Diasbola: futebol e emigração portuguesa
É de seu momento de jogo que o futebol vive. De cada impulso dessa
presença germina a esperança que algo inesperado acontecerá. É por
isso que o futebol catalisa potências que do jogo esperam algo
distinto da confirmação da ordem estabelecida. A profissionalização
do futebol foi o que permitiu que sua prática fosse estendida a
muitos que, de início, dela estavam excluídos ' trabalhadores,
judeus, imigrantes, descendentes de escravos. Para eles, o futebol é
mais do que o elemento acessório mais importante do mundo: é uma
outra vida o que ele promete (Claussen 2006: 133, tradução de
Alexandre Vaz).
A narrativa e o consumo do futebol português constituem dos elementos mais
visíveis da cultura popular e quotidiana entre os emigrantes portugueses e seus
descendentes em contextos diaspóricos. Muitos dos espaços portugueses que
funcionam como pontos de encontro fora do país de origem ' tais como bares,
restaurantes e associações ' são decorados com ícones do futebol português, e a
teledifusão internacional de jogos de clubes portugueses ou da seleção nacional
atrai a esses lugares mais visitantes do que o normal. Juntamente com a prática
efetiva desta modalidade desportiva, organizada por portugueses ao nível amador
como atividade recreativa e de lazer, a identificação, a adesão e o consumo de
futebol (também por via das novas tecnologias da informação e da comunicação)
proporcionam um meio de ligação entre portugueses espalhados pelo mundo e
destes com pessoas e lugares do seu passado, bem como um espaço para
performances de pertença nacional e para atividades de lazer comuns.
O futebol de alto nível, ou associativo e recreativo, e a identificação
futebolista (fandom) encontram-se hoje amplamente disseminados em diferentes
continentes, culturas e classes, sendo por isso considerados fenómenos globais;
[1] apesar de um envolvimento muito mais maciço dos homens, o número de adeptos
e praticantes do sexo feminino é também cada vez maior.[2] Uma vez que pode ser
vivido e partilhado para além das fronteiras nacionais, sociais, culturais e
linguísticas, o futebol proporciona um código de comunicação universal; e, no
caso dos apoiantes portugueses a viver fora do país, um imaginário de um
Portugal moderno. A imagem de um Portugal moderno, transmitida por espetáculos
mediatizados de futebol de primeira linha, contraria as narrativas e por vezes
as memórias cristalizadas de um país em grande medida rural e subdesenvolvido,
preservadas em fotografias a preto e branco e transmitidas pelos pais (os
chamados migrantes de primeira geração) aos seus filhos. Assim, o consumo de
futebol representa um terreno comum de atividade lúdica e de identificação com
Portugal entre diferentes gerações de portugueses, muitas vezes sustentando em
particular as relações entre pai e filho.
O futebol é um tópico de conversa e funciona como uma plataforma de interação
que os migrantes portugueses (interessados) partilham com indivíduos e grupos
etnicamente diferentes nos seus (nem sempre tão) novos ambientes.[3] Em
alguns dos contextos diaspóricos que examinámos, o futebol funciona também como
instrumento político de uma minoria e como um meio de alcançar fins económicos
e adaptativos, além de contribuir para a construção da etnicidade portuguesa.
Tais perspetivas comparativas provêm de quatro estudos de caso incluídos neste
dossiê. Os estudos de caso integraram o projeto de investigação internacional
Diasbola, que analisou o papel do futebol entre emigrantes portugueses e luso-
descendentes em oito contextos diaspóricos.[4] A ideia para esta pesquisa
surgiu de anteriores trabalhos de campo sobre emigrantes portugueses realizados
pelos investigadores envolvidos, em Maputo, Hanôver e Hamburgo, Paris, na
região da Nova Inglaterra (EUA) e em três cidades canadianas, uma experiência
que apontava para a considerável importância e impacte deste desporto entre os
nossos grupos de estudo.[5] Por conseguinte, o projeto visava caracterizar o
futebol em comparação com outros elementos culturais utilizados pelos migrantes
para, por exemplo, estabelecerem vínculos com o seu país de origem, elementos
esses aparentemente cruciais na criação e performance de processos de
construção de comunidade e portugalidade nos contextos pós-migratórios.
