.
O objectivo deste artigo é aprofundar a questão da responsabilidade em três
níveis. Uma dimensão organizacional, enquanto funcionamento do sistema
administrativo e prestação de contas dos resultados; uma dimensão
institucional, entendida como responsabilidade política e administrativa face
aos direitos da cidadania; e, por último, uma dimensão contratual da
responsabilidade política, entendida como categoria constitutiva da democracia
numa fase de sociedade de risco.Esta distinção é naturalmente arbitrária e tem
apenas por função delimitar melhor as diferentes competências e obrigações de
cada um dos níveis. A categoria de cidadania, como matriz de integração social
e sistémica, percorre cada uma das três dimensões do cidadão, como
contribuinte, como eleitor e como partícipe da sociedade. A categoria de
cidadania, operando como mediadora entre os indivíduos e as estruturas sociais,
constitui-se como uma forma especial de organizar o espaço político e onde
assentam a diferenciação, a integração, as tensões e as orientações sociais e
organizacionais da vida colectiva em democracia.
A dimensão organizacional:accountability
A responsabilidade sobre os actos e as funções do sistema administrativo tem
vindo a ser equacionada em torno do conceito de accountability, interpretado
como a obrigação de responder pelos resultados (Araújo, 2000),no sentido do
controlo orçamental e organizacional sobre os actos administrativos, do
respeito pela legalidade dos procedimentos e da responsabilização pelas
consequências da execução das políticas públicas.
Os métodos de controlo na administração pública assentam, normalmente, no
controlo hierárquico interno sobre as competências e funções, no controlo da
prestação de contas dos programas e políticas, no controlo normativo prévio
orientações estipulando ex-antes os procedimentos administrativos de controlo a
serem observados e nas auditorias internas e externas à administração por
entidades certificadas ou por órgãos de soberania. Certamente que esta panóplia
de instrumentos não indica a efectividade dos mesmos: o descontrolo sobre os
actos e a falta de responsabilidade perante o cidadão desde os prazos de
respostas até o controlo dos gastos, passando pela eficiência da função por
parte do sistema administrativo e da autoridade política são, na nossa
sociedade, alguns dos elementos fundamentais do défice de confiança e da
opacidade da administração pública e do poder político.
O controlo externo, nomeadamente a publicidade dos actos, as informações
veiculadas pelo sistema de comunicação social, a abertura dos processos
(audiências públicas) antes da tomada de decisão, a intervenção orientadora e
crítica dos grupos de interesse público, bem como o funcionamento do próprio
mercado, apesar da sua importância crescente no controlo exterior do sistema
administrativo, não têm vindo a ser suficientes para inverter a tendência da
insuficiente credibilidade, em matéria de responsabilidade, da administração
pública e da autoridade política. A actual difusão do método de accountability
obrigação de responder pelos resultados , originário da tradição das
organizações privadas e das instituições simples, apresenta-se, em teoria, como
a solução do problema da responsabilidade da administração pública. A ideia da
accountability, ou da obrigação de prestar contas dos resultados, foi sendo
transposta para as entidades públicas como instrumento do controlo financeiro,
tanto do ponto de vista do orçamento dos programas e medidas implementadas,
como em torno da relação custos/benefício, ou seja, critérios orientados pelos
indicadores da eficiência e do controlo orçamental.
Neste aspecto, deve assinalar-se que o princípio da accountability tem um forte
potencial na reforma da administração pública, nomeadamente no que se refere à
ênfase posta na técnica de controlo dos abusos orçamentais, na segurança
relativa à utilização dos recursos públicos, bem como no processo de
aprendizagem no controlo dos custos e da gestão da qualidade (Wolf, 2000) dos
resultados. Contudo, no que diz respeito ao princípio de prestar contas dos
resultados, parece haver actualmente uma tendência para a deslocação dos
aspectos legais, hierárquicos e políticos para, em contrapartida, enfatizar os
aspectos financeiros e económicos (Romzek, 2000), particularmente nos custos
dos programas e de pessoal. O processo da accountability, portanto, é utilizado
como meio não apenas de controlar a utilização dos recursos públicos, segundo
critérios e processos de apresentação de contas e resultados, mas também como
maneira de estimular ganhos económicos e eficiência com respeito aos recursos
públicos. Hoje em dia não faltam razões para tal preocupação: desde o problema
do défice fiscal, do peso do sector público na economia e dos gastos com o
pessoal, até à tendência para o incremento regular da carga fiscal no
rendimento dos indivíduos e das empresas.
