Usos da ruralidade: apresentação
Usos da ruralidade: apresentação
João Leal*
1. Em 1996 teve lugar no Museu Nacional de Etnologia (Lisboa) a exposição O
Voo do Arado. O título da exposição (e do catálogo que a secundou) visava
chamar a atenção para as transformações profundas que o mundo rural português
conheceu nas últimas décadas. Já então era de facto evidente que em Portugal, à
semelhança de outros países europeus, se assistia a um processo de pós-
ruralização, cujas marcas ' económicas, sociais e culturais ' eram cada vez
mais claras.
Esse processo de pós-ruralização do país teve reflexos importantes na produção
antropológica portuguesa das últimas décadas. Historicamente estruturada '
entre 1870 e 1980 ' em torno de uma orientação ruralista, a antropologia
portuguesa viu-se de alguma forma empurrada para a necessidade de rever essa
sua orientação preferencial. Nascia, assim, uma antropologia portuguesa pós-
rural.
Uma das expressões dessa nova antropologia tem sido a multiplicação de novos
objectos e de novos terrenos ' situados resolutamente fora do universo da
ruralidade ' na reflexão antropológica sobre Portugal. Uma parte significativa
da produção antropológica portuguesa ' centrada em contextos urbanos,
industriais, étnicos ' passou assim a situar-se para além desse horizonte
ruralista. Simultaneamente, desenvolveram-se novos modos de gestão da herança
ruralista da antropologia portuguesa, estruturados em torno da investigação da
ruralidade e da cultura popular, não já como objectos de estudo em si, mas como
práticas discursivas construídas a partir desses objectos. Isso traduziu-se, em
primeiro lugar, na afirmação de uma direcção de trabalho orientada para o exame
dos discursos historicamente produzidos, quer no âmbito da antropologia
portuguesa ruralista quer no âmbito de outras áreas ' geografia humana, artes,
literatura ' que ao longo de um período de mais de um século tematizaram o
popular e o rural. E traduziu-se, em segundo lugar, no desenvolvimento de uma
linha de trabalho atenta ao modo como a ruralidade e a cultura popular
continuam a configurar, no novo contexto de pós-ruralização do país, recursos
importantes para a construção de discursos vários sobre tradição e raízes que
têm vindo a povoar a paisagem cultural e ideológica portuguesa contemporânea.
Alguns desses discursos têm por protagonistas agentes sociais ligadas às novas
comunidades pós-rurais. Outros desenvolvem-se nos contextos da diáspora
portuguesa, recente ou longínqua. Outros, ainda, atravessam campos tão
heterogéneos como as artes plásticas e a criação musical ou as políticas
estatais para o mundo rural.
2. Os artigos reunidos no dossiê que a seguir se publica inserem-se nestas duas
linhas de trabalho e são, nessa medida, um contributo para a consolidação e o
alargamento deste campo de estudos pós-rural.
A primeira direcção de trabalho está representada através dos artigos de Vera
Marques Alves, José Neves e Sónia Vespeira de Almeida, que abordam um conjunto
de construções discursivas sobre a ruralidade, situadas no arco temporal longo
que vai dos anos 1940 ao imediato pós 25 de Abril.
O artigo de Vera Marques Alves debruça-se sobre os discursos e práticas
etnográficas desenvolvidas durante o Estado Novo pelo SPNSNI. O tema em si não
é novo, mas a perspectiva desenvolvida pela autora introduz um conjunto de
elementos até agora insuficientemente explorados. Assim, no plano dos conteúdos
discursivos, Vera Marques Alves, para além de revisitar a estreita associação
entre a cultura popular e os discursos de identidade nacional, dá especial
ênfase à particular concepção de cultura popular subjacente à política de
espírito de António Ferro. De facto, no seguimento de uma orientação que
começa por se desenhar na etnografia dos anos da I República, a cultura
popular é, para o Estado Novo, sinónimo de arte popular: os seus camponeses
são sobretudo camponeses estetas: produtor[es] de peças de arte
encantadoras, ele[s] próprio[s] transformado[s] em figura[s] de adorno e em
objecto[s] de contemplação. Mas é sobretudo na tocante à caracterização das
audiências das acções do SPNSNI centradas na cultura popular que a contribuição
de Vera Marques Alves surge como mais inovadora. A este respeito, a autora
resgata, por um lado, a importante dimensão internacional das iniciativas do
SPNSNI. E sublinha, por outro lado, o modo como, internamente, é junto das
classes médias que se desenvolve uma parte significativa da actividade do
SPNSNI. A importância destes dois pontos deve ser sublinhada: como a autora
mostra, eles colocam-nos perante a importância dos mecanismos de reconhecimento
e competição internacional e de nacionalização das classes médias na construção
das identidades nacionais na Europa do século XX.