No presente texto, além de oferecer perspetivas sobre os resultados
comparativos, tentarei situar o futebol enquanto formação social e cultural no
campo de estudo mais alargado da emigração portuguesa. Os avanços neste campo
constituíram a nossa segunda fonte de inspiração (sendo a primeira a forte
visibilidade do futebol no terreno), uma vez que este conhecimento académico
orientou de modo crucial o estudo. Aqui, as referências ao papel do futebol na
vida quotidiana da diáspora são praticamente inexistentes, ao contrário do que
se verifica noutras áreas temática ou conceptualmente relevantes, como os
estudos de desporto ou a antropologia do desporto. Assim, e com referências a
estas áreas, a presente introdução redefinirá o intuito deste estudo
interdisciplinar em termos de questões de pesquisa, perspetivas, métodos e
conclusões gerais, antes de apresentar os estudos individuais que o integram.
A emigração portuguesa
700 mil novos emigrantes em 10 anos ' assim se intitula uma reportagem
publicada em junho de 2010 na Visão, uma revista semanal portuguesa orientada
para a classe média.[6] De acordo com os números apresentados para os fluxos de
emigração entre 1885 e 2005, só a década de 1965-75 registou um movimento mais
acentuado, assistindo-se então à emigração de um milhão de indivíduos que
abandonaram o país por razões económicas. A emigração foi sempre um aspeto
integrante da história social do Portugal moderno (Baganha 1998 / 1999; Serrão
1977; Trindade 1981), e continua a sê-lo. Lubkemann refere-se à emigração como
um fator historicamente significativo que tem moldado a sociedade e identidade
portuguesas há pelo menos quatro séculos (Lubkemann 2002: 192). Falando em
termos latos, a migração para o estrangeiro e o ultramar começou no período
das Descobertas, intensificando-se com as incursões nas Américas e, ao longo
dos séculos do colonialismo português, na África e na Ásia (Higgs 1990). As
dificuldades económicas, sobretudo nas zonas rurais de Portugal (Boura et al.
1984; Silva et al. 1984; Brettel 1986), continuaram a ser a principal razão
para a emigração portuguesa, que no século XX integrou os fluxos intraeuropeus
do pós-guerra, ao passo que o fenómeno da migração altamente qualificada (e
geralmente de curto prazo) (Delicado 2008) só adquiriu alguma visibilidade e
atenção académica nos anos mais recentes. Porém, é certo que os atuais padrões
de emigração são diferentes (Esteves 1991; Peixoto 2002; Pires 2002), ao
incluírem mais fluxos originários dos centros urbanos, projetos de migração
sazonais e temporários, maior variedade de destinos e maior diversidade do
nível educacional e ocupacional daqueles que deixam o país.[7]
O importante impacte da emigração portuguesa reflete-se vivamente numa ampla
variedade de estudos académicos sobre migrantes portugueses no exterior.[8] Os
estudos iniciais realizados nas décadas de 1970 e 80 (tal como se verificava em
outras academias europeias) focavam principalmente os fatores económicos
(Almeida e Barreto 1970; Serrão 1977; Trindade 1981; Boura et al. 1984; Silva
et al. 1984) e o (mito do) possível regresso (Ferreira 1984; também Boura et
al. 1984; Silva et al. 1984; Brettel 1986). As questões relacionadas com a
mudança cultural e os fins adaptativos nos contextos pós-migração em breve
passaram a receber a atenção dos investigadores que trabalhavam sobre e com
emigrantes portugueses, sobretudo a partir do momento em que a vida do
emigrante se converteu em vida familiar e, algumas décadas mais tarde, as
diferenças de hábitos culturais entre géneros e gerações se tornaram evidentes
(Almeida 1975; Beauchesne e Esposito 1980; Trindade 1986a, 1986b; Cunha 1988;
posteriormente Feldman-Bianco e Huse 1995; Cunha 1997; Carreiras et al. 2007).
Os processos que evidenciam a manutenção e reconstrução (de elementos) da
cultura de origem e da ligação ao país natal entre os migrantes internacionais
são centrais aos estudos da migração, uma área de pesquisa que, nesta era da
globalização e da migração internacional, abrange todas as disciplinas das
ciências sociais e não só. Na análise das mudanças das práticas culturais e
das perceções de home entre os migrantes e seus descendentes (Klimt 2000,
2009), é comum que os estudos académicos se centrem em questões de cidadania e
comportamento eleitoral, linguagem (educação bilingue), religião, casamento
intercultural, preferências de local para os rituais familiares,[9] cuidados de
saúde, dedicação a festividades tradicionais, feriados nacionais (Leal 2009),
folclore (Klimt e Leal 2005b), e na importância ou atenção que a comunidade
migrante dá à história, à política, à gastronomia, à música, às artes e aos
meios de comunicação (televisão e imprensa) do país de origem. Porém, continua
a faltar um estudo sobre a importância do desporto para os migrantes
portugueses.
