Ser laowai: o estrangeiro antropólogo e o estrangeiro para os migrantes
chineses entre Portugal e a China
Há alguns meses, estava eu em Pequim (China) em trabalho de campo, quando
encontrei casualmente, em casa de familiares seus, uma mulher chinesa que
conheci há vários anos em Lisboa. Durante o almoço, ela convidou-me a
acompanhá-la à sua terra natal nessa noite. À tarde dirigimo-nos a uma das
estações ferroviárias mais movimentadas da cidade para comprar o meu bilhete
(ela já tinha o seu). Enquanto aguardávamos na fila de uma das bilheteiras, uma
mulher de aspeto rude, com uma criança de meses ao colo, abordou a minha amiga
e questionou-a sobre qual o seu destino. Perante a resposta, a mulher
sussurrou-lhe que já não havia bilhetes à venda, mas que ela ainda tinha alguns
lá atrás. E, olhando para mim, acrescentou: Se quiseres vens lá atrás, mas
só tu. Nós não vendemos a laowai. As duas mulheres afastaram-se e combinaram o
preço. A minha amiga pediu-me 300 yuans e as duas desapareceram na multidão.
Cerca de dez minutos depois, a minha amiga regressou com o meu bilhete.[1]
A atitude desta mulher ao identificar-me como laowai reflete, não uma ética
especial do mercado negro chinês de não vender bilhetes a estrangeiros, mas o
reconhecimento da minha pessoa como pertencente a uma categoria diferente de
pessoas. A vendedora recusou-se a negociar comigo porque a categoria de pessoas
em que ela me classificou ' os estrangeiros ' é para muitos chineses
correspondente a pessoas toldadas por uma perspetiva não chinesa e ocidental
do mundo que implica, entre outros, uma incapacidade de compreensão do modo de
ser e de estar chinês. A vendedora procurou assim evitar entrar num processo de
comunicação que ela previa repleto de equívocos.
Laowai é um termo que, para a minha interlocutora e de forma mais geral em
muitos contextos chineses, identifica um estrangeiro, ocidental. A
categoria tornou-se para mim um elemento crucial da minha identidade ao longo
destes vários anos de trabalho de campo entre chineses. Neste artigo, parto da
condição de laowai ' estrangeira, ocidental ' para refletir sobre as
condições de produção de conhecimento etnográfico em contextos chineses,
através da descrição e discussão sobre a ambivalência e a complexidade da
relação simultaneamente distante e próxima que, enquanto etnógrafa, estabeleci
com os meus interlocutores.
Sentir-se como um estranho e ser tratado como um estranho no momento em que se
inicia o trabalho de campo é uma experiência frequentemente relatada na
literatura etnográfica. Nos seus trabalhos seminais, tanto Evans-Pritchard
(1974) como Malinowski (1922) referem como lhes foi difícil ultrapassar a
barreira de stranger imposta pelos habitantes locais e como, para conseguirem
aproximar-se, tiveram de quebrar com o estereótipo do white man, comportando-se
de modo diferente dos outros brancos que por ali viviam. Contudo, não é
apenas neste sentido que pretendo explorar a problemática da condição de
estrangeiro no terreno. Recorrendo a vários recortes etnográficos registados em
Lisboa, Pequim e Wenzhou, durante o meu trabalho de campo com migrantes
chineses, procuro demonstrar como, desde o início da investigação, ao ser
classificada como pertencente a uma determinada categoria de pessoas ' os
laowai ', a minha posição no terreno ficou marcada pela perceção que os meus
interlocutores tinham dessa categoria de pessoas, passando a integrar de modo
determinante a minha etnografia.
O peso constante desta categorização ao longo da investigação levou-me a
procurar compreendê-la em termos epistemológicos. Trata-se, portanto, de um
exercício, não tanto reflexivo, de compreensão do modo como a minha pessoa
afetou a investigação, mas no sentido de procurar compreender como é que este
contexto etnográfico específico ' social, político e sobretudo histórico '
entende e classifica pessoas na categoria de estrangeiras, na qual eu fui
incluída.
No final do artigo, integro esta reflexão sobre a trama de sentidos envolvidos
na categoria de laowai nas ideias de estrangeiro próximo e de estrangeiro
distante formuladas por Georg Simmel (1979 [1908]). A condição de estrangeiro
descrita por Simmel ajuda-nos a situar as ambivalências inscritas na categoria
de laowai, que tornarei explícitas a partir desta reflexão. Perceber o que
resultou da condição de estrangeira com que lidei com os meus interlocutores,
tanto na fase inicial de campo como em situações de maior proximidade, é aqui
tomado como desafio propriamente etnográfico. A relevância do argumento aqui
apresentado é dupla e alicerça-se em lacunas na literatura. Por um lado, a
literatura etnográfica sobre a China é parca em reflexões sobre a interferência
do estatuto de estrangeiro na investigação, e menos ainda sobre o que podemos
aprender e resgatar como conhecimento etnográfico a partir do confronto com
essa classificação. A temática do etnógrafo estrangeiro na China tem sido
abordada, pontualmente, a propósito dos entraves políticos e formais à obtenção
de autorização para a realização da investigação, e das reorientações temáticas
que daí advieram (Wolf 1985; Yang 1994; Pieke 2000). Por outro lado, a condição
de estrangeiro em contextos chineses tem sido abordada através da problemática
dos chineses enquanto estrangeiros ' sojourner ' a viver em sociedades como os
EUA e o Reino Unido (Chan 2005; Siu 1952).
