Artistas em rede ou artistas sem rede? reflexões sobre o teatro em Portugal
Para uma investigação sobre o teatro
Este artigo surge no âmbito de uma investigação sobre o teatro em Portugal: os
artistas e a sua actividade profissional nos grupos de teatro. O artigo foi
concebido durante uma fase particular da pesquisa estadia nos grupos,
realização do inquérito e recolha das entrevistas e articula pistas de
análise do quadro teórico e da pesquisa no terreno.1
Neste sentido, o trabalho no interior dos grupos de teatro e a necessidade de
compreender as trajectórias de profissionalização dos artistas fomentaram a
realização de um painel de entrevistas, com contornos temáticos e biográficos.
Além disso, a intenção de realizar uma cartografia dos grupos, companhias e
projectos de teatro profissionais tornou premente a utilização de outro suporte
metodológico, o inquérito. Tal como foi construído, o inquérito teve em conta a
caracterização dos grupos de teatro, a gestão dos seus membros e equipas, a sua
actividade artística e o seu funcionamento interno.
Administrado pessoalmente pela investigadora, este inquérito foi realizado
junto dos grupos de teatro, reconhecidos pelas instituições culturais,
emergentes durante a permanência da investigadora no terreno e sugeridos pelas
outras estruturas teatrais inquiridas, sob o efeito bola de neve.
Concentração espacial da actividade teatral
As cidades reúnem a maior parte das instituições de formação, produção, difusão
das artes, as actividades de concepção e de realização dos produtos culturais,
a administração cultural do estado, os críticos, os jornalistas, os mediadores
dos mercados artísticos e, finalmente, os públicos.
Fontes importantes de serviços e saberes, as cidades atraem os artistas e a
grande maioria dos profissionais do mundo do teatro: os actores, os
encenadores, os autores dramáticos, os cenógrafos, os figurinistas, os músicos,
os sonoplastas, os luminotécnicos, os técnicos de vídeo, entre outros.
Esta concentração espacial das profissões artísticas e da actividade teatral,
em particular, implica relações concertadas, de cooperação tácita,
cumplicidade, troca e interdependência. A este cenário associam-se, por um
lado, a concorrência e as alianças entre os grupos de teatro e, por outro
lado, a multiplicidade de redes de relações e de sociabilidade, papéis
profissionais e itinerários de carreira dos artistas.
No caso do teatro profissional em Portugal, as cidades de Lisboa e Porto são
exemplos de dois centros de gravidade do mercado de trabalho dos artistas, dos
grupos, companhias e projectos de teatro. A implantação dos artistas e das
empresas de produção cultural, a presença de inúmeros projectos, a
desmultiplicação de festivais e a animação cultural são vectores fundamentais
da organização da vida teatral portuguesa nestas cidades.
Apesar da política pública cultural de descentralização, o número de artistas,
grupos e projectos de teatro existentes nas duas grandes cidades portuguesas
não regrediu. Os resultados preliminares do trabalho em curso apontam para uma
concentração dos grupos, companhias e projectos de teatro nas zonas urbanas, e
para uma sucessão de períodos de trabalho, alternados com períodos de não
trabalho no teatro, para os artistas e outros profissionais do teatro.2
Um dos exemplos das profissões intermitentes nas artes do espectáculo é o
artista-actor. O inquérito que se tem vindo a realizar evidencia uma
predominância dos contratos feitos ao projecto ou ao espectáculo, por períodos
inferiores ou iguais a seis meses, para os actores convidados pelos grupos de
teatro.
Os artistas-actores gerem assim as suas gratificações monetárias e simbólicas
(o reconhecimento, o sucesso), demonstrando uma particular resistência para com
a falta de oportunidades e uma certa tolerância em relação às desigualdades de
rendimentos, no seio de uma profissão arriscada.
É neste contexto de incerteza que os artistas-actores e encenadores esperam a
sua oportunidade e desenvolvem uma diversidade de actividades dentro e fora do
universo artístico, aceitando empregos casuais, de curta duração, uma vez que
correm o risco de ter um número reduzido de compromissos profissionais e uma
participação irregular nas artes do espectáculo.
Serão estes os processos de intermitência e flexibilidade nas artes, de que
fala Pierre-Michel Menger (1991, 1994, 1999) para o caso francês? Para uma
análise do caso português, levantam-se afinal algumas questões: como é que os
artistas contactam os grupos de teatro? Como é que os artistas são captados
pelos grupos? Como é que os artistas se organizam em grupos e de que forma
falam desses grupos e projectos de teatro? Finalmente, o que é que os artistas
procuram nos grupos de teatro e vice-versa?
Este artigo não pretende apresentar respostas conclusivas, assinala-se apenas
que as histórias da vida artística dos actores e dos encenadores são marcadas
pela diversidade de experiências, pela descontinuidade dos seus percursos, ao
que se acrescenta o importante efeito geracional.
Neste sentido, a contextualização da multiplicidade de carreiras dos membros
das equipas artísticas de um grupo de teatro é uma pista de análise a
desenvolver. Erving Goffman, a exemplo de E. Hughes e H. Becker, definiu
carreira em dois sentidos: Por um lado, aplica-se (este termo) a significações
íntimas, que cada um conserva preciosa e secretamente, imagem de si e
sentimento da sua própria identidade; por outro lado, refere-se à situação
oficial do indivíduo, às suas relações de direito, ao seu género de vida,
entrando desta forma no quadro das relações sociais. ( ) O conceito de carreira
admite assim um movimento de vai e vem do privado ao público, do eu ao seu
ambiente social ( ) (1994: 179).
Este quadro teórico promove dois aspectos fundamentais no domínio das carreiras
artísticas: por um lado, a componente das realizações na vida profissional e,
por outro lado, a componente subjectiva, a partir da qual o indivíduo apreende
a sua existência e a dos outros.
Por agora, de uma forma resumida, é possível articular estes contributos
teóricos com a dimensão empírica do mundo da arte teatral, onde os
profissionais das equipas artísticas passam por períodos de socialização nos
grupos e companhias de teatro, procurando desmultiplicar as suas experiências
amadoras ou profissionais, no teatro, na televisão, no cinema e solidificar o
seu itinerário artístico.
Para isso muito contribuem as estruturas teatrais que funcionam como nichos de
estabilidade, permitindo às novas gerações de actores, numa primeira fase,
conhecer os membros que compõem a comunidade teatral, ter acesso às informações
sobre os grupos e os projectos. Enfim, construir as bases de uma carreira
artística e consolidar o seu percurso com vista à profissionalização.
Ao mesmo tempo, verifica-se que os grupos de teatro, fundados na década de 70 e
liderados pelas velhas gerações de artistas, deixam de suportar as grandes
famílias residentes. Não só as condições económicas dos grupos e das companhias
não permitem manter equipas muito grandes com rendimentos estáveis, como também
os artistas têm necessidade de integrar e experimentar vários processos e
projectos de criação.