O desporto na vida da diáspora
Entre as comunidades diaspóricas, a importância dada às modalidades desportivas
consideradas típicas do país de origem, bem como aos sucessos dos desportos
mainstream do novo ambiente e ao desempenho de celebridades desportivas
compatriotas, é tão antiga como a própria migração (Cronin e Mayall 1998; Darby
2009). Atualmente, é ainda mais encorajada por duas exigências fundamentais da
globalização contemporânea, nomeadamente, o aumento da migração internacional
(perda de laços tradicionais com o país de origem) e a comercialização do
desporto (a colossal importância dos direitos de transmissão internacional e o
aumento da mediatização dos eventos desportivos). Estas circunstâncias ampliam
as opções dos adeptos do desporto (Maguire 1999). A partir de meados dos anos
90, o tema tem sido objeto de interesse por parte das ciências sociais, o que
resultou num ainda pequeno mas crescente número de estudos de caso.
Particularmente inspiradoras para a nossa pesquisa foram as descrições de
Werbner (1996) do desporto enquanto espaço para a expressão de nacionalismos
de longa distância e, de um modo mais geral, das experiências societais de
minorias étnicas em contextos migratórios. A vitória ou o reconhecimento do bom
desempenho de uma equipa que é vista como a nossa equipa por parte de uma
minoria étnica parece revestir-se de particular importância aos olhos daquelas
minorias que experimentam a subalternidade no seu ambiente social (como se
verifica com mais frequência na Europa), bem como aos olhos daquelas que
desenvolveram um forte sentido de comunidade étnica distinta (como se observa
no Canadá e nos EUA). O papel do futebol nas políticas identitárias ' como
observou Werbner (1996) no caso do críquete ' parece ser menos pronunciado nos
contextos francês (como mostra o artigo de Victor Pereira, neste dossiê) e
europeus em geral, e mais forte no contexto do Canadá (cf. artigo de João
Sardinha, neste dossiê) e dos Estados Unidos (Moniz 2008), onde as políticas de
identidade baseadas na etnicidade são encorajadas pelo ambiente político geral.
Já a utilização do futebol com fins económicos se revela mais visível em
Hamburgo, na Alemanha (cf. Tiesler e Bergano, neste dossiê), e na Nova
Inglaterra, nos EUA (Moniz 2006, 2007 e 2008).
Os contextos sócio-históricos mais comparáveis com os nossos casos são os de
emigrantes irlandeses geograficamente dispersos. Portugal e a Irlanda são ambos
países de emigração. Os desportos desempenham diversas funções cruciais na
vida diaspórica irlandesa, que Darby e Hassan (2007) põem em evidência. De
acordo com estes autores, as associações desportivas dos migrantes funcionam
como redes de segurança e, no caso de alguns imigrantes, o desporto
favorecia a sua assimilação e facilitava um certo grau de aceitação em
ambientes potencialmente hostis e pouco acolhedores. Para outros, a
proficiência e o sucesso nos desportos permitiam a promoção e a preservação de
um forte sentido de orgulho e identidade étnicos (Darby e Hassan 2007: 336).
[10] Também presente no caso português está em parte o papel das associações
como redes de segurança. Embora isto não seja exclusivo dos migrantes, a
assistência a jogos de clubes portugueses transmitidos internacionalmente pela
televisão é de facto um momento em que se regista a reunião de um número de
emigrantes maior do que o habitual em espaços semipúblicos (por exemplo, sedes
de associações portuguesas) e públicos (restaurantes portugueses, espaços ao ar
livre para visionamentos dos jogos em ecrãs gigantes) fora de Portugal. Porém,
Melo (2009: 220) refere também que, no caso atual da Bélgica, o número de
atividades ligadas ao futebol excede em grande medida o número dos outros
eventos comunitários.
