Tu não és daqui estás só aqui durante um tempo!: explorando os lados sombra
de uma experiência de trabalho de campo
Neste texto proponho-me refletir sobre a etnografia como metodologia e como
processo de produção de conhecimento, no quadro de experiências interpessoais
ocorridas no percurso de um trabalho de campo na fronteira luso-galega (2000-
2004).[1] Para tal, falarei de relações e interações sociais que mantive com os
sujeitos do meu estudo durante esta pesquisa que resultou numa etnografia
escrita em inglês na universidade de Manchester.[2] Em particular, dou conta de
três (im)previstos que me marcaram pessoalmente, refletindo sobre essas
situações não apenas como experiências pessoais, mas também sobre a forma como
resultaram em conhecimento etnográfico. Durante o período em que estive no
terreno realizei uma pesquisa que fez uso de meios visuais (vídeo e
fotografia), vivendo durante quinze meses seguidos (2000-2002) em Tourém
(Montalegre) e na zona de fronteira citada, com períodos mais curtos em 2003
e 2004. Durante aquele tempo, vários episódios marcaram a minha experiência,
que, como qualquer outra de longa duração, foi única, intensa e criadora ou
redescobridora de novos traços de identidade.
Foram episódios nos quais os limites metodológicos, no sentido do que se
poderia pressupor ser a normalidade do processo de investigação (existindo
normalidade em trabalhos de investigação desta natureza), foram levados a um
extremo tal que me implicaram em necessárias considerações éticas. Considero-os
como imprevistos no sentido em que, literalmente, não esperava que tivessem
surgido naqueles momentos; ou seja, não os previra antecipadamente. Todavia,
por terem acontecido, tiveram um efeito muito importante ' o de estimular uma
atitude continuada de refletir sobre o modo como ia conhecendo.
Por outro lado, e como referirei, sinalizaram de forma clara que eu não estava
sozinho ali. Tudo o que fazia era visto e analisado por aqueles que queria
estudar e, no limite, era a minha própria forma de investigar
antropologicamente que estava a ser analisada pelos sujeitos da minha pesquisa.
Talvez não formulados de um modo consistente pelos próprios, a verdade é que
estes episódios imprevistos foram matéria importante não apenas para mim e para
a minha reflexão mas, igualmente, para aqueles que estudava. Através daqueles
episódios, a minha pesquisa tornou-se mais visível ou, provavelmente, a minha
presença mais óbvia.
Refiro, mais em particular, dois episódios relacionados com etnografia
convencional e um relacionado com etnografia visual, que fizeram estranhar-me
numa suposta antropologia feita em casa.[3] Os imprevistos na minha etnografia
estão intimamente ligados a processos de estranhamento, auto ou
heterossuscitados. Isto é, a imprevisibilidade das situações clarificou as
minhas ignorâncias, expondo, neste sentido, a minha exterioridade ou não
pertença àquele contexto social particular (apesar de ser parte do meu país).
Em concreto, abordarei (i) a avaliação negativa do meu envolvimento opinativo
num debate local sobre a passagem do gado na aldeia feita por um nativo
residente, (ii) a ameaça que um homem me fez por entrevistar a sua mulher no
café e (iii) a minha incapacidade, por constrangimento moral, de filmar a morte
da Tia Lucinda, o seu corpo e os ritos associados à cerimónia fúnebre ' o que,
aliás, fez espoletar um outro imprevisto, o da reação do seu sobrinho,
exigindo-me que tivesse filmado. Foram situações e interações em que estive
envolvido e para as quais em tese e em abstrato poderia dizer que não tinha nem
tive solução clara e previamente ensinada para as enfrentar (e resolver); tive
de criativamente repensar não só procedimentos, mas, também, atitudes relativas
à minha própria investigação e àqueles que procurava conhecer.
Na verdade, a etnografia realizada implicou-me em sucessivos e distintos
processos negociais com diferentes interlocutores, fazendo reconhecer três
aspetos principais: (i) um trabalho de campo de raiz etnográfica constitui uma
experiência individual e social intensa que ultrapassa a simples esfera
profissional ou metodológica; (ii) nem sempre estamos preparados em termos de
ferramentas metodológicas e de um esclarecimento ético claro sobre situações e
interações sociais específicas que ocorrem durante um trabalho de campo de raiz
etnográfica; (iii) uma suposta neutralidade e objetividade do investigador, se
é que têm de existir, são hoje, talvez mais do que nunca, constantemente
confrontadas com os efeitos da inevitável e desejada copresença dos sujeitos
das nossas etnografias; as pessoas não estão só lá para ser conhecidas ou para
se deixarem conhecer ' são agentes ativos, coprodutores do conhecimento
antropológico que influenciam continuadamente os investigadores nas suas
tomadas de decisão e nos seus posicionamentos éticos.
No meu caso particular, este terceiro aspeto teve um impacte ainda maior
porque, por um lado, realizei uma antropologia ao nível dos indivíduos, que
partiu do pressuposto de que todo o conhecimento produzido é mediado de forma
circunstancial por elementos biográficos que influenciam as diferentes
interações e situações pelas quais vamos passando ao longo da investigação (e
não falo apenas dos indivíduos que estudei, senão dos meus próprios percursos
autobiográficos) e, por outro, porque realizei uma etnografia visual que
incluiu fotografia e filmagens. Nas imagens, os sujeitos dos nossos estudos
estão mais expostos e conseguimos acessos mais diretos não só aos seus corpos e
rostos, como às suas emoções e afetos.
Poderíamos ainda acrescentar uma outra consideração importante, em particular
no âmbito da antropologia visual, que se prende com as avaliações projetivas
por parte daqueles que são sujeitos que estudamos sobre a representação que
sobre eles será produzida; isto é, a capacidade de decidir sobre o que mostrar
e como mostrar num processo de fabricação altamente criativo sustentado por
grelhas narrativas e performativas que penetram as suas (nossas) vidas através,
nomeadamente, da televisão ou da Internet. Este pressuposto está ancorado no
reconhecimento de que as pessoas, na sociedade portuguesa, têm hoje um acesso
mais facilitado a mais informação e que, consequentemente, estão hoje mais
conhecedoras dos estudos que vão sendo feitos sobre elas.[4]
No subtítulo deste texto designo estes episódios como os lados sombra do
trabalho de campo porque se referem às dimensões da nossa presença no terreno
que nos ajudam a contar e a perceber melhor o que lá se vai passando, a
circunstanciar os diferentes processos de produção de conhecimento e
representação que encetamos desde o momento da nossa entrada no terreno até ao
seu (impossível) término. A referência à palavra sombra resulta da leitura da
obra organizada por McLean e Leibing (2007), na qual os autores se propõem
explorar as ténues ou impercetíveis fronteiras entre etnografia e vida pessoal.