A partir da articulação do trabalho no terreno e dos estudos realizados por
Pierre-Michel Menger (1991, 1994, 1999), a propósito da flexibilidade do
trabalho, do risco nas artes do espectáculo e das características
organizacionais da produção artística, deixam-se duas questões sobre a situação
do teatro em Portugal: será que o emprego intermitente dos artistas aparece
como a forma mais económica para diminuir os elevados custos dos grupos com as
suas equipas artísticas residentes? Assim sendo, será possível dizer que estes
grupos dispõem, em permanência, de efectivos artísticos, capazes de garantir a
flexibilidade e a inovação da produção teatral?
A variedade das práticas dos artistas e dos projectos de teatro, entre outros
factores, contribui para a originalidade e para o sentido não rotineiro destas
profissões, da mesma maneira que parece dificultar a tarefa do investigador.
Afinal, como é que se pode descortinar o que está subjacente a todos estes
processos? E qual é o sentido destas transformações no panorama artístico e
teatral português?
Os artistas: profissionais em rede ou profissionais sem rede?
Recenseamento dos grupos de teatro
A partir do inquérito em curso apresentam-se, de uma forma simplificada, os
dados elementares de caracterização dos grupos de teatro em Portugal: o nome e
a data da fundação formal de cada uma das estruturas teatrais.
De acordo com estes dados do recenseamento, e adoptando o critério antiguidade,
distinguem-se três pólos de grupos, companhias e projectos de teatro, em
Portugal:
Estruturas teatrais que nascem antes e durante os anos 70
Teatro Experimental do Porto TEP (Porto, 1952); Teatro Experimental de
Cascais TEC, (Cascais, 1965); Grupo 4 (Lisboa, 1967) deu origem ao Novo Grupo
(Lisboa, 1982); Comuna (Lisboa, 1972); Cornucópia (Lisboa, 1973); O Bando
(Lisboa, 1974); Barraca (Lisboa, 1976); Centro Cultural de Évora (1975) integra
o teatro da Rainha e dá origem ao CENDREV (1990); Teatro de Animação de Setúbal
(1975); Teatro de Campolide (Lisboa, 1971) que dá origem à Companhia de Teatro
de Almada (1975); Teatro Infantil de Lisboa (1976); Os Pápa-Léguas (Lisboa,
1976); Seiva Trupe (Porto, 1978); Companhia de Teatro de Braga (1980).
Estruturas teatrais que nascem nos anos 80
Teatro em Movimento (Bragança, 1980); Trigo Limpo/ACERT (Tondela, 1980); ACAE
(Lisboa, 1980); Teatro do Semeador de Portalegre (1981); Teatro Art'Imagem
(Porto, 1981); GICC (Covilhã, 1981); Maizum (Lisboa, 1982); Teatro Experimental
do Funchal (Madeira, 1984); Teatro de Marionetas de Lisboa (1985); Chão de
Oliva (Sintra, 1986); Filandorra Teatro do Nordeste (Vila Real, 1987); A
Lanterna Mágica (Lisboa, 1988); Teatro de Marionetas do Porto (1988); Teatro da
Garagem (Lisboa, 1989).
Estruturas teatrais que nascem nos anos 90
Companhia Teatral do Chiado (Lisboa, 1990); Teatro Regional da Serra de
Montemuro (Castro Daire, 1990); Teatro do Século (Lisboa, 1990); Olho (Setúbal,
1991); Loucomotivo (Lisboa, 1991); Teatro do Noroeste (Viana do Castelo, 1994);
Acto Instituto de Arte Dramática (Estarreja, 1992); O Grupo (Almada, 1992);
Arte Pública de Beja (1992); Escola da Noite (Coimbra, 1992); Teatro Meridional
(Lisboa, 1992); Alta Performance (Lisboa, 1992); Pogo Teatro (Lisboa, 1993);
Pimtaí (Évora, 1993); Tarumba (Lisboa, 1993); Projecto Teatral (Lisboa, 1994);
Visões Úteis (Porto, 1994); As Boas Raparigas Vão para o Céu, as Más Vão para
Todo o Lado (Porto, 1994); Teatro Extremo (Almada, 1994); Inestética Teatral
(Lisboa, 1994); O Teatrão (Coimbra, 1994); Teatro ao Largo (Vila Nova de Mil
Fontes, 1994); Teatro Plástico (Porto, 1995); Teatro Só (Porto, 1995); Meta-
Mortem-Fase (Porto, 1995); Escola de Mulheres Oficina de Teatro (Lisboa,
1995); Artistas Unidos (Lisboa, 1996); Filipe Crawford Produções (Lisboa,
1996); Chapitô (Lisboa, 1996); Lua Cheia, Teatro para Todos (Lisboa, 1996);
Três em Pipa (Odemira, 1996); Teatro do Morcego (Coimbra, 1996); Teatro Bruto
(Porto, 1996); Ensemble (Porto, 1996); Sensurround (Lisboa, 1997); Cão Solteiro
(Lisboa, 1997); Lendias d'Encantar (Beja, 1997); APA Actores, Produtores
Associados (Lisboa, 1998); Útero (Lisboa, 1999); Orquestra Dramática O Bife
(Lisboa, 1999); Bica Teatro (Lisboa, 1999); Camaleão (Coimbra, 1999); Encerrado
para Obras (Coimbra, 1999); Karnart (Lisboa, 2001); Depois da Uma, Teatro?
(Lisboa, 2002)
Seria possível registar outros dados de caracterização dos grupos de teatro. No
entanto, não se pretende, por agora, uma descrição exaustiva deste universo,
trata-se apenas de uma apresentação de alguns grupos, companhias e projectos,
sobre os quais assentam os resultados preliminares desta investigação.
Convém notar que, na fundação dos grupos de teatro apresentados, estão
integrados outros grupos, outras companhias e projectos. Alguns grupos deram
origem a novas estruturas teatrais, outros desapareceram para sempre.
Finalmente, existem ainda outras estruturas de produção teatral que permanecem
até aos dias de hoje, mantendo os seus membros fundadores, mas integrando, ao
longo dos seus ciclos de vida, artistas com diferentes histórias e percursos
profissionais.
Uma tipologia embrionária
A tipologia apresentada foi concebida tendo em conta o trabalho desenvolvido no
interior dos grupos de teatro. Por essa razão, nesta fase da pesquisa,
presidiram à sua definição unicamente os critérios descritivos, atendendo ao
funcionamento dos grupos, em particular das suas equipas artísticas.