Contudo, o conceito de accountability, apesar da sua centralidade na prestação
de contas dos actos administrativos e na definição, formulação e controlo das
políticas públicas (Peters, 1995), nomeadamente nos indicadores da relação
resultados/custos, parece ser menos pertinente quando se trata da qualidade dos
produtos, da racionalidade das medidas e da equidade da utilização, ou mesmo
dos critérios de eficiência dos recursos públicos. Para estes resultados mais
qualitativos, parece não haver indicadores adequados no modelo financeiro da
accountability.O princípio da accountabilityna administração pública não pode
ser reduzido a uma questão técnica, pois trata-se de uma questão democrática
(Wolf, 2000). É nesse contexto que se nos afigura importante abordar a questão
da obrigação de responder pelos resultados, num registo mais político, onde o
problema da responsabilidade pela utilização dos recursos públicos se relaciona
mais amplamente com a cidadania e a responsabilidade política. Afigura-se que a
importância de prestar contas dos resultados não pode visar apenas a eficiência
das políticas, mas também o tipo de orientação prevalecente numa sociedade
democrática. Na terceira parte deste artigo voltaremos a esta questão
problemática. Por agora e ainda dentro deste ponto, pensamos ser necessário,
para uma melhor compreensão das virtualidades e dos limites das técnicas do
accountability, tecer algumas considerações sobre os problemas que este
procedimento levanta na nossa administração, tanto ao nível da actual estrutura
organizacional da administração pública, como ao nível dos comportamentos e do
funcionamento do pessoal do sector público.
Em primeiro lugar, as reformas que entretanto têm vindo a ser introduzidas na
administração pública, nomeadamente a alteração das fronteiras do sector
público, exemplificada no recurso à subcontratação, nas parcerias entre
público, privado e associativo e na delegação de competências, contribuem para
obscurecer o princípio da obrigação de prestar contas dos resultados e da
gestão dos recursos públicos. Com efeito, os sistemas de subcontratação e de
parcerias, tendência em aumento nesta fase do estado regulador e de esbatimento
das fronteiras do sector público, acarretam alguma dispersão da autoridade e
das entidades às quais é devido a prestação de contas dos resultados de gestão
e de utilização dos recursos públicos (Walker, 2002).
O sistema de subcontratação praticado no sector público difere do sistema de
contratação entre duas entidades privadas independentes, na medida em que, por
um lado, há mais entidades envolvidas e, por outro, há uma separação entre o
fornecimento e o financiamento. A complexidade relacional entre as organizações
limita a clareza das responsabilidades pelos actos de gestão e pelo controlo
dos resultados. Nestes sistemas há três tipos de relações: o cliente com o
fornecedor, o fornecedor com o financiador e o cidadão-cliente com o
financiador. A hierarquia das responsabilidades e a definição dos critérios de
apreciação da obrigação de responder pelos resultados tornam-se mais opacas e
casuísticas. Neste sentido, a complexidade do modelo organizacional da
administração pública torna mais difícil, senão menos transparente, o processo
de accountability.
Em segundo lugar e da mesma maneira que no precedente, a introdução de agências
e institutos independentes afecta o princípio de prestação de contas sobre os
resultados e o controlo dos gastos, seja porque há várias entidades envolvidas
com competências de auditorias entidades administrativas e órgãos de
soberania , seja porque não é clara a delimitação de responsabilidades e a
compatibilização entre a autonomia de gestão e de produção por objectivos das
agências e institutos públicos independentes e os critérios de
responsabilização oriundos da autoridade administrativa e política (Aucoin e
Heintzman, 2000).