São, igualmente, sombra porque são muitas vezes negligenciados ou omitidos;
ponto no qual imbrica a obsessão de Fabian (1983, 2008) na crítica a uma
antropologia que se afasta dos próprios encontros e dos momentos dialógicos que
vamos tendo ao longo do tempo de trabalho de campo e que são definidores de
muito mais do que apenas os contextos comunicativos circunstanciais, nos
momentos de trazer o terreno de estudo ao conhecimento público e publicado
(normalmente, através de artigos ou livros). Como refere Fabian, nos atos de
transcrição para texto existe sempre redução e a tendência para omitir factos e
aspetos que são definidores dos momentos de criar conhecimento; para este autor
a etnografia é sempre performativa e não apenas informativa (Fabian 2008).[5]
Neste sentido, penso ser importante ativar como referência a ideia
constantemente reiterada de que a antropologia é feita com (e para) aqueles que
estudamos. Como nos diz Ingold (2006 [2000]), numa alusão ao que considera ser
a marca distintiva da antropologia, não é só o facto de estudarmos pessoas, as
suas experiências e contextos, que nos singulariza no mundo das ciências
(sociais), mas o de o fazermos com elas; Kuper fala na [reconciliação], a um
mesmo nível, das experiências e conceptualizações do ator e do observador
(1992: 1), na procura crítica de conhecermos o que os sujeitos dos nossos
estudos pensam e fazem.[6] Não creio, igualmente, que a pergunta subjacente '
para quem é feita a antropologia? ' tenha de ser resolvida em jeito de resposta
unívoca e assertiva. Prefiro dizer que a antropologia serve para nos
conhecermos, sendo estes nós, implícitos, tão alargados quanto restritos.
Isto é, depende de muitos fatores que extravasam o trabalho mais imediato do /
a antropólogo / a que faz uma pesquisa em concreto. Fatores tão diversos como
os que se relacionam com mercados editoriais, literacia, domínio de línguas e
aplicabilidade direta influenciam os putativos destinatários da antropologia.
Por outro lado, o mundo onde hoje se faz antropologia está diferente (também
pelo facto de nele se ter vindo a fazer antropologia).[7] Apenas para referir
dois aspetos da questão, diria que não só os sujeitos da investigação são
diferentes, como são outras as possibilidades de comunicar ciência (com as
imagens a terem um papel crucial nesta mudança).[8] Estará aqui um dos pontos-
chave para o entendimento das novas condições de produção da etnografia. O
mundo muda, eu mudo, nós mudamos, eles mudam (permitam-me a cansativa
conjugação verbal) e este reconhecimento é em si suficiente para que o trabalho
de campo etnográfico mereça ser permanentemente estudado e analisado como
processo e não apenas nos seus resultados.[9] Falamos, portanto, do projeto
comparativo de uma ciência que se faz entre o local e o global ou entre os
acessos diversificados e individualizados à realidade social e a possibilidade
de abrirmos essas janelas de conhecimento à comunidade humana mais vasta
(académica e não só).[10] Como veremos, por um dos episódios retratados, a
antropologia visual permite uma maior difusão dos produtos do conhecimento e
dos processos de representação na antropologia.
DE REGRESSO… (A CASA?): UM ESTRANHAMENTO IMPREVISTO MAS NECESSÁRIO
O título deste artigo, Tu não és daqui estás só aqui durante um tempo!,
transcreve uma frase escutada e a mim dirigida aquando de um dos muitos debates
presenciados e participados na aldeia de Tourém. Recuperei-a para este texto
para mostrar como a nossa presença num contexto de investigação, por maior ou
menor que seja a afetividade, por maior ou menor que seja a ligação familiar,
no duplo sentido de parentesco e / ou de partilha de inscrições culturais e
simbólicas com uma comunidade de indivíduos mais vasta, está sempre
condicionada a fatores de estranhamento; estes estranhamentos não são só por
nós vividos e percebidos, nem que seja através da criação de novas perspetivas
ou de novos posicionamentos de observação sobre o que já julgamos conhecer (e
importa fazê-lo, em particular quando estamos em terrenos de estudo que
julgamos conhecer integralmente),[11] mas, também, acionados por todos aqueles
que não conseguem inscrever-nos em linhas de referência ou familiaridade. Nesta
aldeia, pela sua situação geográfica dentro da Galiza, esse quadro
genealógico encontra-se alargado a um território internacional do qual fazem
parte as famílias e os indivíduos das aldeias galegas mais próximas.
De Manchester, após uma curta paragem em Lisboa, cheguei a Tourém em Julho de
2000. Estranhei e estranhei-me por não conhecer e reconhecer parte do meu país.
Supus que ia fazer antropologia em casa. Num certo sentido, isso ocorreu. Mas
os estranhamentos sentidos foram muito mais determinantes. Passadas umas
semanas fui designado como o alentejano. A atribuição desta alcunha deveu-se
à minha própria inscrição familiar, que partilhei com todos aqueles com quem ia
interagindo. Toda a minha família é do Alentejo. Este facto, esta nomeada,
remeteu-me para um Sul, que, em bom rigor, facilitou o reconhecimento das
minhas ignorâncias relativas àquele Norte de Portugal. Ou seja, não só me abriu
linhas explicativas mais demoradas por parte daqueles que queria escutar e
conhecer, como, em relação ao meu próprio processo de conhecimento, me deixou
mais alerta e atento. E não foi só uma diferença entre Sul e Norte, foi também
entre um mundo rural e um mundo urbano, entre o universo universitário e o
universo agropastoril.