O que se pretende, neste momento, é a apresentação dos contornos de uma
tipologia embrionária assente na diversidade sociológica das situações em que
se desenvolve a actividade artística teatral portuguesa. Assim sendo, neste
estádio preciso da investigação, parecem existir cinco tipos de grupos:
* As companhias-famílias são nichos de estabilidade que funcionam como
importantes espaços de formação e consolidação da carreira de um artista,
assegurando as experiências artísticas, as informaçõessobre os projectos
existentes e o acesso ao emprego. Ao longo dos últimos anos, estas companhias
regularizaram a sua actividade e constituíram-se como estruturas menos
pesadas do que outrora. Tornaram-se placas giratórias das equipas
artísticas, mantendo um núcleo duro de convidados habituais e um núcleo duro
fixo com dimensões reduzidas. As companhias-famílias que agregavam, em
permanência, a mesma equipa artística, sem uma divisão clara das funções,
parecem ter deixado de existir.
* Os grupos micro-empresas são liderados por artistas que conhecem muito bem as
convenções tradicionais e as coordenadas do mundo da arte teatral. Estes
grupos funcionam como verdadeiros viveiros de artistas e de outros
profissionais das artes do espectáculo. Assumem-se como pequenas empresas de
bens artísticos que asseguram a realização de projectos inovadores. Os seus
artistas circulam por grupos do mesmo sector, especializando-se num
determinado tipo de teatro.
* Os grupos-satélites giram em torno dos grupos de teatro reconhecidos no mundo
da arte teatral e com uma actividade artística regular, sendo colaboradores
permanentes dos mesmos. Os grupos-satélites são liderados pelos artistas-
fundadores, principais responsáveis pelo seu funcionamento, nos diferentes
domínios. Estes grupos apresentam-se como pequenas estruturas de produção
artística, onde é possível a experimentação de novos conceitos e outras
formas de fazer. O seu funcionamento e a sua actividade têm subjacente um
denso sistema de redes de relações pessoais e artísticas.
* Os grupos-projectos ou grupos de artistascaracterizam-se por uma actividade
desenvolvida individualmente, um artista uma carreira (Menger, 2001).
Quando um dos membros do grupo mostra vontade de conceber um projecto, os
artistas reúnem-se apresentando, cada um, a fase em que se encontra a sua
pesquisa e a forma como esse trabalho pode introduzir-se no trabalho
conjunto. Estes grupos integram membros de diferentes áreas artísticas.
* Os grupos temporários são estruturas de produção muito frágeis. Estes grupos
podem existir pela sugestão de outras entidades e, habitualmente, fazem parte
das bases de dados das autarquias locais e das entidades privadas. Organizam
espectáculos, que mantêm em repertório, em função da sua venda. Têm um núcleo
muito reduzido de membros permanentes, pois apostam nas equipas artísticas
convidadas ao projecto. São, tendencialmente, os grupos de animação na rua e
na escola.
Esta tipologia, ainda em formulação, permitirá, mais tarde, articular a
componente descritiva e a componente estatística desta investigação. A
tipologia final divulgará importantes pistas de análise sobre o papel dos
grupos como entidades empregadoras dos artistas e profissionais do teatro, as
modalidades de trabalho em cada uma das estruturas, as estratégias artísticas e
as estratégias de gestão dos efectivos artísticos, no interior de cada um
destes grupos.
Redes de artistas: a redução da incerteza profissional?
A experiência de trabalho no terreno, que se prolonga desde 1997, permite
afirmar que o mundo da arte teatral português se organiza em redes: redes de
artistas fechadas sobre si mesmas; redes de artistas que intersectam outras
redes de artistas com estilos e domínios diferentes, com resultados visíveis na
diversidade dos trabalhos produzidos; redes de artistas com importantes
ligações a grupos, companhias e projectos, perfeitamente estabelecidos no
mercado teatral.
No sentido desta análise, é possível dizer que cada artista pertence a uma ou
muitas redes de pares que constituem o seu grupo de referência, colaboração e
avaliação do trabalho artístico. Geralmente, estas redes associam vizinhos,
pares específicos, com os quais os artistas tendem a agregar-se.
As reuniões de definição do trabalho e os ensaios de um espectáculo de teatro
podem funcionar como os momentos propícios à entrada e saída de colaboradores
que assistem à composição do espectáculo, dando sugestões, apresentando
críticas. São momentos de exposição dos artistas, decisivos para o encaminhar
do projecto. Muitas vezes, antes da estreia do espectáculo, faz-se um ensaio de
apresentação ao círculo de artistas mais próximo. No entanto, são também
conhecidos exemplos de um grande fechamento e uma forte reserva à entrada de
outros membros nos processos de criação, como ficou demonstrado no trabalho
anterior (Borges, 2001).
Sugere-se, com isto, a existência de círculos sociais com densos subgrupos que
frequentam e são habituais colaboradores dos grupos de teatro, pois as redes de
artistas podem ser efémeras e a participação num projecto pode ser de curta
duração. Além disso, para assegurar a qualidade de execução individual e a
coordenação das tarefas, os responsáveis dos projectos procuram trabalhar com
profissionais que já conhecem de trabalhos anteriores, escolhidos pelas suas
características e competências singulares, capazes de formar equipas
experientes.3
Numa pesquisa sobre as condições organizacionais do trabalho artístico, Eve
Chiapello (1998) propõe uma análise do papel das relações interpessoais e de
confiança do editor-autor, fazendo uma comparação com a situação dos
realizadores de cinema e os actores ou os encenadores e os actores.
No caso dos realizadores e encenadores, o facto de serem artistas configura um
controlo, que se considera mais aceitável, do trabalho dos outros artistas.
Apesar de se conhecerem exemplos de encenadores que não impõem, mas procuram
aproveitar a acção criadora dos actores. No entanto, qualquer que seja a
modalidade da encenação, ( ) a instauração de um clima de confiança no qual o
realizador ou o encenador não poupe o seu entusiasmo e os seus encorajamentos é
uma condição importante para o êxito da obra em curso (1998: 151). Eve
Chiapello assinala assim que a implicação de um artista na sua obra e um
contexto afectivo de amizade são condições favoráveis à criatividade.
Neste sentido, a continuidade das relações profissionais, a passagem dos
actores, dos encenadores, dos técnicos, de um projecto para outro, tem
vantagens, não só no domínio da selecção e contratação do pessoal, como também
no domínio da realização artística. Sabe-se, de antemão, o valor das equipas,
as suas competências artísticas e de sociabilidade. Porém, é também possível
assinalar algumas desvantagens, como por exemplo, a instalação de uma certa
rotina criativa nos círculos de artistas.