Quanto ao artigo de José Neves, debruça-se sobre o lugar da cultura popular e
da ruralidade na produção literária de Alves Redol, uma das figuras cimeiras do
neo-realismo português. Alargando o estudo das formas de tematização do popular
para a produção literária, o artigo de José Neves confronta-nos sobretudo com o
universo das etnografias espontâneas produzidas à esquerda no decurso do
Estado Novo. Este ponto ' ao qual voltaremos ' deve ser enfatizado. Longe de
ser um recurso mobilizado exclusivamente pelo poder estadonovista, a cultura
popular e a ruralidade foram também intensamente tematizadas ' de modo
alternativo ' pela esquerda, no quadro de uma guerra cultural em que estavam em
discussão diferentes modos de definição da cultura popular e das suas
virtualidades. No seu argumento, José Neves está particularmente atento às
formas específicas desta construção da ruralidade à esquerda em Alves Redol.
Nela avultam, entre outros, dois motivos. De um lado, um fascínio pelo mundo
rural ' especialmente claro na monografia Glória do Ribatejo ' marcado em larga
medida pelo mito do comunismo primitivo. Do outro, a tentativa '
particularmente evidente no romance Gaibéuse no conto A Vida Mágica da
Sementinha ' de pôr esse mundo em diálogo com uma concepção da história marcada
pelo elogio obeirista da modernidade industrial, que era apanágio do
sovietismo russo. Por intermédio destes e doutros motivos é uma imagem
alternativa do povo ' onde a ruralidade dialoga com alguns grandes tópicos do
pensamento comunista ' que Alves Redol propõe.
É também de imagens alternativas do povo que fala o artigo de Sónia Vespeira de
Almeida sobre as Campanhas de Dinamização Cultural e Acção Cívica desenvolvidas
pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) no imediato pós-25 de Abril. Orientadas
para o contacto directo e para o esclarecimento político--cultural das
populações, as campanhas privilegiam uma concepção de povo que, deixando de
fora o operariado industrial e agrícola, o faz coincidir com o Portugal dos
campos e das aldeias, da agricultura familiar, assente numa clara dicotomia
entre o Sul ' já politicamente consciente ' e o Norte ' onde haveria que
despertar os camponeses para a sua vocação revolucionária. Privilegiando esta
ruralidade a norte, as campanhas discursá-la-ão, entretanto, de modo
paradoxal. Assim, o povo rural do Norte é visto, por um lado ' na linha, por
exemplo, do discurso contra-pastoral que marca em plano de relevo o Inquérito à
Habitação Rural(1943-1947) ' como um povo atrasado, miserável, um povo
condenado pelo fascismo ao subdesenvolvimento. Mas, ao lado desta narrativa
negativa, que se organiza em torno do nexo camponeses ' fascismo, desenvolve-
se uma outra, construída em torno de uma visão romântico-revolucionária da
cultura popular, que procede ao elogio da ruralidade num tom de valorização
das culturas locais concebidas como a expressão autêntica de um povo'. Estas,
reprimidas pelo Estado Novo, seriam o terreno a partir do qual os camponeses se
poderiam constituir em sujeitos históricos da revolução.
3. Os artigos de Luís Silva e Sandra Xavier colocam-nos, na linha da segunda
grande direcção de trabalho que comecei por pôr em evidência, perante alguns
usos contemporâneos da ruralidade como universo ideológico.
O artigo de Luís Silva aborda os processos de patrimonialização e
turistificação dos campos que são uma das expressões principais da pós-
ruralização do país. Centrada no turismo em espaço rural (TER), a sua
contribuição está sobretudo interessada nas motivações que conduzem os turistas
' maioritariamente citadinos da classe média ' a procurarem este tipo de
turismo. Entre essas motivações, como o autor defende, ocupam lugar de
particular relevo imagens culturalmente construídas da ruralidade. Animados por
uma sensibilidade pastoral, os frequentadores do TER vêem o campo como um lugar
autêntico, onde é possível fugir à artificialidade e ao stress da vida
citadina. Essa autenticidade é pensada em vários registos. Mas há dois ou três
que me parecem particularmente relevantes. Por um lado, ela é pensada num
registo que tem a ver com os modos de sociabilidade: o campo seria um espaço de
relações sociais mais genuínas, que seriam ilustradas pelas próprias relações
personalizadas que, no quadro do TER, se estabelecem entre hóspedes e
hospedeiros. Por outro lado, essa autenticidade é vista como algo que
permitiria o re-encontro com o país autêntico, uma espécie de mergulho
revigorador no Portugal profundo. Finalmente, essa autenticidade é pensada no
próprio registo da identidade pessoal: como sublinha Luís Silva, a
frequentação dos campos por parte dos citadinos proporciona a oportunidade para
[estes] recuperarem a sua própria autenticidade.