Disponibilizei-me a conhecer, de uma certa forma, ao aceitar ser conhecido e
reconhecido como alguém que, embora sendo português, não pertencia àquele Norte
rural. Ou seja, não era estrangeiro mas também não era um deles, em particular
no início da minha experiência etnográfica na aldeia, nos relacionamentos e
interações com os lavradores do sexo masculino. Apesar de ter identificado
experiências de relacionamento muito diferentes, porque cada pessoa tinha
histórias de socialização específicas, houve inicialmente uma desconfiança
muito grande relativamente ao que me propunha fazer por parte de alguns destes
homens, alguns sem nunca terem vivido fora da aldeia. Não obstante ter tido o
cuidado de tudo explicar, pedindo sempre autorizações para as minhas
inquirições e observações, a verdade é que, neste primeiro período de campo,
algumas pessoas negaram abordagens ou proferiram alguns insultos pessoais.[12]
Na verdade, os meus dois principais gatekeepers ' José e Maria ' tinham uma
experiência de vida fora da aldeia, o que fez com me situasse, seguramente,
numa certa distância inicial face ao grupo dos lavradores. José foi estivador
em Lisboa e, embora nunca tenha deixado de vir regularmente à aldeia, a verdade
é que não tinha, à altura da minha presença, um estatuto social local de
lavrador. Lavrador corresponde a uma autocategorização local (à escala
regional do Barroso) que designa um modo de vida assente no cultivo da terra ou
na criação de gado (a principal atividade económica na aldeia) e marca um
estatuto social enraizado numa estética de base camponesa e numa relação de
longa duração com a terra (no duplo sentido, de lugar de nascimento e de espaço
de trabalho e sustento). Cultivava a terra mas não tinha gado, a marca
distintiva principal naquela aldeia do ser lavrador. Também Maria, que
visitava a aldeia três vezes por ano, era uma lisboeta; ou seja, vivia na
Costa da Caparica há muito tempo e estava mais fora do que dentro da vida
social local. A distância relativamente aos lavradores foi sendo
progressivamente ultrapassada, em especial no fim do verão quando os
emigrantes vagaram a aldeia. Nessa altura perceberam que eu iria mesmo
continuar por ali e fiquei, de facto, por mais treze meses.
No início dos anos 1980, João de Pina-Cabral (1983) refletia sobre as
(im)possibilidades de uma antropologia em casa, salientando, em particular, as
dificuldades e virtudes de uma etnografia em contexto rural. Apesar de se
referir a um país e a um mundo que já não são assim, não deixa de ser
significativo que a minha experiência etnográfica no mundo rural português em
2000-2004 tenha ecoado muitas das coisas sobre as quais o autor reflete. Como
refere posteriormente, no prefácio à sua etnografia no Alto Minho, o
antropólogo deve identificar e explicitar todas as circunstâncias que afetam o
seu trabalho de investigação (Pina-Cabral 1986). Neste particular, o facto de
supostamente estar a fazer antropologia em casa não era para mim, nem o foi
para Pina-Cabral ou José Cutileiro (1971, 1977), uma coisa a assumir sem
considerandos. Fazia um trabalho que era sobre parte do meu país que,
provavelmente, me era mais estranha do que aquela Inglaterra urbana,
globalizada, de onde tinha acabado de chegar.[13]
OS IMPREVISTOS ETNOGRÁFICOS NO TEXTO ESCRITO E NA IMAGEM
Na etnografia que resultou desta investigação e constituiu o corpo da minha
tese de doutoramento, a experiência de trabalho de campo foi trazida para o
texto principal desde o seu primeiro momento. A tese começa com o relato da
minha primeira viagem para Montalegre e ao longo do texto, num estilo
novelístico e dialógico, vou mantendo as conversas em aberto com os indivíduos
que encontro, ao mesmo tempo que apresento os meus próprios dilemas ligados à
investigação (Martins 2005). De facto, os episódios a que me irei referir agora
estão já identificados em texto científico principal, se assim o posso
designar. Entendi que a minha presença no terreno e o modo como ela suscitou
reações, relações e interações devia ser, de forma reflexiva, tornada explícita
ao longo do processo textual de criação de conhecimento. Tal não significou,
num pós-modernismo extremo, que os objetos e os sujeitos do meu estudo fossem
tornados secundários à luz dos jogos de espelhos a que me ia submetendo e que,
por fim, seria o antropólogo a tornar-se motivo de interesse. Pelo contrário,
tratou-se de dar relevo às dimensões de subjetividade na criação do
conhecimento e representação na antropologia e reconhecê-lo na sua imensa
multiplicidade como o lado crucial da própria ciência antropológica: os
encontros, as trocas de olhares, as impressões, são matéria imprescindível da
abordagem antropológica de base etnográfica. Até porque são vários os espetros
que é possível observar numa investigação; o espetro metodológico é, muitas
vezes, abordado de forma mais ou menos explícita, diluindo o eu (pessoal,
subjetivo) em artifícios textuais ou oral-discursivos que parecem negar que
aquilo que vemos ou escutamos é intermediado pela nossa presença, uma presença
específica e definidora, por relação, do conhecimento obtido.
No âmbito da antropologia visual e, em particular, do filme antropológico, tem
existido uma crescente preocupação teórica e metodológica por dar a conhecer e
partilhar com as audiências os processos de construção das representações ' e
nem é preciso recuar aos tempos primordiais de Robert Flaherty ou, mais
recentemente, à antropologia partilhada de Jean Rouch ou colaborativa do casal
MacDougall. O virar da câmara para o realizador, o ouvir-se a voz de quem
pergunta, o sentir da presença de quem filma é hoje, numa certa cinematografia
do real, procedimento metodológico fundamental ' disponibilizando a quem vê e
conhece, intermediamente, a posição física e social de quem foi intermediário
dessa relação de conhecimento (não só no momento do contacto direto da recolha
de imagens mas, igualmente, da edição posterior). Falamos de reflexividade e de
subjetividade nos processos de produção de conhecimento através das imagens
(Pink 2001, 2003).
A este propósito importa também referir uma questão crucial que se coloca de
forma cada vez mais premente no seio da pesquisa com meios visuais e que tem
suscitado, no Reino Unido e em particular no âmbito do ESRC (Economic and
Social Research Council), uma produção muito abundante de texto (AAVV 2008).
Falo sobre os diferentes níveis de consentimento para efeitos de produção e
divulgação de conhecimento sobre outros. Os autores, reconhecendo proximidades
e zonas de confluência entre métodos visuais e métodos convencionais,
nomeadamente ao nível das relações interpessoais que se estabelecem, enfatizam
o problema da utilização da informação e a sua posterior divulgação e
circulação não consentida ou não voluntariamente consentida em termos de
implicações totais. A questão ganha importância se considerarmos que vivemos
num mundo global em que tecnologicamente é possível manipular digitalmente a
informação e fazê-la circular por todo o lado muito rapidamente (AAVV 2008).