No que diz respeito à visível constituição dos artistas e da actividade
artística em rede é importante atender ao trabalho desenvolvido por Pierre-
Michel Menger e Victor A. Ginsburgh (1996), segundo os quais as redes, a
diversidade de papéis dos artistas, entre outros elementos, funcionam como uma
forma de reduzir as etapas, os tempos de recrutamento e as incertezas da
profissão.
De acordo com estes autores, as redes ajudam a construir relações estáveis
necessárias para obter baixos custos de transacção. ( ) Elas transmitem
informação segura e rápida sobre competências e talentos, pois a procura formal
e os processos de compromisso seriam muitas vezes ineficientes e muito
dispendiosos num esquema de trabalho temporário (1996: 351).
A articulação destes contributos com o trabalho realizado no terreno permite
dizer que os grupos de teatro se constituem em torno de redes de confiança e
redes sociais informais, responsáveis pela ligação estreita entre os vários
domínios das artes o teatro, a dança, a música, as artes plásticas e
responsáveis pela interpenetração de diferentes técnicas e formas de fazer,
capazes de enriquecer os trabalhos uns dos outros.
Por todo o país, muitos grupos de teatro poderiam servir de exemplo para
evidenciar a organização do trabalho em rede (Menger, Ginsburgh, 1996),
caracterizada por importantes nós de ligação entre os artistas rede (Le
Strat, 1998).
Por agora, assinala-se o caso do Pogo Teatro, exemplo de uma rede de artistas
que privilegiou as relações de interdependência artística com um grupo
reconhecido no panorama teatral nacional, os Artistas Unidos. Mostrando-se
fechado às influências de outros grupos de teatro, o Pogo mantém redes de
relações com outros mundos da arte, movimentando-se num intrincado círculo
social e beneficiando da intersecção de redes de criadores da cultura de
vanguarda e da colaboração com escritores, arquitectos, coreógrafos,
bailarinos.
Grupos de teatro como o Pogo, a Orquestra Dramática O Bife, a Alta Performance,
o Útero, o Teatro Bruto, o Teatro Plástico, o Meta-Mortem-Fase, o Depois da
Uma Teatro?, entre outros, existem somente quando surge uma ideia para
realizar um projecto e um conjunto de artistas se reúne para o concretizar.
Estes grupos reúnem redes de artistas que se autodenominam profissionais e
mentores de projectos artísticos no domínio do teatro performance, vídeo, artes
plásticas. Alguns destes grupos e projectos mantêm uma ligação a outros grupos
de teatro estabelecidos no mundo da arte teatral, com os quais promovem
colaborações definidas por projecto.
Com o decorrer dos ciclos de vida das estruturas, os grupos definem a sua
situação jurídica e consolidam o projecto. O seu enquadramento artístico é
favorável à inovação em termos de instrumentos, técnicas, materiais e temas
tratados nos espectáculos. Mas, claro está, a colaboração de uns e outros
depende da disponibilidade para o projecto, pois é necessário desenvolver
actividades paralelas e encontrar outras fontes de rendimento. Poucos conseguem
viver, exclusivamente, desta actividade.
Não apresentando o mesmo perfil artístico e social das companhias de teatro
profissionais dos anos 70, estes grupos desenvolvem a sua actividade,
pontualmente, através das diminutas estruturas de produção de que dispõem.
As redes de relações, das companhias-famílias aos grupos temporários, captadas
ao longo do trabalho no terreno, acentuam a singularidade da ligação pessoal e
profissional dos artistas e assumem-se como plataformas de interconhecimento e
subsistência no mundo da arte teatral. Mas serão estas redes uma forma evidente
de reduzir o risco nas profissões artísticas? Estar-se-á face a um mecanismo de
suporte para os períodos de incerteza? Ou tratar-se-á apenas de um alicerce de
experimentação artística?
Os artistas micro-organizações
Sem pretender responder a todas as questões que envolvem os artistas,
profissionais em rede ou profissionais sem rede, neste momento é possível
assinalar outro traço fundamental, definidor da identidade do artista no
teatro: os artistas, gestores principais da sua actividade.
Quer sejam free-lances, quer responsáveis por um projecto teatral temporário ou
permanente, os artistas definem os seus projectos, procuram o seu
financiamento, os espaços de ensaio e os espaços para a apresentação dos
espectáculos. Assimilados os mecanismos da divulgação, os artistas encarregam-
se, eles próprios, de promover o seu trabalho. Por isso, muitas vezes, são os
responsáveis directos pela divulgação do espectáculo ou os responsáveis da
equipa que faz a ligação com o exterior.
Assim se dá conta de uma das variáveis chave do mundo do teatro e da arte em
geral: o artista que mobiliza, por si próprio, os recursos espaciais, materiais
e simbólicos necessários para desenvolver e promover a sua actividade. Estes
artistas funcionam como pequenas empresas de produção, micro-organizações,
capazes de controlar todo o processo artístico, desde a criação à produção e
divulgação de um espectáculo ou projecto artístico.
Por todas estas razões, nos diferentes tempos e momentos da construção de um
espectáculo de teatro, o artista sente as tensões, os constrangimentos entre as
suas preferências estéticas e as disposições de um pequeno empresário que
constrói uma carreira, isoladamente ou associado a grupos, companhias e
projectos de teatro. Apresentam-se, desta forma, alguns dos atributos
empresariais da carreira (Menger, 1999: 552) dos artistas micro-organizações.
É neste contexto que o artista expõe o seu laboratório ao olhar do público,
assistindo-se à crescente abertura dos espaços de criação que deixam ver o
artista em actividade, suscitando a curiosidade do público e dos seus pares.
Recorde-se o trabalho dos Artistas Unidos ao longo do seu ciclo de vida: a
realização de seminários de escrita teatral que antecedem o trabalho no palco,
os ensaios dos espectáculos abertos ao público em geral, as leituras dos textos
escolhidos pelo grupo, feitas fora do espectáculo, mas no interior do espaço de
criação.
Finalmente, do que até aqui ficou dito, é necessário não esquecer os seguintes
contributos e níveis de investigação para enquadrar a actual economia da arte
teatral em Portugal: os artistas em rede, a multiplicidade de percursos e
perfis de carreira; os artistas empresários e gestores da sua actividade; o
tipo específico de organização da produção teatral ao projecto; as ligações do
teatro a outros corpus de métiers como a arquitectura, a pintura, a dança,
entre outros; as ligações dos artistas a outras actividades, por exemplo, a
associação da prática artística à animação dos espaços, a crescente prestação
de serviços nos bairros sociais e nas escolas que apresentam dificuldades na
integração dos seus alunos.
A fragilidade e a descontinuidade das estruturas de produção teatral
A equipa artística: um exemplo de polivalência profissional
Nas artes do espectáculo reúnem-se para cada projecto, quer seja um filme, um
espectáculo de teatro, dança, ópera, etc., equipas com diversos especialistas.