O artigo de Sandra Xavier, finalmente, transporta-nos para os encontros com a
ruralidade da arquitectura paisagista portuguesa contemporânea. Centrado num
dos mais destacados arquitectos paisagistas portugueses ' João Gomes da Silva
', o seu artigo navega em águas próximas da contribuição de Luís Silva. De
facto, o projecto sobre o qual o artigo se debruça é um projecto implantado
numa herdade alentejana, tendo em vista conjugar o uso agrícola actual do
território com o seu futuro uso (eco)turístico. Partindo deste estudo de caso,
Sandra Xavier mostra como a arquitectura paisagista de Gomes da Silva reserva
uma lugar de particular destaque a tipologias rurais, vistas, mais uma vez '
neste caso por intermédio do conceito de genius loci', como mais autênticas. A
autora começa por estabelecer uma genealogia intelectual das ideias de Gomes da
Silva. Nestas, para além da influência de arquitectos paisagistas como Caldeira
Cabral e Ribeiro Telles, avultam as lições do Inquérito à Arquitectura Popular
Portuguesae dos arquitectos ' como Álvaro Siza ' interessados no diálogo entre
tipologias eruditas e tipologias populares e, por fim, as tematizações da
cultura popular da antropologia portuguesa dos anos 1950 e 1960. Mas, através
do recurso ao conceito de objectificação da cultura, está sobretudo interessada
em mostrar os processos de selecção, descontextualização e reinterpretação
que presidem à transformação das tipologias rurais em critério para a
construção de paisagens destinadas à fruição estética e lúdica.
4. Encarados no seu conjunto, os artigos publicados neste dossiê são um
contributo relevante para uma cartografia mais diversificada dos discursos,
históricos e contemporâneos, produzidos a partir da ruralidade e da cultura
popular.
Essa cartografia reforça linhas de interpretação já adquiridas, relacionadas,
por exemplo, com a importância das práticas discursivas sobre a ruralidade na
paisagem cultural, ideológica e política do país ou com a multiplicidade de
protagonistas envolvidos nessas práticas discursivas. Simultaneamente, sublinha
a pertinência do desenvolvimento de linhas de reflexão ainda insuficientemente
estruturadas.
Uma delas tem a ver com a possibilidade e a necessidade de uma caracterização
mais exacta deste campo discursivo. A acumulação de estudos começa de facto a
possibilitar (e até a exigir) que se comece a pensar nalgumas grandes
constantes que parecem reger o seu modo de funcionamento. Este parece assentar
num conjunto diverso mas limitado de tropos que mantêm entre si uma relação
sistemática, feita de recorrências, de oposições e de transformações. No quadro
deste dossiê, é por exemplo flagrante a lógica contrastiva que separa os
discursos do Estado Novo dos discursos à esquerda ' como os de Alves Redol ou
do MFA ' sobre a cultura popular. Mas essa guerra cultural não disfarça o modo
como Estado Novo e MFA pensam ' cada um à sua maneira ' o povo como um lugar de
criatividade cultural mais genuína. De igual modo não deixam de surpreender as
similitudes entre a tematização comunista do povo em Alves Redol e o modo
como os frequentadores do TER vêem o campo como um lugar de relações sociais
mais autênticas. Se incluirmos na comparação a tematização do comunitarismo
agro-pastoril de Jorge Dias, torna-se inevitável constatar a persistência deste
tropo, bem como as suas transformações. As similitudes entre os modos de
tematização da ruralidade na arquitectura paisagista e na antropologia
portuguesa dos anos 1950 e 1960 ' que poderiam ser alargadas a disciplinas como
a geografia humana ' devem também ser sublinhadas. Verificar até que ponto e de
que modo estes ' e outros ' jogos de diferenças e similitudes obedecem a
padrões dotados de alguma consistência parece pois ser uma das direcções de
trabalho que este dossiê ' somando-se a muitos outros estudos anteriores '
ajuda a tornar mais clara.
Outra linha de reflexão prende-se com o exame dos agentes sociais envolvidos
nos discursos sobre cultura popular e ruralidade. Durante muito tempo, a
investigação nesta área privilegiou os discursos produzidos pela inteligentzia.
A maior parte dos artigos publicados neste dossiê sugere entretanto a
pertinência da consideração mais atenta de outros agentes sociais. Entre eles,
deve ser sublinhada a importância do Estado e das políticas estatais, tratada
nos artigos de Vera Marques Alves, de Sónia Vespeira de Almeida e de Luís
Silva. Na mesma linha deve ser também enfatizado o modo como tanto o artigo de
Vera Marques Alves como o artigo de Luís Silva sublinham o envolvimento das
classes médias ' na qualidade de destinatárias e consumidoras ' nos discursos
construídos a partir da ruralidade. Em ambos os casos, de formas diferentes,
somos confrontados com a necessidade de combinar produção, circulação e
consumo/apropriação na análise dos discursos sobre o popular. Presente noutros
estudos ' que têm privilegiado, por exemplo, desdobramentos locais deste campo
discursivo ' esta direcção de trabalho é vital, se quisermos perceber e
caracterizar melhor a importância social deste tipo de representações e o modo
como elas desenham de forma efectiva as paisagens culturais e ideológicas que
continuamos a habitar.
*Departamento de Antropologia da FCSH (UNL) e Centro de Estudos de Antropologia
Social (ISCTE)