Por outras palavras, quando mostramos (ou falamos de) alguém damos conta de
todas as implicações da utilização da nossa informação? Daí que seja importante
falar em diferentes níveis de consentimento ' correndo o risco de, por respeito
de anonimato ou consentimento, a representação integral não ser atingida e,
logo, de a representação se tornar inapropriada. A questão está em que nos
métodos audiovisuais, que culminam em produtos como fotografias e vídeos, são
as expressões físicas, os rostos, os olhos, que conferem integralidade à
representação ' as epistemologias tácteis ou formas hápticas de conhecimento
devem muito a este acesso às sensações e aos corpos em movimento (Grimshaw
2005). Eliminar o acesso aos rostos, por exemplo, significa a aniquilação das
virtudes epistemológicas destas abordagens.
Finalmente, a opção de tornar central o processo de produção de conhecimento,
equalizando-o a um nível da própria representação e conhecimento produzidos,
foi também suscitada pelo facto de me ter proposto fazer uma antropologia ao
nível dos indivíduos (Rapport 1997; Lahire 2003), que não procurava os traços
de semelhança, mas os traços biográficos ou de história particular e individual
que individualizavam cada homem e cada mulher num quadro de efetivas
proximidades culturais e sociais.
ESTRANHAMENTOS SUSCITADOS: O QUE POSSO DIZER E COM QUEM POSSO FALAR?
O primeiro imprevisto que afloro decorreu do meu envolvimento opinativo sobre
um debate que é travado há alguns anos na aldeia, sem que efetivamente tenham
ocorrido grandes tomadas de decisão. Ouvi a frase Tu não és daqui estás só
aqui durante um tempo! passados cerca de nove meses da minha entrada e
presença no terreno de estudo. A afirmação de um reformado, ex-lavrador e ex-
emigrante, foi produzida aquando de uma intervenção minha com tomada de posição
sobre um conflito que continua a marcar as relações e representações sociais
dos indivíduos na aldeia e na comunidade; o conflito tem que ver com a passagem
do gado bovino nas ruas calcetadas (principais) do povoado. O conflito, não
totalmente esboçado na forma dicotómica pura que aqui apresento por motivos de
exposição, pode ser formulado da seguinte maneira: há pessoas que acham que a
aldeia deve manter a sua originalidade, ou seja, a sua vida e estética
camponesa, o que, curiosamente, se torna objeto de desejo do turismo
predominante no Parque Nacional da Peneda-Gerês (onde a aldeia se situa), e há
outras pessoas que dizem que o gado e, em geral, todos os animais (galinhas,
pintos, cabras, ovelhas e cavalos) deviam apenas passar pelos caminhos à volta
do aglomerado urbano ou pelas ruas secundárias, de forma a não sujar as ruas
principais nem pôr em causa a segurança das pessoas e dos veículos (toques de
chapa, retrovisores partidos, etc.). O conflito de opinião é comparticipado
também por pessoas que, não morando na aldeia, ali nasceram ou estão ligadas
por laços de parentesco e por pessoas que compraram uma segunda casa na aldeia.
A minha posição e opinião em relação ao assunto em causa foi a de que o gado
deveria continuar a circular na aldeia, não devendo existir preocupações
estéticas com a bosta deixada no chão que pode incomodar o turista, a urina
entretanto vertida pelas vacas e bois que passam, ou, mesmo, outras
preocupações ligadas aos odores. Perante a reação que tive na altura, esse
homem, de forma educada e contextualizada, disse-me: Humberto, tu dizes que
não te importas que as vacas passem, que a bosta fique porque não vives aqui,
estás aqui agora, fazes um trabalho (escreves o livro) e depois partes mas nós
estamos cá sempre, andámos descalços, partimos, voltámos. Os tempos são
outros As palavras deste homem acionaram um dos muitos argumentos possíveis
em torno da questão ' e a questão não é de fácil solução; tem que ver com o
próprio futuro das aldeias rurais como destinos meramente turísticos ou como
lugares de trabalho agrícola que podem muito bem coincidir com visitantes à
procura da paisagem, lazer e aventura. E, na verdade, esta aldeia, como outras
semelhantes, vive na fronteira de um passado rural-agrícola e de um futuro
rural-turístico, entre investimentos sustentados por apoios comunitários (que
agora começam a diminuir) numa agropastorícia de pequena dimensão e as
oportunidades de um turismo de casas rurais que explora as paisagens naturais
marcadas pelos trabalhos agrícolas (Martins 2005). Todavia, trago a afirmação a
este escrito pela importância que teve no meu próprio processo de produção de
conhecimento sobre aqueles indivíduos, aqueles lugares, aqueles passados,
aquelas memórias e relações sociais. Quando estamos a fazer uma investigação,
somos elementos neutros? Elementos implicados e aplicados? Pessoas (homens e
mulheres), simplesmente em interações normais e regulares? Quais os critérios
para definir essa normalidade, essa regularidade?
Aquele tu não és daqui, atirado, num certo sentido, a matar, obrigou a que
me posicionasse num determinado quadro de referências e possibilidades de
participação na vida da aldeia. Não foi dito, contudo, no sentido de me
excluir, de me fazer o estrangeiro ali; pelo menos, não o senti dessa forma.
Penso que, num outro sentido, poderia ser convidativo, como que uma tentativa
de implicar-me mais estruturalmente na vida da aldeia. Do género porque não
vens viver para aqui? Mas, por outro lado, também houve ali alguma
agressividade, um colocar em sentido, do género Humberto, vê, conhece, tenta
saber que nós ensinamos (mostramos) mas limita-te a isso Tenta não projetar
juízos de valor. Recuei naquela conversa, em particular, para uma posição de
escuta. A tentativa de me implicar num dos debates coletivos mais cruciais na
aldeia foi por mim travada. Afinal, tenho-o em diário de campo: ainda preciso
de recolher mais informação sobre este assunto, escrevi. Vivi ali, como disse,
quinze meses. Saí após o trabalho de campo; regresso quase sempre duas vezes
por ano, menos (ou mais) implicado, menos (ou mais) estranho. Entretanto,
iniciei uma pesquisa sobre a relação entre os indivíduos humanos e os
indivíduos animais num estudo em torno dos conflitos e perceção do ambiente em
áreas protegidas e no qual abordo, agora de forma mais focada, o debate
referido.[14] Na altura não o imaginava. Trouxe o exemplo deste episódio pela
forma como me fez perceber o meu estatuto naquele terreno particular. Não tenho
resposta óbvia ou uma solução sobre o rumo que deveria ter dado à minha
intervenção (verbal-oral). Sempre achei, numa estratégia pensada, que deveria
ter uma posição de espera (de não intervenção? De querer saber e escutar o
outro? Apenas?).