O processo de criação, tal como ficou demonstrado depois dos trabalhos de
Howard Becker (1982), implica relações de cooperação e colaboração entre os
diferentes grupos de intervenientes e equipas definidas.
A aproximação sociológica deste autor aos art worlds exige ainda o recurso a um
dicionário partilhado as convenções artísticas como modo de circunscrever o
tipo e a forma de actividade colaborativa, produzindo um entendimento sobre o
significado da acção de cada membro de um grupo de teatro.
Seguindo esta linha de investigação, a criação teatral não é mais do que a
consequência da actividade coordenada de todos os profissionais e equipas,
implicando uma divisão extensiva do trabalho, mais ou menos complexa, de acordo
com as condições de produção, as condições económicas e os objectivos estéticos
do espectáculo.
A pesquisa no interior dos grupos de teatro permite observar relações originais
de trabalho, cooperação e adaptabilidade: os actores são, com frequência,
membros da equipa administrativa e da equipa de produção, acentuando-se esta
tendência nos momentos em que os grupos não têm nenhum espectáculo em cena.
Tratar-se-á da desmultiplicação do eu de que falou Pierre-Michel Menger, num
estudo intitulado La Profession de Comédien (1997)?
Neste sentido, Catherine Paradeise, num outro estudo sobre a profissão e os
mercados de trabalho dos actores, distingue três tipos de diversificação do
trabalho, ao longo das suas carreiras (1998: 39-40): a diversificação interna,
caracterizada por um elevado grau de mobilidade dentro do próprio sector
teatral; a diversificação periférica, caracterizada pela autocriação de
emprego; a diversificação externa, caracterizada pelo exercício de actividades
não artísticas.
A partir do inquérito em curso sugerem-se informações interessantes sobre a
versatilidade dos artistas-actores, entre outros, no desempenho de muitas
actividades, algumas mais próximas do seu métier do que outras. Atente-se, por
exemplo, nos responsáveis dos grupos que, de acordo com os resultados
preliminares deste estudo, desempenham as seguintes actividades dentro do
próprio grupo: encenadores, actores, cenógrafos, músicos, dramaturgistas,
figurinistas, directores artísticos, directores plásticos, directores de
produção, directores de contabilidade, directores de digressão, programadores,
produtores, gestores financeiros, gestores de projecto, gestores de recursos
humanos, formadores, responsáveis pela divulgação, itinerância, bilheteira,
operadores técnicos, entre outras.
As inúmeras funções dos membros das equipas artísticas reflectem-se na ténue
separação entre os quatro pólos funcionais a equipa artística, técnica,
administrativa e de produção e tornam-se uma característica importante das
carreiras artísticas no mundo da arte teatral: a polivalência profissional, ou
seja, a capacidade de os membros das equipas artísticas dos grupos, companhias
e projectos de teatro se desmultiplificarem profissionalmente.
Do escritório em casa para a sala de produção
O trabalho desenvolvido com os grupos de teatro permite observar que, por
vezes, na actividade artística não existe uma clara separação dos tempos e dos
espaços de criação dos espectáculos e dos tempos e dos espaços de não criação.
Para os grupos de teatro com estruturas de produção frágeis, sem sala própria
ou com uma sala em condições precárias, os lugares de trabalho, as salas de
ensaio, as salas de produção, os escritórios, as oficinas situam-se,
frequentemente, na casa de um dos membros do grupo. A mesma morada, o mesmo
número de telefone, os mesmos espaços de estar na vida social e de conceber nas
artes fazem coincidir as dimensões da vida pessoal e artística.
A crescente actividade destes grupos de teatro, ou o desenvolvimento de um
determinado projecto, podem determinar a passagem do escritório em casa para a
sala de produção. A sala de produção pode coexistir no mesmo espaço onde se
realizam os ensaios ou, pelo contrário, pode situar-se longe desse espaço e,
preferencialmente, no centro da cidade.4
A não dissociação dos tempos e dos espaços de trabalho de certos grupos de
teatro é o sinal da fragilidade de algumas estruturas teatrais ou o sinal de
que a uma forma de estar na vida corresponde uma forma de estar no palco e nas
artes. O lugar da vida é invadido pelo lugar de trabalho, a sala de estar é a
sala de produção, os amigos são os artistas com quem se constrói o projecto.
Espaços alternativos ou espaços disponíveis?
Uma montra ou a janela de uma galeria, o interior de um automóvel, uma garagem,
um armazém, uma prisão, um hospital, um convento ou uma igreja, estes espaços,
escolhidos pelos artistas e grupos de teatro para a apresentação de um
espectáculo, podem não traduzir uma opção estética.
Hoje, a propensão para certos grupos contrariarem os espaços reconhecidos para
a apresentação dos trabalhos artísticos é um dado adquirido que se acentua, por
razões que podem não estar directamente relacionadas com as preferências
estéticas ou as provocações das vanguardas.
A pesquisa no interior dos grupos de teatro permite afirmar que, em certos
casos, mais do que uma formulação estética profunda trata-se de aproveitar os
espaços disponíveis para criar o lugar de trabalho e o lugar de apresentação
dos espectáculos.
Depois de procederem a levantamentos rigorosos dos espaços existentes nas
cidades do país, alguns artistas, das companhias-famílias aos grupos-projectos,
conseguiram a cedência ou o arrendamento simbólico de um espaço, outros não
conseguiram firmar qualquer acordo com os proprietários dos espaços. Além
disso, as grandes salas públicas obedecem a uma programação definida que não
permite a todos os artistas aceder aos espaços onde circulam outros artistas,
grupos nacionais e de renome internacional , e os espaços circuitos-redes de
difusão dos espectáculos no país não estão definitivamente estruturados.
A existência, ou não, de uma sala própria faz emergir sinais de tensão entre as
edilidades municipais ou os responsáveis privados e os grupos de teatro que
procuram a ocupação, a cedência ou o arrendamento simbólico de novos espaços de
criação.
Importa salientar que, com o passar do tempo, as relações interindividuais de
confiança têm permitido que todo o tipo de grupos que exploram um espaço o
possam partilhar com outros grupos para a apresentação de espectáculos de
teatro, dança, música, performance, vídeo e exposições, originando mesmo as
residências artísticas.
Por fim, assinala-se uma outra forma de relação artística e espacial entre os
grupos de teatro: as co-produções. Estas relações de produção dos espectáculos
são estabelecidas entre os grupos de teatro, ou entre estes e outras estruturas
de acolhimento que permitem aos grupos que não têm sala apresentar os seus
trabalhos.
Os grupos: prisioneiros de um sector ou de um mercado segmentado?