Todos estes estudos se concentram sobretudo na parte masculina das populações
migrantes, já que os homens se envolvem muito mais fortemente em atividades
públicas ligadas ao desporto. Até à data, pouco se escreveu sobre as diversas
funções que os desportos poderão ter para as mulheres migrantes. Entre as
exceções contam-se os trabalhos de Blecking e Dembowski (2010), que se debruçam
em particular sobre jovens raparigas de ascendência turca na Alemanha, e,
pioneira nesta área temática, Eva Juliane Mueller (2010), que conduziu uma
pesquisa etnográfica entre as migrantes bolivianas em Espanha, juntando-se como
jogadora a uma das suas equipas de futsala. Dificilmente podemos considerar o
caso de Mueller comparável ao nosso, já que o seu grupo de estudo são mulheres
que emigram sozinhas e se agrupam em contextos de trabalho e lazer, ao passo
que as mulheres portuguesas que abordámos seguiram essencialmente a trajetória
de migração dos maridos ou nasceram já no contexto diaspórico. Pelo menos estas
últimas socializam em ambientes mais diversos, que transcendem claramente as
fronteiras do seu grupo étnico.
Ainda assim, os nossos estudos de caso coincidem com os atrás referidos estudos
quanto às conclusões mais gerais: o futebol, enquanto espaço de representações
de contestação, desempenha um papel na construção, negociação e emergência
pública da etnicidade portuguesa ' em particular, mas não exclusivamente, nos
contextos do Canadá e dos EUA, onde a comunidade de adeptos e a atividade
recreativa do futebol são sobretudo uma particularidade de minorias de raiz
europeia e latina. Mas como é que as coisas se passam nos países europeus, no
Brasil ou em Moçambique, onde o futebol é visto como o desporto-rei e a
paixão pelo mesmo é partilhada pela maioria da população?
Tais papéis possíveis do futebol ainda não mereceram a atenção dos estudiosos
da emigração portuguesa; conhecemos apenas alguns comentários por parte de
investigadores que, não por acaso, examinaram contextos sócio-históricos nos
quais eram dominantes desportos que não o futebol. Edite Noivo refere a
importância dos clubes de futebol entre as comunidades portuguesas da Austrália
e dos Estados Unidos, a par da igreja, dos meios de comunicação, dos centros
comunitários, das escolas de língua portuguesa, dos grupos folclóricos e das
bandas de música que surgem sobretudo para mitigar os custos sociais e
emocionais do desenraizamento geográfico, linguístico e cultural (Noivo 2002:
260). João Leal chama a atenção para a importância dos produtos de merchandise
dos clubes de futebol portugueses nos mercados étnicos das comunidades de
origem açoriana no Massachusetts e em Rhode Island (EUA). Aqui, as camisolas e
os cachecóis dos três grandes clubes de futebol portugueses (Benfica, Sporting
e Porto) contam-se entre os produtos mais atrativos, a par de CD piratas de
música portuguesa e brasileira e de matrículas de carros portuguesas (Leal
2009: 76).
No que toca a uma verdadeira análise do papel do futebol na vida dos migrantes
portugueses, a exceção é um estudo de Miguel Moniz, promovido durante a fase
preparatória deste projeto e dedicado às comunidades lusófonas da região da
Nova Inglaterra / EUA (Moniz 2006, 2007, 2008). Resumindo, o nosso estudo foi
inspirado, por um lado, pelas mais recentes investigações na área da emigração
portuguesa (onde o papel do futebol continua a ser negligenciado) e, por outro,
pela literatura académica sobre a importância de diferentes desportos em
comunidades diaspóricas não portuguesas.
Desporto e negociações de identidade em contextos transnacionais
O desporto pode ser um locus importante para a análise das interações
transculturais e da construção identitária em períodos de mudança social. As
transformações maciças, historicamente recentes, na área das tecnologias da
comunicação, o crescimento dos mass media e a resultante corporativização do
desporto carecem também de análises capazes de elucidar o modo como o desporto
é moldado pelos contextos transnacionais ' e vice-versa. Além disso, como têm
já defendido outros autores, os estudos antropológicos sobre a comercialização
dos espetáculos desportivos podem proporcionar oportunidades para o
conhecimento das interseções entre a produção de identidades nacionais,
transnacionais e localizadas por via da circulação internacional das estrelas
do desporto e das representações mediatizadas do desporto (McGarry 2010: 153).