Em terceiro lugar, o modo de funcionamento da administração, nomeadamente os
princípios organizativos e comportamentais em que assenta, em grande parte, o
serviço público, limitam as virtualidades do modelo de controlo dos custos, da
responsabilidade pelos actos administrativos e da prestação de contas face a
entidades imparciais. A potencialidade do sistema de accountability, em termos
de modernização e de racionalização dos serviços públicos, pressupõe um
funcionamento pelo menos estandardizado segundo os critérios profissionais dos
actos de gestão da administração pública. Ora, pensamos que há vários
aspectos a ter em conta na questão da responsabilidade pelos actos de gestão e
do respeito pelos procedimentos administrativos definidos.
Por um lado, a descoordenação dos vários subsistemas da administração pública,
o fechamento do processo da decisão, num âmbito de fragmentação da memória
administrativa e processual, não permitem que as decisões e as medidas de
controlo e fiscalização formem doutrina e precedentes na acumulação de saber. A
descontinuidade administrativa limita a fiscalização regular e continuada dos
actos administrativos e de controlo dos programas.
Por outro lado, a predominância de um ambiente de trabalho sem demasiado
controlo interno e externo, privilegia uma forma de recrutamento próxima da
cultura clientelar e do conhecimento que, por sua vez, fazem com que o
desempenho profissional, a fiscalização, o controlo dos actos, estejam imbuídos
de um relativo subjectivismo, de compromissos e favores que limitam a
objectividade dos procedimentos. A cooptação é uma prática que não se limita
apenas aos serviços públicos administrativos. Também não se pode dizer que toda
a administração partilha destas características: é claro que existem situações
diferenciadas e segmentos ou sectores cujo desempenho e responsabilização são
de assinalar. Trata-se, porém, de observar que, não obstante os exemplos de
excelência recentemente desenvolvidos (Mozzicafreddo, 2000), a regularidade de
comportamentos disfuncionais, uma das características da nossa administração
pública ajudada pelo défice de responsabilidade e de ética profissional da
esfera política , tem vindo a tornar-se mais evidente.
A dimensão política e institucional da responsabilidade
No estado de direito, a ideia de responsabilidade assenta num sistema normativo
que define a sua fundamentação legitimadora na prossecução e protecção dos
direitos do cidadão e na defesa do cidadão enquanto agente portador de um
estatuto próprio no tecido social e político. A categoria de cidadania
constitui-se como uma forma especial e histórica de organizar o espaço político
da sociedade. A responsabilidade, como elemento distintivo da administração e
da governação, implica a utilização de procedimentos e de métodos de actuação,
numa perspectiva da construção de uma sociedade de confiança, associando
cidadãos, eleitos e decisores, na construção da democracia (Albertini, 2000;
Beaud e Blanquer, 1999).
Parece-nos importante, para melhor precisão da questão da responsabilidade
política, abordar este problema em dois níveis que, embora relacionados,
remetem para argumentação específica.
Legitimidade e responsabilidade
Será que a eficiência nas contas públicas e a racionalização no controlo
financeiro dos resultados equivale a democraticidade dos actos de
administração? Será que o aumento da responsabilidade pelos actos de gestão
pública equivale a responsabilidade política do sistema de governo? Certamente
que contribuem poderosamente para uma melhor utilização dos recursos colectivos
e, portanto, para o funcionamento democrático do sistema administrativo.
Pensamos, contudo, que esta situação, que está longe de corresponder à
realidade quotidiana da nossa sociedade, não responde adequadamente às
necessidades de legitimação do sistema administrativo e político de governação.