A partir destas questões, procura-se relacionar as formas de gestão da
actividade artística dos grupos com os mercados da arte teatral: serão os
grupos de teatro prisioneiros do sector no qual se especializam, durante um
determinado ciclo de vida? Ou, pelo contrário, tornar-se-ão os grupos
prisioneiros de um mercado segmentado?
De uma forma sumária, enunciam-se algumas características importantes dos
mercados de trabalho e dos sectores de especialidade dos grupos de teatro em
Portugal.
Os festivais de teatro nacionais apresentam-se como um segmento de mercado
restrito mas estratégico, pois muitas vezes os grupos são financiados para a
realização de um festival, quando o seu próprio trabalho não foi
institucionalmente apoiado.5
Salienta-se que os festivais e encontros de teatro, realizados um pouco por
todo o país, são o momento propício para a consolidação das redes profissionais
em que os grupos de teatro se movimentam, para a realização dos compromissos de
intercâmbio de espectáculos entre os grupos e para a observação dos trabalhos
uns dos outros.
Quanto aos festivais internacionais, é notória a fraca participação dos grupos
de teatro portugueses no estrangeiro, mas apontam-se dois exemplos da possível
relação entre os grupos: o intercâmbio com grupos estrangeiros, pertencentes a
redes europeias que visam a promoção da diversidade cultural nas artes
performativas e a intensa participação do sector das marionetas que, em
certos casos, parece alimentar-se mais da sua participação em festivais
internacionais, como forma de reconhecimento do seu trabalho, do que ao nível
do mercado interno.
Podem ainda destacar-se os mercados da responsabilidade das organizações
culturais, das estruturas socioculturais e da gestão municipal, entidades que
promovem a realização e a compra de espectáculos. É o domínio das animações e
festas em salas ou ao ar livre, no qual se reconhece o importante papel das
autarquias locais na compra e circulação dos espectáculos.
Finalmente, os organizadores privados que compram espectáculos de animação de
pequenos formatos a grupos com estruturas muito frágeis, habitualmente abertos
a estruturas intermediárias. Estas funcionam como estruturas de produção cuja
finalidade é encontrar projectos para os outros grupos, promovendo uma bolsa de
clientes.
A existência de uma certa diversidade de mercados para os quais os artistas e
os grupos de teatro direccionam a sua actividade pode, em certos casos, não
justificar a especialização do grupo. A diversificação da procura conduz à
ideia de que nenhum segmento é suficientemente forte para permitir a
especialização dos grupos, cuja estratégia de flexibilidade artística permite a
adaptação dos espectáculos de um evento a outro.
O que não significa que não existam pólos específicos de actividade dos grupos,
ou seja, sectores de mercado privilegiados ao longo dos ciclos de vida dos
grupos ou numa fase específica do seu ciclo de vida.
Notas do diário de bordo: três interstícios artísticos
Algumas notas sistematizadas do diário da investigação funcionam como um
elemento de análise que permite apurar, a partir dos três casos apresentados,
alguns dos contornos da actividade teatral portuguesa.
Os Artistas Unidos: uma comunidade de artistas em rede
No centro da cidade de Lisboa, o Bairro Alto aparece como um espaço isolado que
detém um modo de vida próprio, uma configuração urbana singular, pois,
concentra actividades, modos de vida e profissões ligadas às artes. Ali se
desenvolveu a actividade de um dos grupos mais marcantes no domínio do teatro
profissional em Portugal, nos anos 90: os Artistas Unidos.
Inicialmente muito ligados à figura de um encenador e a uma estrutura de
produção bem montada com um número reduzido de membros, os Artistas Unidos
rapidamente se tornaram um viveiro de artistas. Gravitam à sua volta outros
grupos-satélites e, ao mesmo tempo, os Artistas Unidos desenvolvem,
continuamente, o seu trabalho enquanto empresa de produção.
Não se tratando de uma estrutura fechada ao exterior mas de um conjunto de
pequenas empresas de produção artística, muitos são os artistas que se
interligam, identificam e colaboram. Com o decorrer do ciclo de vida dos
Artistas Unidos, alguns desses grupos-satélites consolidaram-se e
autonomizaram-se. Foi o caso dos Actores, Produtores Associados e do Depois da
Uma Teatro?
N'A Capital, os Artistas Unidos reúnem, regularmente, outros grupos de artistas
que preparam e organizam múltiplas iniciativas, dando uma visibilidade
recíproca aos seus projectos. É neste jogo de interacções criativas que se pode
aplicar o conceito de artista em residência (Le Strat, 1998: 101).
O nome do grupo remete desde logo para uma comunidade de artistas, cujo
trabalho se desenvolve num espaço quase em ruínas, com inúmeras
potencialidades, aproveitadas na concepção de cada espectáculo, como por
exemplo, na escolha dos autores, dos textos, dos temas, na ausência de aparatos
cenográficos, etc.
Trata-se de um teatro que contextualiza o artista na cidade e questiona, em
momentos de convívio colectivo, as transformações sociais e políticas, a vida
em comunidade, a vida urbana, a modernidade, a solidão dos heróis. A este
propósito, propõe-se a consulta do trabalho realizado anteriormente, onde se
descreve, com detalhe, o processo de criação deste círculo de artistas, na mesa
e no palco (Borges, 2001).
A dimensão da co-presença de artistas e unidades de produção no mesmo espaço de
criação prende-se com a ideia de trabalho em comum (Le Strat, 1998: 95).
Caracterizado por formas de gestão partilhada do lugar, a ideia do trabalho em
comum prevê uma partilha do mesmo espaço físico, a mesma forma de ver e fazer
arte. É como se todos estes artistas residissem no mesmo lugar e no mesmo olhar
perante a arte e a criação teatral.
O Bando: um novo ciclo de vida
O grupo de teatro O Bando nasceu em Outubro de 1974 e começou a trabalhar nas
velhas cozinhas do Palácio de Sintra. Em 2000, e depois de uma longa história
em Lisboa, o grupo optou por sair do centro da cidade instalando-se em Palmela.
De uma sala na cidade, este grupo de artistas conseguiu, finalmente, aproximar-
se do universo bucólico, que tantas vezes inspirou os seus espectáculos, e
alojou-se numa quinta. O espaço que antes fora ocupado com as manjedouras dos
animais foi, parcialmente, arranjado para que o grupo começasse a trabalhar.
Definiram-se, desde logo, os planos para a nova casa. Adivinha-se aquilo a que
se pode chamar uma pequena quinta-aldeia, preparada para receber outros
grupos de teatro, especialistas, investigadores e amigos do grupo.
Uma vez que já existiam dois casarões e uma pequena casita, não foi deixada ao
grupo a possibilidade de fazer grandes alterações. Antes de mais, a construção
e a reestruturação deste espaço não obedece a uma questão de gosto ou a uma
motivação ideológica. Mas, essencialmente, a uma disposição sociológica e
económica. Pensa-se o espaço tendo em conta os contornos das novas realidades
da actividade artística deste grupo.