Nos seus estudos, antropólogos como Archetti (1998), Sands (1999, 2002), King
(2004), King e Darby (2007) ou McGarry (2010), entre outros, têm explorado a
centralidade do desporto na negociação da mudança cultural, da interação
cultural e da produção de identidade no seio de uma série de contextos
transculturais.
Tais negociações dependem em grande parte do contexto, como exemplificam as
contribuições incluídas neste dossiê. A medida em que o futebol funciona como
um aspeto chave das lutas pelo poder e a agência (agency) na organização
sociopolítica e / ou lúdica dos migrantes portugueses em interação com outros
grupos societais não é igual em Maputo, onde a paixão futebolística da maioria
da população se concentra no futebol português, e no Canadá ou nos Estados
Unidos, onde o futebol feminino é socialmente mais relevante do que o futebol
masculino, que atrai reduzida atenção das massas mas funciona como um espaço de
competição entre as minorias étnicas. E, uma vez mais, a realidade é diferente
nos contextos europeus, onde o futebol não é apenas uma paixão de minorias
étnicas, mas sim considerado o rei dos desportos masculinos na maior parte
das sociedades, e onde as políticas de imigração e integração não são de molde
a encorajar as políticas identitárias dos imigrantes, mas antes a impor a sua
assimilação.
Quanto às similaridades fundamentais entre os campos, é certo que encontrámos
indivíduos e famílias que davam pouca ou nenhuma atenção aos eventos do futebol
(português); mas não encontrámos um único local, grupo ou comunidade de
portugueses no âmbito do qual o futebol português e as referências ao mesmo
estivessem ausentes em contextos públicos ou semipúblicos. Esta presença
verificava-se quer se tratasse de corretores da bolsa ou de estudantes
universitários em Londres, de visita aos menos sofisticados bares portugueses
de Stockwell por ocasião de um jogo clássico da primeira divisão portuguesa,
quer ainda de mulheres portuguesas de certa idade, que saboreavam e
aproveitavam a ausência dos maridos para se reunirem fora de casa, algures na
Europa, e assistirem a um jogo Sporting-Benfica (provavelmente o mesmo). Quando
nos detemos nas particularidades dos campos, e voltamos à questão da construção
identitária, vemos que a análise do papel (ou dos papéis) do futebol nos
diversos contextos diaspóricos portugueses aponta para um outro aspeto em
comum: a natureza altamente performativa e ambígua da produção de identidade
nos contextos globalizados.
Perspetivas e questões de pesquisa
Ao explorar o problema das diferenças e similaridades entre diversas populações
humanas e no seio de cada uma delas, a antropologia sociocultural procura
empenhadamente compreender sociedades complexas à luz de uma perspetiva
comparativa e do conhecimento de contextos de menor escala. Assim, propusemo-
nos comparar a vida quotidiana de comunidades diaspóricas portuguesas de
diferentes contextos no que concerne a uma única instituição: neste caso, o
futebol. A tarefa já foi anteriormente empreendida relativamente a outras
instituições ' por exemplo, num número temático da Etnográfica organizado por
Klimt e Leal (2005a), cujos autores se debruçaram sobre comunidades diaspóricas
portuguesas e a cultura popular, ou por Melo e Silva (2009) e coautores, que
estudaram as associações de emigrantes portugueses.
Os quatro estudos de caso apresentados no presente volume foram conduzidos
entre novembro de 2007 e fevereiro de 2010. Certas preferências metodológicas
diferiram de caso para caso, ao incluírem material de arquivo, análises aos
meios de comunicação, participação em espaços virtuais, entrevistas em
profundidade, narrativas biográficas ou entrevistas semi-estruturadas. Porém,
partilhado por todos os investigadores do projeto foi um compromisso com o
trabalho de campo, uma presença coeva de atores sociais, com vista a impedir
eventuais preconceitos decorrentes dos sistemas de conhecimento teórico.
Como ponto de partida, estávamos interessados em ver de que forma e em que
medida os emigrantes portugueses e gerações seguintes se ligam ao seu país de
origem. Como e por que razão comunicam e se relacionam com Portugal? Que
interesse têm pelos meios de comunicação portugueses? Como e até que ponto põem
em prática aquilo que consideram ser a portugalidade e a cultura portuguesa
nas suas vidas quotidianas?