O respeito pelos preceitos legais, o controlo das contas e a gestão eficiente
dos actos e das medidas administrativas, essenciais a uma administração
racional e transparente, não podem anular ou negligenciar a legitimidade das
políticas e da utilização dos recursos colectivos: a responsabilidade significa
que o poder e, portanto, a autoridade administrativa, deve justificar-se
perante os cidadãos. Em concreto, o que parece ser central no problema da
responsabilidade política é a gestão das consequências das políticas e dos
programas públicos que se implementam, ou seja, as consequências da escolha
efectuada pela autoridade política, no sentido de orientações e valores das
escolhas políticas. A confiança nas políticas públicas passa, necessariamente,
pelo crivo da prestação de contas e da transparência na utilização dos recursos
públicos, mas deve assegurar, igualmente, a equidade das políticas e da
utilização dos recursos colectivos e a responsabilidade dos actos de
administração e de governo.
Aos indicadores de eficiência e de economia na gestão dos recursos públicos
devem juntar-se indicadores de avaliação da qualidade e justiça desses mesmos
programas: os indicadores que medem a positividade do controlo dos custos
orçamentais e da racionalização dos actos administrativos dos programas de
combate à pobreza serão insuficientes, em termos de indicadores de equidade, se
o nível de pobreza não diminuir. Pensamos, ainda, que dificilmente aumentará a
confiança dos cidadãos nas instituições políticas se, apesar da eficiência da
máquina fiscal na arrecadação das receitas e a despeito das economias de gestão
da mesma, o próprio sistema for injusto na distribuição da carga fiscal, como
é, aliás reconhecidamente, o nosso sistema. A realização dos valores da
cidadania implica, de maneira credível, a conciliação entre a eficiência e a
justiça na esfera dos actos de administração e de governo da sociedade. Na
questão da cidadania o sistema jurídico e político tem precedência sobre a
ordem funcional: os princípios de gestão organizacional dos serviços públicos
são sempre os de uma gestão para o bem público ou comum, o qual está sujeito à
prioridade do sistema jurídico e político (Pitschas, 2001).
Objectivação da responsabilidade
Com vista a reflectir sobre a questão da responsabilidade política, para além
da questão sobre o contexto jurídico da responsabilidade dos decisores,
interessa, para os objectivos deste texto, tecer algumas considerações acerca
do debate que tem vindo a ser levantado a propósito do défice de confiança nas
instituições políticas e administrativas. A responsabilidade da função pública
está condicionada, por um lado, pelo facto de o exercício do poder ter por
objectivo natural a obtenção de resultados eficazes e, por outro, pela
possibilidade, inerente à função, de se ser sancionado positiva ou
negativamente: não pode haver responsabilidade pela função sem sanção (Coicaud,
1999).
Para além da responsabilidade política propriamente dita, ou seja, a
responsabilidade pela prestação de contas perante os eleitores e perante os
órgãos de soberania, nas suas várias dimensões de moção de confiança, de
rejeição, de demissão, interessa, neste caso, considerar a responsabilidade
política e administrativa enquanto obrigação de prestar contas pelos actos
praticados no exercício da função. Tanto ao nível da administração, como da
autoridade política, é de admitir, em termos de responsabilidade da função, que
a colectividade pública, nomeadamente o estado, as câmaras, a administração,
têm o dever de reparar as consequências da má organização ou do não
funcionamento da administração (Moreau, 1986). Os actos do governo e da
administração não podem deixar de ter sanção administrativa ou penal pela falta
ou culpa do serviço, seja culpa da organização e do funcionamento anónima ,
seja culpa individual motivada pela acção pessoal.
A ideia de que os funcionários e os agentes políticos são responsáveis perante
a autoridade hierárquica e que estes são responsáveis perante os órgãos de
soberania está bastante longe da realidade. A responsabilidade sem sanção
para além do normal e regular acto de sanção eleitoral, positivo ou negativo
não só é um dos principais elementos do défice de credibilidade do sistema
administrativo e político, da perca de confiança nas instituições, como é uma
das principais razões do mau funcionamento da administração pública. Nesse
contexto, é importante ter presente que o valor pedagógico e processual, no
seio da administração pública, da justiça comutativa, ou seja, do dever público
de justa indemnização compensatória pela falta, independentemente da natureza
ilícita do acto praticado, impõe-se ao estado ou à administração,
exclusivamente, com fundamento no princípio da igualdade dos cidadãos perante
os encargos públicos (Brito, 2002).