Nos dias de hoje, o grupo mantém a singularidade artística que tão bem se lhe
conhece. No entanto, a grande ruptura com os anos anteriores dá-se ao nível do
perfil da companhia-família ou companhia em comunidade, características da sua
fundação, nos anos 70.
Na generalidade, o ciclo de vida das companhias portuguesas com vinte a trinta
anos de existência sofre alterações profundas nos anos 90. Os exemplos das
companhias-famílias no teatro português deixam de existir, enquanto estruturas
que agregam, permanentemente, as mesmas equipas artísticas, com um conjunto
implícito de regras, utilizadas na prática artística e quotidiana, e com
importantes modalidades de solidariedade e protecção social.
Grupos de teatro, como O Bando, alteram um certo número de disposições
organizacionais, sociais, territoriais que lhes permitem, hoje, funcionar como
qualquer outra companhia de teatro micro-empresa, com um núcleo reduzido de
membros permanentes e relações de trabalho definidas ao projecto.
No entanto, a concepção de um espectáculo de teatro n'O Bando continua a ser
uma experiência comunitária. Os ensaios podem ser vistos e comentados pelos
residentes permanentes do grupo, pelos colaboradores pontuais e pelo próprio
investigador. As refeições são partilhadas na cozinha do grupo, onde se
conversa do trabalho feito até então. O lugar de construção dos espectáculos e
de convívio entre os membros das equipas artísticas, técnicas e de produção
adquire uma importante função social.
A experiência comunitária, desenvolvida nestes espaços de criação, pode
assegurar aos artistas mais jovens a transição entre os anos de formação e o
período de maturidade profissional. A procura de experiências profissionais
diversas, no teatro, na dança, no cinema e na televisão, impede que os artistas
permaneçam num único grupo ou trabalhem com um único encenador. O
enriquecimento do seu curriculum e da sua carreira não permite aos artistas
permanências prolongadas nos grupos de teatro. Apenas o tempo suficiente para o
desenvolvimento de novos projectos.
Nos anos 90, grupos com as características das companhias-famílias como O Bando
têm dificuldades em manter as suas equipas durante longos períodos. As
estruturas artísticas tornam-se menos pesadas do que nos anos 70 e 80, pois as
companhias fazem uma redução obrigatória dos efectivos permanentes, tornando-se
muitos deles colaboradores regulares que gravitam em torno do grupo, originando
os grupos-satélites.
Este novo ciclo de vida d'O Bando permite afirmar a importância do seu papel
enquanto placa giratória das equipas artísticas. Uma vez que, por um lado, o
grupo não pode sustentar equipas muito grandes, optando por equipas flutuantes
e, por outro lado, o modelo de comunidade permanente parece não interessar às
novas gerações de artistas.
Mas não será esta componente das experiências em múltiplos projectos uma forma
de o artista lutar contra o risco destas profissões, à semelhança do que se
passa noutros países da Europa?
O Teatro Regional da Serra de Montemuro: da aldeia para a cidade ou o
contrário?
Em algumas aldeias portuguesas podem encontrar-se histórias de teatro amador,
feito por grupos de jovens que se reúnem, ao fim do dia, para conversar e
construir espectáculos. Mais tarde, será a ocasião para reunir toda a aldeia e,
por vezes, as aldeias vizinhas.
Estes momentos são importantes focos de sociabilidade e interacção entre todos
os residentes da aldeia dos mais jovens aos mais velhos , mas raramente ou
nunca se consegue fazer desta actividade uma profissão. Um exemplo pontual, que
pode contrariar esta afirmação, surge com o Teatro Regional da Serra de
Montemuro, cujo projecto, amador e depois profissional, nasce numa aldeia
chamada Campo Benfeito, na freguesia de Gosende, no concelho de Castro Daire.
Desde há muitos anos atrás, existia nesta pequena aldeia um grupo de teatro
amador. Nos anos 80, alguns jovens mantêm a tradição, reunindo-se para
conversar e ensaiar, depois de um longo dia de trabalho no campo. Em 1990, por
intermédio de um organismo internacional, o Instituto das Actividades
Culturais, chega à aldeia um animador de nacionalidade inglesa com a missão de
estimular o grupo de jovens, para o desenvolvimento de actividades culturais.
O grupo decidiu fazer a recolha das histórias de vida, expressões e cantares
conhecidos pelos mais velhos da aldeia. Estas longas conversas e a passagem dos
testemunhos de vida entre as diferentes gerações de habitantes (são cerca de
cinquenta habitantes fixos, em 1999) foram motivos suficientes para manter o
projecto, além das fronteiras impostas pelo exterior.
Actualmente, quatro dos seis membros do Teatro Regional da Serra de Montemuro
pertencem ao projecto inicial. Constituído por quatro indivíduos naturais da
aldeia de Campo Benfeito três são actores e um é o responsável pela
carpintaria de cena , o grupo integrou, em tempos diferentes, dois membros
vindos do exterior: um, de nacionalidade inglesa, fez a animação do grupo de
jovens, é actor e vive há dez anos na aldeia; outro é natural de Vila Nova de
Famalicão, integra a equipa de produção e está há um ano com o grupo.
Desde o princípio, o acaso foi um factor preponderante no ciclo de vida deste
grupo. Nos primeiros tempos, começaram o seu trabalho longe do interesse por
uma actividade desenvolvida no mundo da arte profissional: dois deles faziam
espectáculos de palhaços e malabarismo para apresentar nas aldeias e povoações
vizinhas e o seu trabalho revestia-se de um estilo experimental com formas
artísticaspeculiares.
Depois de sucessivas experiências fora do mundo da arte teatral organizado, o
grupo revitalizou o projecto e, hoje, todos trabalham como profissionais,
vivendo em exclusivo desta actividade. Mas como foi possível chegar até esta
estrutura artística profissional? Como é que se iniciaram e se desenvolveram os
percursos profissionais destes artistas?
As palavras de todos os elementos do grupo confirmam a importância do primeiro
trabalho desenvolvido com o escritor português Abel Neves e o espectáculo
construído para o efeito: Lobo-Wolf (1995). Mais tarde, durante a apresentação
deste trabalho, no festival de teatro FINTA, em Tondela, o julgamento de um
crítico de teatro, num jornal diário de grande tiragem, despoletou a
curiosidade, sendo progressiva a reputação do grupo e o reconhecimento pela
cidade.
Os apoios públicos e o aceder às salas mais conceituadas de Lisboa com lotação
esgotada permitiram a consolidação da actividade do grupo na aldeia, onde fazem
sempre a antestreia dos espectáculos, e a sua descoberta, fora dela.