Como falar, com quem? Quando? Onde? São perguntas importantes que iluminam não
apenas reflexões de posfácio, mas experiências de momentos, etapas e processos
concretos das pesquisas ' nos quais a própria investigação se define e
redefine. Portanto, o processo de investigação extravasa o âmbito convencionado
das metodologias e técnicas ensinadas e treinadas (poderíamos mesmo falar de
atitudes e ética) e deve ser entendido como experiência social total (de
envolvimento, de sentidos, de subjetividades, de sujeitos que se conhecem
mutuamente e de negociações continuadas) ' na fórmula de Paul Rabinow,
observar observadores observando (2007). As representações e os conhecimentos
produzidos derivam destes contextos comunicacionais (culturais) que nos
envolvem.
No caso particular deste episódio, sinto que tornou também claro que os traços
culturais de uma comunidade não são homogéneos, revelando diversidades ao nível
dos seus interlocutores. De certo modo, foi isto que procurei (re)conhecer ' ou
seja, entradas individualizadas no tecido social e cultural de uma comunidade,
no âmbito de uma antropologia ao nível dos indivíduos que fizesse acionar
aspetos dialógicos suscitados pela minha intervenção. Havia quem quisesse e
advogasse um presente e um futuro para a aldeia, do ponto de vista do turismo,
alicerçado numa limpeza dos seus traços camponeses menos higiénicos, e havia
quem, justamente, pensasse o contrário. E, como disse, as posições não estavam
apenas e só alinhadas nesta dicotomia estanque. Afinal, também em relação a
aspetos de memória fui capaz de verificar, na recuperação de episódios
passados, entradas diversas que resultavam de posições distintas face aos
acontecimentos vividos. A aldeia e a comunidade não eram aos meus olhos, como
nunca foram, entidades e realidades homogéneas e uniformes (Martins 2005).
O segundo imprevisto (após três semanas na aldeia), mais inicial e talvez mais
óbvio e expectável, ocorreu quando fui ameaçado por um homem de trinta e poucos
anos. A ameaça foi feita porque dias antes, num dos cafés locais, abordara a
sua mulher, de vinte e poucos anos, para fazer umas perguntas. A minha
interpelação foi feita num momento em que o café estava cheio de pessoas
(incluindo os emigrantes). Um dia depois, por volta da meia-noite, numa rua
escura, oiço a voz de alguém que me diz: Tu tem cuidado com quem falas uma
noite dessas ainda algo te acontece. Reconheci a voz e o vulto logo a seguir.
Nunca dali a situação passou. Fiquei incomodado. Tirei muitas notas sobre o
ocorrido. A ameaça fez-me pensar se estaria a realizar bem os meus passos da
investigação ' em particular, se seria adequado entrevistar mulheres casadas,
jovens, no café, depois de jantar, durante o mês de agosto, quando a aldeia
volta a encher com o retorno dos emigrantes. Fui incauto ao tentar aquelas
abordagens? Não o fiz apenas com aquela mulher; fi-lo com outras. Procurei
respostas e possibilidades ' uma delas fez-me precisamente sentir estranho no
meu país.
Tinha chegado de Manchester, uma cidade com quase seis milhões de habitantes,
com tanta gente, com outras gramáticas sociais e culturais. Seguramente, não
seria correto fazer entrevistas a mulheres casadas, jovens, abordando-as no
café. Afinal, eu era um homem jovem. Mas as respostas não eram simples. Outras
mulheres casadas, outras mulheres entrevistadas, outros homens jovens, e nada
se passara; nos escritos alinhavados no diário de campo após o momento de
questionamento total da minha presença ali (no limite, senti por momentos que
talvez tivesse pisado o risco final de consentimentos e que a minha experiência
na aldeia tivesse terminado), passei para um processo de interpretação das
pessoas em concreto e da situação / interação em que me tinha envolvido;
afinal, eram as pessoas concretas, com nomes, identidades, biografias
específicas que teriam de ser percebidas; não era uma coisa de mulheres e de
homens no geral, apenas. Também é certo que a relação com aquele homem e aquela
mulher (e respetivas famílias) evoluiu para outras formas. A relação tornar-se-
ia afável e pude realizar entrevistas com ambos. Diria que, neste caso, estava
perante um imprevisto previsível, reconhecendo aspetos particulares marcantes
das relações homens-mulheres na aldeia e dos acessos diferenciados (permitidos
e interditos) aos espaços públicos e nos quais vemos refletidas questões de
vergonha e honra, já amplamente discutidas nos estudos sobre sociedades
mediterrânicas e do Sul da Europa. Homens e mulheres têm papéis e liberdades
diferentes no âmbito das interações e relações sociais nos espaços públicos e
nos espaços privados (Martins 2005).
É também, parece-me, característica marcante de todo o trabalho antropológico a
sua inerente imprevisibilidade, que resulta do próprio facto de a observação de
proximidade nos envolver continuadamente em situações, interações e processos
(inicialmente) imprevistos porque a escolha de estar lá com as pessoas que são
os sujeitos das nossas pesquisas nos torna interlocutores e participantes de
múltiplas situações e interações sociais também elas inimaginadas. A este
respeito podemos falar, tendo por referência a ideia de um emicismo
endoetnográfico a propósito de uma ciência social de quotidianos e proximidades
vivenciais dos investigadores (espaciais, temporais, estéticas, estilísticas,
etc.), dos constantes eticismos endoetnográficos clássicos dos antropólogos,
sempre à procura de perceberem os sucessivos estranhamentos, enigmas,
incoerências e incompreensões com os quais vão deparando. Como costuma referir
Paul Henley a propósito da realização do documentário antropológico
(observacional), um (bom) filme tem cinquenta por cento de sorte e cinquenta
por cento do reconhecimento dessa sorte,[15] o que, noutras palavras, mais não
é do que a capacidade de ter instrumentos previamente organizados para irmos
lendo a realidade social que à nossa frente vai tendo lugar ' não esquecendo,
também, que a nossa participação interativa com aqueles com os quais vamos
estando é ela mesma criadora de novas realidades sociais.