O facto de os agentes terem que responder pelos seus actos administrativos ou
decisórios obriga, em termos de procedimentos do sistema administrativo, a
terem um desempenho profissional positivo, tanto em termos de prazos e de
qualidade do acto, como da racionalidade e transparência do funcionamento. A
irresponsabilidade do sistema administrativo e da autoridade política, em
termos de funcionamento e de respeito pelos preceitos jurídicos e políticos dos
direitos dos cidadãos, é directamente proporcional à insuficiência da sanção,
positiva ou negativa, pelos actos de gestão pública. Aliás, é razoável
considerar, e veremos este assunto no último ponto deste texto, que o declínio
da responsabilidade pelos actos de administração e de governação, está na base
do aumento dajurisdizaçãoda sociedade e das expectativas de responsabilidade
penal e administrativa dos actos decisórios.
Assinale-se ainda, a propósito da responsabilidade no funcionamento do sistema
administrativo e da autoridade política, que a disfuncionalidade da gestão
pública tem, igualmente, por base razões organizacionais e culturais, devido,
justamente, à insuficiência de regras e procedimentos de actuação orientadores
da acção administrativa. As formas organizativas do trabalho, por um lado,
carentes de suficientes qualificações, tanto ao nível de quadros superiores
como ao nível administrativo, e com reduzida produtividade em termos de horas/
produto e em termos de tecnologias de apoio à gestão, e, por outro, dominadas
pelas formas centralizadas das decisões, com circuitos hierárquicos e
segmentados de responsabilidades, limitam o seguimento dos processos, a leitura
atenta e conscienciosa dos dossiês, a observância dos prazos e normas: incidem,
em suma, negativamente na responsabilização individual pelo desempenho do
serviço público. A ausência de sanção, pela não observância das normas de
funcionamento e da fiscalização regular das decisões estabelecidas, é
igualmente um dos obstáculos ao princípio de responsabilidade e credibilidade
do sistema.
Por outro lado, e relativamente à esfera política, nomeadamente ao nível dos
altos cargos políticos e institucionais, a prática exagerada do particularismo
institucional (Ferrera, Hemerijk e Rhodes, 2000), ou seja, as práticas que
encorajam o corporativismo e as relações clientelares, onde não é raro observar
a mistura de agentes privados e públicos nas instituições públicas, limita a
eficácia do controlo, da fiscalização e da observância das normas. Neste
contexto, as acções administrativas e políticas, consistentes no normal
prosseguimento dos dossiês, no andamento dos inquéritos e avaliações, tornam-
se, com excepção de algumas exemplares acções fiscalizadoras com forte impacto
mediático, casuísticas e instrumentais. Observe-se, contudo, que o
particularismo institucional, sendo uma realidade política inerente aos regimes
democráticos, onde a pluralidade de interesses, as necessidades de alianças
políticas que apoiam a estabilidade dos governos, fazem parte das estratégias
dos executivos, não pode limitar os objectivos e a legitimidade democrática
nem, o que é por demais evidente, apresentar-se como uma das características
mais salientes no lugar de um modelo de ética política e de isenção pública.
A responsabilidade da administração face à sociedade de risco
O acumular de situações de risco e de incertezas em consequência do
desenvolvimento da sociedade e, sobretudo, da complexidade e das formas desse
desenvolvimento, coloca a questão do alcance e dos limites da responsabilidade
pública, relativamente à sociedade democrática, numa outra perspectiva,
complementar, certamente, mas específica.
Como uma primeira observação de apresentação do problema, vale a pena lembrar a
dimensão das incertezas e das situações de risco da vida em comum que se
manifestam actualmente, quer na rua, nas estradas e pontes, nos locais de
trabalho, nos hospitais e escolas, quer nos espaços lúdicos nocturnos, nos
parques de divertimentos, etc. As incertezas e as situações de risco
manifestam-se, igualmente, no âmbito do controlo social, ambiental e técnico,
adequado à preservação das condições ambientais, na manipulação genética dos
alimentos, no âmbito das novas tecnologias e nos problemas da protecção da
privacidade.