Como um segundo objetivo comum da antropologia sociocultural podemos indicar o
estudo de processos e práticas culturais através dos quais a ação humana é
individual e coletivamente mediada. Ou seja, um compromisso com o estudo de
indivíduos que agem, das suas ações e práticas, mais do que com o estudo da
cultura enquanto objeto. Ao investigar diferentes gerações de migrantes, em
famílias e grupos com diferentes histórias de migração e estabelecimento, a
nossa pesquisa concentrou-se em processos e não em resultados, já que os
antropólogos culturais tendem a enfatizar a importância do processo de mudança
cultural mais do que um momento ou acontecimento específicos da história
cultural. Um dos modos de trabalhar com o conceito de cultura portuguesa de
uma forma não essencialista é respeitando a sua natureza em constante
desenvolvimento, mediante a observação dos sujeitos que, na sua autoperceção, a
realizam de facto (examinar o making of) ' e, consequentemente, mediante a
escolha de uma definição bastante inclusiva, chamando a atenção para elementos
da cultura popular e quotidiana.[11] Um dos aspetos desta cultura que a maioria
dos emigrantes portugueses não deixou para trás ao abandonar o seu país de
origem é, obviamente, a paixão pelo futebol (Neves e Domingos 2004) e, em
particular, o seu interesse por aquilo a que vulgarmente se chama futebol
português.
Se bem que, originariamente, o termo tenha surgido na vida pública portuguesa
com uma forte conotação de exclusividade nacional, como um equivalente, por
exemplo, à música, à economia ou ao teatro portugueses (Coelho 2001; Tiesler e
Coelho 2006, 2007, 2008), deverá entretanto ser entendido num sentido muito
menos essencialista, para o qual contribuíram a migração de futebolistas
portugueses e a sua celebração por parte dos emigrantes (Tiesler e Domingos
2012), bem como a comunidades de adeptos não portugueses (Pina-Cabral 2002;
Domingos 2005-2006). O conceito de futebol português não se restringe às suas
respetivas instituições, como a Federação Nacional, a seleção nacional e os
diversos clubes e campeonatos, mas inclui também o desempenho de futebolistas
profissionais portugueses que trabalham fora de Portugal e ainda os
profissionais estrangeiros que integram os clubes nacionais. Para muitos
migrantes portugueses, o termo abarca também as suas atividades recreativas de
futebol amador, geralmente organizadas por associações de futebol que fazem
referência a Portugal nos seus nomes oficiais (a este propósito, veja-se em
particular os estudos de Pereira e de Sardinha no presente volume). O caráter
vincadamente transnacional do futebol português é exemplificado e mais
profundamente conceptualizado por Domingos neste volume, num texto dedicado à
comunidade de adeptos e ao consumo de futebol entre os portugueses (com ou sem
experiência de migração, e de diferentes antecedentes étnicos) e os
moçambicanos em Maputo.[12]
O nosso principal interesse era o modo como os atores (ou agentes ' neste caso,
minorias portuguesas com diferentes histórias de migração e de diversas
dimensões em diferentes contextos geográficos e sócio-históricos) se constituem
a si próprios e organizam a sua vida social, com particular referência à
cultura popular, à performance e aos meios de comunicação. Através da lente do
futebol ' ao perguntarmos, por exemplo, De que modos o futebol participa na
mediação de construções de identidade nacionais, diaspóricas e indígenas
através das suas formas culturais populares e públicas e numa série de
contextos sociais mutáveis? ', o presente projeto levou-nos ao estudo de
formas de mediações culturais ' rituais, meios de comunicação (produção e
consumo), investimento emocional, participação em espetáculos culturais e, em
parte, a própria linguagem, fatores que medeiam as relações sociais a muitos
níveis da ação social. A análise do papel do futebol na sua formação social
(incluindo adeptos e identificação, consumo de meios de comunicação e
informação relacionados, participação enquanto praticantes ou espetadores),
particularmente quando considerado em contextos diaspóricos, pode abrir novas
perspetivas sobre uma série de práticas relevantes, envolvendo a linguagem
(Tiesler e Bergano), as emoções e a pessoalidade (Sardinha), a história
(Pereira) e a memória social (Domingos).