Na realização do filme etnográfico ' na esteira observacional rouchiana e do
próprio Cinema Direto, i. e., de trabalho individualizado (sem grande produção)
e de envolvimento continuado com o contexto da pesquisa e com os sujeitos
etnográficos ', a imprevisibilidade e o imponderável fazem parte, no momento da
recolha de imagens e sons, da matéria vintage da realidade social que importa
representar.[16] O ponto de ordem estará na capacidade de ir criando
criativamente uma história ali, naquela (e daquela) imensa imponderabilidade
que caracteriza as nossas vidas humanas (nada se repete) e ter depois a
capacidade de em sala de edição fazer a história fluir em formato fílmico. Esta
perspetiva segue o argumento de Behar em relação à sua atração original pelo
trabalho de campo antropológico (2003). Behar fala da ideia de partir para um
lugar e encontrar uma história que não procura, salientando, todavia, a
centralidade do autor (etnógrafo) no fazer e contar de histórias (2003). O
seu argumento é, sem dúvida, o de tornar claro o papel autoral do etnógrafo na
construção de um texto, argumento que Fabian subscreve quando enfatiza que os
textos etnográficos não se encontram, fazem-se (2008: 40) [itálico do autor].
Na verdade, reconhecer os imprevistos como parte das nossas etnografias tem
sobretudo a ver com esta proposta ' não perder, não virar a cara ao que se
passa ao nosso redor, mesmo que, originalmente, não fizesse parte das nossas
escolhas. As etnografias com trabalho de campo têm esta grande virtude '
tornam-nos atores não previstos de uma história que, não sendo normalmente
nossa, circunstancialmente se torna a nossa história normal.
IMPREVISTOS ÉTICOS (OU MORAIS?): FILMANDO A VIDA (E A MORTE)
Tia Lucinda era uma mulher de setenta e nove anos, ex-emigrante em França, na
zona de Lyon, onde trabalhou numa fábrica de chocolate. Com ela passei horas e
dias, conversando, reativando memórias que ela necessitava recuperar. Falava um
português com muitos traços do galego (na aldeia utilizam-se muito vocábulos e
expressões galegas) e muitos palavrões. Era mulher de boas memórias, da
Guerra Civil de Espanha, da emigração, da passagem de emigrantes (os
carneiros), dos seus dias com o gado no monte, da vida e das vidas na aldeia.
A Tia Lucinda vivia na Casa dos Buracos, um solar de traços nobres (pátio
interior com balcão superior ' hoje espaço de turismo rural), que eu também
partilhava com Lucília e o seu marido, o Sr. Domingos. Lucília tinha por hábito
naquela casa receber e cuidar de velhos e velhas da aldeia (não necessariamente
com ligações familiares). A troco de uma mensalidade, Lucília cuidava de
homens e mulheres em fases terminais, por idade ou doença ' entre eles, Tia
Lucinda, que, à data, se encontrava enferma com diabetes e uma cegueira
pronunciada. As nossas conversas eram terapêuticas, diria; comigo ela tinha uma
companhia e, sobretudo, as suas necessárias redundâncias narrativas ganhavam
uma nova vida porque o interlocutor era novo e queria saber tudo; as histórias
no balcão do primeiro andar repetiam-se mas a minha voz ajudava-a, de certa
maneira, a ver um pouco melhor ' a sua cegueira em estado progressivo deixava-
a muito incapacitada nos movimentos. A sua debilidade física acentuou-se. Entre
agosto e dezembro de 2000 partilhámos um espaço residencial e muitos diálogos;
foi um dos meus melhores interlocutores. Dela recordo também o seu lado crítico
em relação ao tempo de Salazar, pelas dificuldades que, segundo ela, o povo
passava e pelas perseguições realizadas pelos guardas-fiscais aos homens e
mulheres que andavam no contrabando (estrapelo) de pequena escala entre a
aldeia e aldeias galegas vizinhas.
Desde cedo decidi realizar um documentário que a tivesse como personagem
central, numa narrativa que assumisse como fio condutor o modo como os velhos
da aldeia, e em particular os mais incapacitados fisicamente, faziam o seu
tempo à conversa, ao lume, trocando passados já gastos de tantas recoleções.
Por estratégia de investigação decidira começar a filmar apenas em janeiro de
2001, passados seis meses da minha entrada no terreno. Contudo, no dia 30 de
novembro de 2000, cerca das dez da noite, Lucília diz-me que deve estar
iminente o falecimento de Lucinda. Tinha, curiosamente, acabado de trazer o
equipamento de filmar de Lisboa para iniciar alguns exercícios fílmicos. Fui
para o quarto nessa noite e a emoção tocou-me; confesso que as lágrimas
correram e não mais me preocupava a possibilidade de ficar sem interlocutor
apenas por questões de pesquisa. A opção tomada de separar as duas abordagens,
a visual e a convencional, assim o ditou.[17] Todavia, sentia que a qualquer
momento e, sobretudo, com o inverno (período em que na aldeia mais velhos
morrem), Tia Lucinda poderia falecer e o meu projeto não se concretizar. O
eventual desaparecimento da Tia Lucinda era uma coisa emocional e afetiva.
Todavia, devo igualmente confessar que a vontade de recolher as imagens
alimentava um dilema que crescia com o sofrimento de Lucinda. Via-a deitada,
moribunda com uma respiração que prenunciava a sua morte. Via-a na antecâmara
da sua partida, podia filmá-la e filmar a morte na aldeia, mostrar como se
morre (e todos os procedimentos e implicações inerentes) ' velório, funeral,
encontros de vizinhos e familiares.
Mas não fui capaz, fiquei-me pela incapacidade de trair uma relação
autorizada a um determinado nível. Tia Lucinda morreu na manhã do dia
seguinte, 1 de dezembro de 2000. Não consegui, de facto, captar imagens e
trazer depois a público os seus momentos de dor. Falhei? Coloquei o lado
emocional e afetivo à frente do lado profissional; eu estava ali para fazer um
estudo antropológico sobre indivíduos concretos, tendo por objetivo
aproximações, o mais possível, completas da realidade. Aliás, um dos sobrinhos
de Tia Lucinda disse-me num tom veemente, durante o velório também realizado
naquela casa: Mas porque não filmaste? Seria interessante lá em Inglaterra
verem isto! Eles lá não sabem como se morre e como as coisas são no Barroso
Uns meses antes tinha visto um documentário de Victor Kossakovsky (1989); no
filme Losev, durante cerca de cinco minutos, podemos seguir uma sequência na
qual um caixão vai sendo coberto de terra; antes podemos ver o defunto sendo
velado ' o seu rosto é repetidamente mostrado.