O reconhecimento do grupo favoreceu a divisão das tarefas, mantendo-se o
desempenho de uma multiplicidade de funções tão diversas como, por exemplo, o
actor responsável pelo desenho de luz e pelas ligações eléctricas de todo o
espectáculo.
Os quatro actores dizem ter pouca formação profissional (apenas um deles fez um
curso em Inglaterra), mas muita experiência e treino no palco, dadas as
inúmeras representações que têm feito dos seus espectáculos por todo o país, da
aldeia à cidade.
O Teatro Regional da Serra de Montemuro é um interstício artístico na aldeia,
reconhecido pela cidade, com as suas imposições, formas de apoio e legitimação
do trabalho desenvolvido. É caso para perguntar: será a cidade o filtro
necessário para a legitimação de um grupo? Poderá a cidade funcionar como um
impulso compensador para revitalizar as culturas urbanas desenvolvidas fora do
espaço físico da cidade?
Os artistas do Teatro Regional da Serra de Montemuro apresentam, por agora,
diferenças muito grandes em relação aos artistas das cidades e à sua forma de
estar na arte e no teatro. O que distinguiu o seu trabalho dos outros artistas
e grupos de teatro foi o facto de ter sido feito sem os constrangimentos das
convenções artísticas contemporâneas. Atendendo a estas características, será
possível utilizar o conceito de artistas naive, de Howard Becker (1982: 265)?
Qual será a evolução artística e social do Teatro Regional da Serra de
Montemuro?
Conclusão
Neste artigo cruzaram-se duas dimensões da actividade teatral: os percursos dos
artistas-actores, encenadores e as modalidades de organização das suas
trajectórias de profissionalização nos grupos, companhias e projectos de
teatro.
O artigo foi construído a partir destes dois vectores de investigação, tendo em
conta as pistas levantadas pelo enquadramento teórico e pelo trabalho
desenvolvido no terreno da pesquisa. Houve ainda a preocupação de incluir no
texto algumas notas do diário de bordo, resultantes do trabalho com três grupos
de teatro.
A análise, centrada em algumas das características mais importantes do mundo
teatral português, evocou o carácter eminentemente urbano da espacialização da
actividade teatral e da concentração dos seus profissionais. Uma discussão à
volta do tema permite avaliar a importância desta actividade como um espaço de
efervescência cultural, social e profissional.
Numa reflexão mais aprofundada acentuou-se a especificidade de uma variável
chave no universo do teatro, a existência dos artistas em rede. Estes
profissionais gerem as incertezas da sua carreira através da associação a
outros artistas, com afinidades mútuas, e através da sua ligação a diferentes
projectos, uns de carácter permanente e outros de carácter temporário.
Está em causa não só a diminuição dos tempos de recrutamento dos profissionais,
a produção e a concepção dos espectáculos de teatro, como também a redução dos
riscos inerentes a uma profissão sem rede.
Além disso, salientou-se a importância das relações de trabalho estáveis e da
multiplicidade de experiências profissionais desenvolvidas pelos artistas,
dentro e fora do mercado do teatro. Foi neste sentido que se anunciou o
aparecimento dos artistas gestores da sua actividade, capazes de mobilizar, por
si próprios, os recursos necessários para a constituição de um grupo ou a
realização de um espectáculo de teatro.
Na realidade, os artistas definem e concebem múltiplos projectos, procuram o
seu financiamento, tentam criar, gerar, promover as condições da sua produção.
Esta é, cumulativamente, uma situação de polivalência profissional que exige
uma grande capacidade de adaptação a diferentes tarefas e compromissos: o
actor, o encenador, o director artístico é, ao mesmo tempo, o dirigente do
grupo e o pequeno empresário que constrói a sua carreira, individualmente e no
seio de um grupo, companhia ou projecto de teatro.
O enquadramento das questões centrais, levantadas anteriormente, exigiu uma
reflexão sobre a diversidade sociológica da actividade teatral portuguesa,
descrevendo-se o funcionamento dos grupos de teatro em articulação com os
comportamentos profissionais dos artistas.
Assim, de uma forma sumária, as companhias-famílias apresentam-se como nichos
de estabilidade, importantes para a consolidação de uma carreira e placas
giratórias das equipas artísticas; os grupos micro-empresas são viveiros de
artistas que circulam pelo mesmo sector de especialização; os grupos-satélites
são espaços de experimentação com intrincadas redes de relações; os grupos-
projectos são liderados por artistas de diferentes áreas; os grupos temporários
integram artistas convidados por espectáculo.
Finalmente, assinalaram-se algumas das fragilidades dos grupos de teatro quanto
às suas condições de produção, apresentação e circulação dos espectáculos.
Destacou-se, como aspecto fulcral deste vector da investigação, que os grupos
de teatro são entidades empregadoras, preferencialmente, de dimensões
reduzidas, com um carácter flexível e um papel importante na definição das
trajectórias individuais da carreira dos artistas.
Notas
1 O último trabalho foi realizado no Departamento de Sociologia (mestrado em
comunicação e cultura), no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da
Empresa (ISCTE). Intitulou-se Todos ao Palco! Estudos Sociológicos sobre o
Teatro em Portugal e foi publicado pela Celta Editora, em Fevereiro de 2001.
2 De acordo com os resultados preliminares do inquérito, as cidades de Lisboa e
Porto concentram o maior número de grupos, companhias e projectos de teatro.
3 A pesquisa em curso demonstra que 2/3 dos grupos escolhem os actores através
de conhecimentos pessoais e 2/5 fazem-no através das suas anteriores
participações no próprio grupo.
4 De uma amostra mais vasta podem servir de exemplo dois casos: o Espaço
Ginjal, ocupado pelo grupo O Olho, é um casarão onde, no primeiro andar, se
encontram três salas de produção e de novas tecnologias, uma pequena sala de
ensaios e, no rés-do-chão, a sala de espectáculos é, simultaneamente, a oficina
de construção, montagem, arrumação dos cenários e a bilheteira. A sala de
produção da Sensurround situa-se no Chiado, no centro da cidade de Lisboa, e a
sala de ensaios e apresentação dos espectáculos situa-se no Armazém da Costa
Cabral, em Santos, onde estivera também a equipa de produção.
5 As manifestações culturais que resultam destes festivais têm, normalmente, um
funcionamento autónomo; trata-se de uma segunda estrutura de produção. Neste
domínio, o emprego mais estável é o emprego administrativo e de gestão: as
funções de direcção e comunicação podem manter-se durante alguns meses, mesmo
que o festival dure uma ou três semanas. O emprego mais flexível é o dos
artistas actores, encenadores, músicos, entre outros. Os técnicos ocupam uma
posição intermédia, numa lógica de permanência.