Os estudos de caso
No seu ensaio sobre os portugueses em França, Victor Pereira explica de que
modo o futebol tem ajudado os migrantes, na sua maioria oriundos de zonas
rurais de Portugal, a adaptarem-se a um ambiente urbano e à sociedade francesa
moderna, na qual descobriram o lazer. A sua dedicação ao futebol (português),
enquanto prática desportiva e em termos de consumo e identificação,
proporciona-lhes reconhecimento social e, pelo menos durante os noventa minutos
dos jogos, a inversão das hierarquias sociais. De facto, o número de clubes de
futebol cujos nomes oficiais fazem referência a Portugal excede em larga medida
o número total de todos os outros clubes de futebol recreativos e amadores
fundados por minorias étnicas em França. Pereira argumenta que a transmissão
de pai para filho da identificação com um clube português de primeira divisão
constitui um elemento crucial não apenas da relação entre eles, mas sobretudo
do desenvolvimento de um sentido de pertença nacional a Portugal por parte dos
elementos da segunda geração (pelo menos, os do sexo masculino).
O estudo de caso de Tiesler e Bergano em Hamburgo está contextualizado numa
pesquisa mais abrangente sobre comunidades portuguesas em contextos urbanos e
rurais na Alemanha. Foi inspirado por preocupações expressas por instituições
como a Secretaria Permanente das Comunidades Portuguesas ou o Instituto Camões,
preocupações essas relacionadas com três tendências: a perda de interesse dos
jovens luso-descendentes pela participação nas associações locais de emigrantes
portugueses; o decréscimo das competências em língua portuguesa entre os luso-
descendentes; e o facto de 95% dos emigrantes com direito a voto eleitoral não
exercerem esse direito. As conclusões das autoras sugerem que, a par do
decréscimo das competências linguísticas e da participação nas associações
portuguesas, muitos dos elementos que tinham moldado as conceções de cultura
portuguesa dos migrantes em contextos diaspóricos, tais como o folclore, o
fado, o catolicismo, o interesse pelo património português, etc., estão a
perder relevância entre os jovens luso-descendentes ' e não só ', ao passo que
o grau de importância do futebol, enquanto atividade lúdica e objeto de
identificação e consumo, parece manter-se estável ou estar até em crescimento.
A importância das novas tecnologias da informação para os portugueses que vivem
no estrangeiro e a utilização maciça das mesmas para acompanhar os eventos
futebolísticos foram confirmadas por todos os investigadores, e o assunto
merece particular destaque no estudo de João Sardinha sobre os portugueses no
Canadá. Este autor mostra-nos que os portugueses, assim como outros imigrantes
que deram o seu contributo para a crescente popularidade do futebol no Canadá,
fundaram um número significativo de equipas de futebol ao nível amador e
recreativo, nas quais participam homens e mulheres de todas as idades.
Principalmente no caso dos jovens portugueses do sexo masculino, o desporto
tornou-se uma via para a integração e a aceitação social. Porém, durante os
primeiros anos, não é a afeição pelo futebol português que permite às crianças
luso-descendentes uma tal integração e aceitação. Em vez disso, são os jogos de
hóquei nas ruas do bairro e o entusiasmo pela modalidade do hóquei no gelo que
permitem a muitos filhos de portugueses serem iguais aos outros miúdos
canadianos. Sardinha dispôs-se a avaliar até que ponto as expressões de devoção
pelo futebol português podem ser entendidas como um ato deliberado de
delineação de fronteiras, uma forma de traçar limites para a medida em que os
portugueses e seus descendentes procuram incorporar-se no seu novo ambiente,
constituindo desse modo um ato de segregação voluntária.
O contributo de Nuno Domingos torna claro que, entre todos os locais estudados
neste projeto, Maputo apresenta uma característica muito específica que
diferencia este caso de todos os outros. Em primeiro lugar, é o único local que
foi no passado recente uma colónia portuguesa, um facto com implicações
cruciais para o nosso objeto de pesquisa. Aqui, as preferências futebolísticas
não são um meio de contraste entre os portugueses e a população autóctone, como
acontece nos outros contextos diaspóricos. A posição que a população portuguesa
ocupa na estrutura de classes de Moçambique é muito mais elevada do que a
alcançada pelo emigrante português médio nos países europeus. Esta pertença,
argumenta o autor, é fundamental para compreendermos as práticas e
representações dos portugueses em Moçambique, bem como as suas relações com o
futebol. Além disso, é também de importância crucial desafiar a ideia de
comunidade. Neste caso, estamos a lidar com uma população que tem
experiências históricas muito diferentes, o que fratura qualquer ideia de uma
arena de sociabilidade única. Por outro lado, é um facto bem sabido que um
determinado padrão de sociabilidade entre os emigrantes portugueses reproduz
modos de reunião típicos da classe trabalhadora. Indispensável para uma análise
do papel do futebol na vida quotidiana da população portuguesa de Maputo é o
conhecimento da história do futebol nesta cidade desde os tempos coloniais.