A questão dos níveis de autorização liga-se nas abordagens visuais à da própria
integridade da representação da realidade. O problema de se perder a realidade
como é, tendo de a negociar em primeira mão, tendo de a sugerir, de certo modo,
não deixa de ser um entrave importante às questões da normalidade que se
procura atingir. Para além das questões emocionais-afetivas que me impediram,
efetivamente, de dar seguimento ao meu plano de trabalho (reforço que não fui
capaz de ligar a câmara de filmar, nem tão-pouco a de fotografar).[18] Neste
episódio dois imprevistos imediatos ocorreram, o da minha incapacidade de
filmar e o da resposta imaginativa do sobrinho de Tia Lucinda, que reivindicou
a filmagem como ato de representação cultural. Deu-me uma autorização que eu
próprio recusei. No entanto, a imprevisibilidade maior residiria nas respostas
(afetivas e emocionais) daqueles que a poderiam ter visto em filme póstumo.
Enquanto personagem de um documentário Lucinda não representava uma outra
pessoa (como nos filmes de ficção). Ela morreria definitivamente.
A morte na aldeia, sobretudo porque lá viviam muitos velhos, fez parte dos meus
quotidianos, inclusive para além da minha presença física na aldeia. Num tempo
que corria aparentemente mais devagar, como se não passasse (numa certa
estética de uma vida e de uma aldeia inalterada), a morte de alguém fazia
destruir (ess)a ilusão, ativando o pêndulo da sua marcha (Martins 2005). O meu
filme, Fazendo (o) Tempo (2003), tem como personagem central Zé da Paneira.
Filmei, autorizado pelo próprio, imagens para um documentário sobre a sua vida
na aldeia como lavrador e durante a montagem / edição (já em Manchester) soube
da sua morte.[19] Num telefonema recebido disseram-me que Zé tinha morrido com
um ataque cardíaco num lameiro (de forma inesperada). Neste caso, decidi deixá-
lo em filme, perpetuando a sua vida ' em filme, num certo sentido, podemos
congelar realidades. Não foi fácil, uma vez mais, a tomada de decisão. Recebi a
notícia quando o filme já estava praticamente montado na sua versão final.
Poderia ter voltado atrás. Não o fiz. Desta vez, provavelmente por estar em
Manchester, não cedi à emoção de ver mais alguém morrer. Ainda pensei em
abandonar a representação daquele homem e das interações nas quais participava.
Tinha outro material e poderia ter feito outras escolhas. Naquele caso,
pareceu-me que mostrá-lo seria dar-lhe vida, apesar de ter mostrado o filme na
aldeia cerca de seis meses após a sua morte.
Mostrei o filme, pela primeira vez, numa sessão realizada na sede da Junta de
Freguesia de Tourém. A sala esteve cheia; pedira ao Paulo, presidente da Junta,
que organizasse a sessão e convidasse todos os habitantes (cerca de 150 pessoas
costumam viver permanentemente na aldeia), entre os quais a Maria da Paneira,
irmã de Zé, que também tem papel central no documentário, mas não foi capaz de
ver o filme. Ainda hoje (estive recentemente na aldeia em trabalho de campo e
almocei em sua casa) não se sente capaz. Os olhos ainda se humedecem, as
lágrimas correm sempre que se fala no irmão. Em 2003, quando mostrei o filme
pela primeira vez, todos os que estavam naquela sala ficaram emocionados; ouvi
(não procurei ver) gritos de comoção. Afinal, a morte de Zé da Paneira tinha
ocorrido apenas seis meses antes. A reação teria sido outra se o filme tivesse
sido mostrado apenas anos depois? Não sei. Sei que o livro de geografia humana
que Paula Lema (1978) escreveu sobre Tourém, conhecido na aldeia como o livro
verde, tem um conjunto de fotografias nos anexos finais que mostram homens e
mulheres que ainda são hoje reconhecidos e que fazem chorar familiares e
amigos. Lema estivera em Tourém quando muitos dos velhos de hoje eram jovens.
As lágrimas que se soltaram quando vi as fotografias do livro junto com aqueles
homens e mulheres revelavam falta ou ausência não só dos que morreram mas da
sua própria juventude.
As imagens têm esta virtude, não escondem as pessoas, o que não quer dizer que
não escondam atitudes e características pessoais. Também por isso, senti a
necessidade de não criar anonimato (com nomes fictícios) em relação a todos os
interlocutores que aparecem em texto escrito e em imagem filmada e fotografada.
Se o fizesse em relação ao texto estaria a desequilibrar as relações pessoais e
de conhecimento que, entretanto, fui estabelecendo. Zé da Paneira ficou em
imagem como outros ficam em texto, com nome, voz ou rosto. No caso do Zé o
acesso é mais imediato ' como experiência sensorial mais completa (ouve-se a
sua voz, o seu respirar e o tossir). Outra pessoa que aparece no filme, a Tia
Margarida, também já faleceu. Conheci o seu filho este ano, no almoço que
referi. Já ouvira falar do filme.
Não obtive autorização para exibições póstumas. Negociei em vida e com vida com
o Zé, com Margarida, com Maria e o seu marido Manuel. Escolhi-os pela sua
disponibilidade visual, por uma certa fotogenia antropológica que os tornava
mais interessantes no âmbito de uma etnografia visual. O filme mostra uma outra
aldeia, ligada ao passado, aos que são velhos, a práticas que perduram (em
texto escrito falo da mudança que coexiste com o que parece imutável), um certo
ritmo de tempo lento, como se nada tivesse sido alterado desde há muitos anos.