Os problemas com as situações imprevistas, com as incertezas e inseguranças dos
cidadãos não são, porém, novos na nossa sociedade. A sua visibilidade é hoje
maior devido, sobretudo, à acumulação de situações de ruptura técnica e social,
ao aumento de expectativas dos cidadãos e, ainda, à manifesta omissão política
em implementar programas de manutenção dos equipamentos colectivos e de
fiscalização das situações irregulares.
Num segundo ponto de apresentação do problema, consideramos que o aumento das
situações de risco e de incerteza verificado é um dos factores, entre outros,
que estimulam a tendência para a jurisdização das relações sociais. A tendência
actual de resolução dos problemas pela via jurídica, por um lado, encoraja o
sentimento e a ideologia da vitimização, com o consequente processo de
indemnização e, simultaneamente, a exigência de novas regras de regulação e,
por outro, esta tendência para a criminalização ou responsabilização política e
administrativa pode ser interpretada como uma nova sensibilidade política, que
traduz uma percepção da indiferença dos poderosos (da esfera política e
administrativa) pelo sofrimento do cidadão comum. Esta sensibilidade apresenta-
se como uma procura de responsabilização individual, pagadora face a um
quotidiano vivido como injusto e incerto: é umareivindicação política (Beaud,
2000),entendida como uma exigência dos cidadãos, face ao estado e à elite
política e administrativa, de responsabilidade política pelos seus actos.
Pretende-se, assim, nesta última parte do texto, reflectir sobre as diferentes
fases da evolução sociológica da responsabilidade, nas quais e num contexto de
direitos do cidadão, as incertezas e o risco foram sendo estruturados. Digamos,
em termos de questões problemáticas, que a noção da responsabilidade e da culpa
percorre fases distintas.
A questão da responsabilidade, relativamente às incertezas dos indivíduos e aos
riscos que surgem na vida em sociedade, tem vindo a sofrer significativas
transformações ao longo do processo de individualização das sociedades. Por um
lado, o processo social de individualização tem conduzido a um distanciamento
dos indivíduos relativamente às comunidades tradicionais de pertença e a uma
dependência institucional, laboral e urbana, que dificilmente podem, de maneira
eficaz, funcionar como factores de integração. É nessa nova relação de
dependência que se situa a expansão das incertezas com as quais o indivíduo se
confronta. Por outro lado, a noção de risco é evolutiva e inseparável da ideia
de probabilidade cálculo das consequências possíveis. A ideia de risco supõe
que as acções não estão garantidas à partida. Além do mais, a sociedade de
risco é uma sociedade orientada para o futuro: assim, desligar-se do passado e
das comunidades e instituições de integração introduz incertezas quanto ao
futuro da acção (Giddens, 2000).
A questão da responsabilidade e da cidadania coloca-se de maneira muito
diferente nas três fases mais distintivas da evolução das sociedades modernas:
no início da industrialização e no regime político liberal; na sociedade
industrial e no estado de direito; e na sociedade moderna com o seu estado
regulador. Nos pontos a seguir tentaremos discutir, de maneira assaz sintética,
a evolução das formas de responsabilidade, segundo o contexto histórico e,
naturalmente, de organização política da sociedade.
Sociedade liberal
Na primeira fase que nos interessa considerar, ou seja, nos inícios da
sociedade industrial e no contexto de um regime político relativamente liberal,
o paralelismo entre industrialização, incerteza, pobreza e desintegração social
é equacionado em termos de esferas autónomas de acção: pensa-se numa distinção
clara entre direito e moral. Estes deveres de assistência não indicam que os
pobres tenham direito à assistência, mas indicam, ao contrário, que o que está
em discussão é o que pode ser, ou não ser, direito: são os critérios de
jurisdicidadeque se discutem, por forma a estabelecer o limite entre o direito
e o dever (Ewald, 1996). O direito é contratual, supõe a troca de equivalentes
e, assim, a sociedade não pode ajudar o outro sem contrapartidas: o que é moral
não pode ser uma obrigação.