Neste sentido, Domingos defende que a presença hegemónica de uma narrativa
futebolística portuguesa em Moçambique deve ser entendida como o resultado de
uma institucionalização diária de uma memória social.
Conclusão
Aquilo que procurámos fazer foi examinar o futebol na sua formação social
enquanto prática recreativa, plataforma de informação, objeto de consumo
mediatizado, referência de identificação e espaço de emoções. Abordámos os
modos como a apetência e o entusiasmo dos portugueses pelo futebol se
manifestam em oito diferentes contextos geográfico-históricos fora de Portugal,
quatro dos quais são analisados no presente volume. Os nossos estudos debruçam-
se sobre o impacte social, económico, político e psicológico desta modalidade
desportiva, que funciona de molde a apoiar a adaptação da diáspora às condições
de vida de ambientes muitas vezes difíceis.[13] Avaliámos também os modos como
a ligação dos emigrantes portugueses a este desporto lhes permitiu conciliarem-
se com os seus novos ambientes e encontrar aí o seu próprio caminho (Darby e
Hassan 2007).
Por um lado, o futebol representa um elemento particularmente forte na cultura
da vida quotidiana do emigrante, surgindo como um ponto de referência crucial,
ainda que construído, do país e / ou cidade de origem. A identificação com a
seleção nacional portuguesa ou a manutenção de uma comunidade de adeptos
expatriada, centrada num clube de futebol português, a par do consumo de
futebol mediatizado e da prática ativa desse desporto, constitui um elemento de
união transnacional e transgeracional entre os emigrantes portugueses. Por
outro lado, na sua forma social, o futebol desempenha um importante papel na
interação da população migrante com a sociedade do país de acolhimento e as
outras minorias nacionais.
O mesmo se aplica, em termos latos, a contextos diaspóricos muito diferentes,
no que diz respeito à relação entre a grande maioria dos migrantes
portugueses / luso-descendentes e o futebol. Uma análise mais profunda revela,
surpreendentemente ou não, que os modos como o futebol se estabelece na vida
social dos migrantes, assim como a sua importância e significado simbólico a
diferentes níveis de interação no (não tão) novo ambiente, são variáveis.
Tudo dependerá do contexto histórico (local, urbano / rural) específico, onde
entram em jogo as relações históricas (ou respetivas narrativas) dos dois
países em questão, as relações de poder e as hierarquias sociais, a história
migratória dos portugueses, os seus antecedentes socioeconómicos, e a história
de imigração (incluindo de outras populações migrantes) e respetivas políticas
das sociedades de acolhimento.
Assim, a identificação futebolística desempenha diferentes papéis nos contextos
diaspóricos ' papéis de segregação tanto como de abertura intercultural,
unificação (sobretudo no seio de comunidades migrantes heterogéneas) e até de
emancipação.
Embora o futebol, na sua formação social e nas suas funções possíveis, seja
moldado por dinâmicas societais particulares de cada contexto diaspórico
específico, proporciona também uma dinâmica que dá forma ao contexto. Este
aspeto torna-se particularmente evidente quando examinamos as relações de
poder, as hierarquias sociais e as conceções da imagem do próprio e do outro.
Enquanto bem cultural, o futebol não surge apenas como um objeto de consumo e
de identificação, mas também como um indicador de espaços portugueses (tais
como restaurantes e associações, decorados com emblemas de clubes e fotos de
equipas), um veículo das estratégias identitárias de minorias étnicas, uma
plataforma para manifestações de pertença nacional, um elemento de união entre
gerações e uma linguagem ou código universal na interação com outros grupos
societais. Por último, mas não menos importante, os eventos relacionados com o
futebol português e / ou as suas celebridades, transmitidos a nível global,
alimentam a imagem de um Portugal moderno ' uma imagem que facilita a
identificação afirmativa com o país também entre os jovens e mais recentes
emigrados.