[20] O filme fica como registo, perpetua-os numa narrativa específica (não
tradutora de toda a realidade, é certo) e, contudo, a mudança acontece. Zé da
Paneira diz-me, também no filme (em vida, de facto), Humberto, e quando você
vier cá daqui a uns anos vai estar tudo por trabalhar tudo de monte
[referindo-se aos seus lameiros e terras de cultivo na zona de Tourém]; mesmo
os porcos já não os poderemos criar! Apesar da sua perpetuação através do
filme e da possibilidade de o manter vivo (ou, como com Maria, de o relembrar
falecido), a verdade é que Zé não pode, de facto, comprová-lo enquanto preditor
de uma realidade que afinal não pode conhecer (im)previsivelmente. A história
do futuro, todavia, fica contada por ele (e vemo-la contada por ele).
Esta é uma outra virtude do documentário e das imagens na antropologia que,
todavia, faz salientar o meu dilema relacionado com a incapacidade de filmar o
cadáver da Tia Lucinda ou enquanto morria. E se tivesse filmado a Tia Lucinda?
E se a tivesse mostrado depois em filme? Que reações teria? Como eu reagiria? É
nesta imprevisibilidade moral ' que também é ética, porque, de facto, nunca
pedi autorização à Tia Lucinda para filmar a sua morte ', não só minha mas
também daqueles que a ela estavam ligados afetivamente, que faço situar este
episódio em particular.
APONTAMENTOS FINAIS
Pina-Cabral, numa sessão de debate que animou a 11.ª Conferência da EASA,
realizada em Maynooth, na Irlanda, em agosto de 2010, discutindo o ensino da
disciplina hoje na Europa, fazia notar (não serão exatamente estas as palavras
mas mantém-se a ideia) que a antropologia não podia ficar refém de
considerandos éticos que não mais faziam do que, muitas das vezes, impedir o
acesso ao conhecimento.[21] A abordagem fazia referência a novos contextos de
investigação caracterizados pela multidisciplinaridade. Nas suas palavras
reconhecia a necessidade de avançar, ir lá, conhecer, fazer trabalho de campo,
produzir etnografias, desconstruir e dissecar os fenómenos sociais e não ter
medo de produzir representação sobre a realidade social. O desafio (ou
desabafo) energizante corresponde, também, ao da afirmação da antropologia
(social) no mundo contemporâneo, no qual enfrenta condições sociais novas (e
adversas) entre as quais encontramos as desconsiderações feitas pelas outras
ciências sociais (Pina-Cabral 1998) e as suas próprias (Strathern 2006).
Estas novas condições sociais não são, nem devem ser, inibidoras do projeto
intelectual da antropologia. Revelam, antes, novos contextos de investigação,
novos indivíduos, novas interações possíveis, novos factos e fenómenos sociais
e, necessariamente, novos imprevistos e novas mutualidades, resultantes,
também, do facto de o conhecimento antropológico ser devolvido aos indivíduos
estudados e ir permeando as estruturas e relações sociais. A morte anunciada
(por alguns) da antropologia deve servir também de estímulo à não submissão
do / a antropólogo / a, no âmbito cada vez mais comum dos encontros de diversas
epistemologias de saber (com códigos de ética específicos associados). Alguns
dos novos imprevistos previsíveis nas etnografias resultarão, seguramente,
destes contactos interculturais e interdisciplinares. Creio que a validade e o
limite de pertinência das propostas antropológicas está, avaliando a minha
própria experiência, no facto de podermos dialogar face a face ou através de
proximidades com aqueles que estudamos ' inclusive outros cientistas.[22]
Senti nos exemplos que trouxe a debate neste artigo que fiz o que tinha de
fazer. Seguramente, negligenciei trâmites básicos de uma boa prática de
trabalho de campo (isto é, não só eticamente informada como metodologicamente
refletida). Mas tomei decisões com vista a respeitar dois pressupostos que aqui
defendi ' o de obter sempre as devidas autorizações, em especial quando se
tratou de trabalhar com imagem, e o de não sobrepor a minha voz à dos
indivíduos que procurava conhecer.
Por outro lado, trouxe desde o primeiro momento os sujeitos da minha pesquisa
para o palco textual e visual da mesma. A obsessão com a presença do outro no
texto é uma constante da obra de Fabian (1983, 2007 e 2008). Assume Fabian que,
deste modo, conseguimos superar uma dificuldade epistemológica crítica em todo
o projeto antropológico e que se prende com o facto de pretendermos produzir
conhecimento com o outro mas, em texto, ele nos chegar ausente, efetivamente.
Tentei fazê-lo; falar de imprevistos e torná-los explícitos em texto principal
não só revelou os meus estranhamentos mas, sobretudo, fez descobrir encontros '
revelou mais o outro. Julgo que importa dialogar em texto com quem nos vamos
relacionando em processo mútuo de criação de conhecimento ' a representação
deve depois assegurar que os encontros permanecem, não numa espécie de
perenidade impossível (afinal são encontros circunstanciais) mas como base e
processo de fundamentação de um certo conhecimento criado. Em texto,
aparentemente, as estratégias para o fazer são simultaneamente mais fáceis e
mais difíceis de concretizar. Em imagem, as pessoas estão lá; por maior
trabalho de autoria que possa existir, mesmo no sentido da ficção total ou de
recriação cultural, chegam-nos como indivíduos, subjetivamente imensos, que não
se esgotam naquelas imagens (e daí os necessários cuidados a ter em representar
bem). Sobretudo, chegam-nos como indivíduos concretos.
Maria da Paneira, num dos últimos momentos de fala do meu filme, di-lo de forma
apurada e enquanto aquece na lareira um pote com água: Não diga a ninguém que
está a filmar em Tourém quer-nos fazer mais pobres do que já somos. Ela
reconhece a importância de um plano, de uma sequência numa cozinha antiga,
escura do fumo de anos a curar o fumeiro, da sua representação em imagem criada
simultaneamente por mim e por ela e da representação que muitos outros
espectadores criarão sobre aquele lugar, ela, eu; nunca ela havia mencionado
antes, em inúmeras ocasiões que ali estivera sem a câmara de filmar, o
(suposto) feio. É Margarida que fecha o filme e o argumento quando diz: Sempre
é melhor ver isto do que outras coisas que passam na televisão pelo menos são
coisas nossas! É este o sentido que procuro dar às minhas etnografias textuais
e visuais ' que sejam não só apenas coisas minhas (e de uma academia
[inglesa]), mas, também, de todos aqueles que represento antropologicamente em
texto escrito e em imagem e que, neste sentido, a representação dos próprios
imprevistos (da vida) seja negociada com eles.