As incertezas ou o infortúnio do indivíduo no seu relacionamento com a
sociedade são, neste contexto, uma responsabilidade individual, uma
responsabilidade de indivíduos mais ou menos previdentes com as eventuais
situações aleatórias da sociedade e do trabalho. A moral da assistência e os
deveres de socorro humanitário evidenciam a contradição entre a utopia liberal
formulada pela economia de mercado do laissez-faire e as exigências da política
(Bendix, 1974). O estado deve, por imperativo moral, promover o socorro mútuo e
a assistência, mas sem que possa consagrá-los como obrigação jurídica. A
pobreza é um comportamento e não pode ser equacionada como um direito.
Sociedade industrial
Numa segunda fase da evolução, em que a sociedade industrial e o contexto do
estado de direito predominam, a sociedade redefine a sua filosofia da
responsabilidade. O pensamento político e a prática social começam por admitir,
face à regularidade da relação entre a industrialização e as incertezas e os
riscos da existência, que a responsabilidade pelos actos da vida em comum,
neste caso, pelo progresso económico e social, pode ser imputada à entidade que
constitui o progresso, ou seja, a sociedade. Qual é a razão deste deslocamento
da noção de responsabilidade?
Por um lado, a percepção de que existem razões económicas, sociais e urbanas
para as incertezas e infortúnios, nomeadamente a pobreza: a industrialização é
um fenómeno sociológico que invade e altera os outros sectores da sociedade e
modifica a relação dos indivíduos com o meio ambiente.
Por outro, pensa-se que as zonas de incertezas e de riscos que a sociedade
industrial produz obedecem a uma variedade de causas com efeitos directos e
indirectos e diferidos no tempo. Entre o estado e o indivíduo, num crescendo do
processo de individualização, descobre-se, com base na regularidade dos
acidentes de trabalho, que a sociedade opera uma distribuição dos infortúnios
ou das desgraças segundo uma lógica própria do social, independentemente da boa
ou má conduta de cada um (Beck, 1998): o crescimento económico é um produto
social. Por último, o desenvolvimento dos direitos de cidadania altera a noção
da responsabilidade, na medida em que a igualdade perante a lei e a sua
concretização nos regimes democráticos encorajam o estabelecimento de direitos
sociais que funcionam como mecanismos de compensação das assimetrias e das
incertezas resultantes do mercado (Flora e Heidenheimer, 1990).
A figura jurídica do seguro de acidente de trabalho, nos finais do século XIX,
torna-se o modelo típico da deslocação da percepção do direito e da discussão
sobre os critérios de jurisdicidade. A relação salarial não é apenas uma troca
de equivalentes. Do facto de o trabalhador estar sujeito à forma como é
organizado o processo de trabalho, decorre que a questão da segurança no
trabalho se torna uma responsabilidade do colectivo (Ewald, 1996). Estas
medidas sociais e actos legislativos abrem a via para a noção de
responsabilidade sem culpa. Doravante trata-se de equacionar a responsabilidade
como uma gestão colectiva do risco, pressupondo, sociologicamente, que se pode
gerir a incerteza social (Engel, 1995).
Sociedade moderna
Na questão das características da sociedade moderna e do seu estado regulador,
interessa, antes do mais, assinalar que o problema que se apresenta com a
sociedade industrial, em matéria de responsabilidade, é a contradição entre o
conteúdo universal da sua modernidade e a estrutura selectiva das suas
realizações. Considera-se que é neste âmbito que a responsabilidade pelas
consequências das suas acções não é assumida positivamente face ao cidadão. No
fundo, como refere Beck, trata-se de uma fractura na modernidade da sociedade
industrial, de uma descontinuidade da sua trajectória: a expansão das zonas de
incertezas e o descontrolo dos riscos nomeadamente no ambiente e
comercialização da natureza, nas transformações genéticas e no descontrolo das
doenças e nos riscos da vida quotidiana e no trabalho põem em causa a ideia
de que a sociedade industrial é o ponto culminante da modernidade (Beck, 1998).
Na sociedade moderna, a interdependência dos sistemas e a diversidade de causas
dos fenómenos sociais sustentam a indefinição das responsabilidades. A produção
de riquezas é acompanhada da produção e distribuição de riscos: os efeitos do
desenvolvimento e do modelo praticado assimétricos, selectivos, descontínuos,
desiguais e casuísticos tendem a escapar ao controlo das instituições de
orientação e de protecção dos cidadãos (Beck, 2000): a lógica da produção
domina a lógica do risco.
No contexto da evolução complexa das sociedades a questão da responsabilidade
desloca-se, relativamente à sociedade industrial, para assumir características
mais abrangentes. Por um lado, a cidadania torna-se um princípio de organização
da sociedade: mais do que um direito social ou um conjunto de direitos é um
instrumento ou uma matriz de organização e de regulação das sociedades através
da qual se equacionam as formas de integração. A função integradora desta
categoria é tanto mais reforçada quanto mais a comunidade de trabalho, perante
as mudanças ocorridas, vai perdendo a sua capacidade integradora. Por outro
lado, na sociedade moderna, perante a expansão dos riscos e das incertezas
sociais, a capacidade de gerir a conflitualidade de responsabilidade
distributiva como prevenir, limitar e distribuir os riscos e incertezas que
acompanham a produção de bens e o controlo da natureza exige maior
competência e responsabilização do estado e da administração pública na sua
função de socializar as incertezas e os riscos.
Em suma, numa sociedade onde as formas de mediação entre os indivíduos e o
estado têm vindo a perder importância, exige-se, da esfera do político, uma
clara e directa responsabilização pelos efeitos do desenvolvimento e pela
integração social.
Sendo hoje a cidadania uma matriz de organização e de recomposição do tecido
social das sociedades modernas e uma categoria social, na base da qual a
sociedade assume colectivamente as incertezas e os riscos decorrentes da vida
em comum, torna-se claro que a cidadania, como junção da subjectividade e da
objectividade políticas, funciona, segundo Luhmann (1993), como base potencial
de conflitos que já não podem ser tratados segundo as tradicionais disputas
políticas e as ineficientes responsabilidades funcionais instituídas.
Em síntese, o sentimento de responsabilidade, como dizia Max Weber (1959), é
uma das qualidades mais significativas de um político, faz parte constitutiva
da ética política. Esta qualidade, que raramente se evidencia, não é apenas
importante porque caracteriza o sentido do serviço público, mas porque, neste
contexto e juridicamente falando, a responsabilidade é sobretudo indirecta. A
responsabilidade política é total, mas é uma responsabilidade da função e não
se afigura legítimo pensar que seja penal, dada a relação indirecta com o que
está em causa (Engel, 1995). Em termos de responsabilidade pública é directa,
mas em termos jurídicos é diferida nos escalões hierárquicos da administração.
Daí, portanto, a importância de um funcionamento da administração pública, em
termos de direito administrativo, que estimule, encoraje e cumpra o controlo e
a fiscalização dos actos e das decisões com efeitos consequentes na vida da
sociedade.
O sentido da responsabilidade do político é, no entanto, algo mais do que
controlo e fiscalização: é um modelo de acção e de comportamento. Muito
dificilmente a administração e o cidadão comum terão um comportamento de
observância das normas e de empenhamento responsável num ambiente de
desresponsabilização política e administrativa face ao cidadão e à sociedade em
geral.
Nota
1 Este texto tem por base uma comunicação apresentada no colóquio Administração
e Cidadania: Modernização dos Serviços Públicos, organizado pelo mestrado em
Administração e Políticas Públicas, do ISCTE, em 23 e 24 de Maio de 2002.