Argumento neste artigo que a ideia de estrangeiro difundida na China tem fortes
continuidades e nuances históricas, já que ela não reflete apenas o modo como
são percecionados os ocidentais na China, mas também o sentido de modernidade
na China e a própria ideia de ser chinês na atualidade.[2] O argumento
constrói-se a partir da reflexão sobre várias situações de interação social,
como a que descrevi no início do artigo, e que fui experienciando ao longo dos
anos da minha interlocução de campo e dos diversos modos de me posicionarem
como estrangeira (laowai). É a partir dessa diversidade de interlocuções e
interpelações que exploro aqui etnograficamente os sentidos da categoria de
laowai(estrangeiro), e procuro responder a perguntas que têm formatado o debate
sobre a questão, tais como: Como é que se pode compreender que o estrangeiro
seja uma categoria tão definitiva e tão ameaçadora na China? Como é que se
entende este paradoxo do fascínio e da aversão dos chineses por pessoas que
eles próprios classificam como laowai?
O QUE É UM LAOWAI?
A minha primeira experiência de terreno aconteceu com uma família luso-chinesa
de Macau. Estávamos em 1999. A família fora-me apresentada por uma amiga comum,
que lhes explicou que eu era uma estudante, e que queria fazer a história da
família como trabalho final de curso (era na realidade a investigação para a
tese de licenciatura). Esta ideia de escrever sobre a história de uma família
surgiu quando li Cisnes Selvagens, de Jung Chang (1998). A minha intenção era
fazer a história de uma família luso-chinesa de Macau, através de três mulheres
de gerações diferentes (avó, filha e neta). A história desta família era muito
cativante, principalmente a da avó, uma senhora de 80 anos nascida na cidade
portuária de Nagasaki, no Japão, mas educada em Pequim, donde fugira aquando da
invasão japonesa de 1937. Apesar da riqueza do material e da afabilidade da
família, ao longo dos meses que com ela interagi nunca deixei de me sentir algo
desconfortável, o que terá resultado das dúvidas e ansiedades próprias do
primeiro trabalho de terreno.
A minha ideia inicial para essa primeira investigação foi a de realizar um
trabalho sobre migrantes chineses. Rapidamente compreendi, contudo, que, apesar
de já frequentar um curso de língua e cultura chinesas, e de ter estabelecido
contactos esporádicos com alguns chineses, as dificuldades de comunicação eram
excessivas para que conseguisse levar a bom termo um trabalho de investigação.
Assim, optei por adiar esse projeto e, um ano mais tarde, fui estudar língua
chinesa para Pequim. Esse foi o meu primeiro contacto com a China. Nessa época,
as informações de que dispunha sobre a China atual eram escassas. Eu lera
algumas etnografias sobre contextos chineses fora da China continental e outras
tantas obras de história geral da China, mas, poucos dias depois de chegar,
constatei que a ideia que eu construíra sobre a China pós-maoista era confusa,
muito contraditória e pouca relação tinha com aquilo que eu observava. Os
primeiros tempos foram dominados por uma admiração e estranheza perante tudo o
que testemunhava.
As minhas experiências de viagem até então tinham sido limitadas à Europa e,
pela primeira vez, deparou-se-me o facto de ser fisicamente diferente da
maioria das pessoas que habitavam o espaço social que me rodeava, e vista como
estrangeira, ocidental, europeia. Esta perceção da diferença começou por
chegar de modo muito evidente pelas reações comportamentais das pessoas à minha
presença em locais de comércio e nos transportes públicos. Estas reações
alternavam entre a curiosidade e o tratamento diferenciado pela negativa.
Um episódio particularmente perturbador aconteceu quando visitava, na companhia
de duas amigas também portuguesas, as ruínas do Antigo Palácio de Verão
destruído em 1860 por uma invasão de forças anglo-francesas. Nos jardins que
rodeiam as ruínas e o museu encontrámos algumas jovens que, encantadas pela
nossa presença, nos pediram para tirarmos fotografias ao lado delas. Porém, no
interior do museu, onde num acirrado tom nacionalista é narrada a história da
destruição do palácio, fomos intimidadas pelos olhares de desprezo e indignação
lançados por um grupo de chineses de meia-idade que, em surdina, comentava que
deveríamos ser inglesas, o mesmo país responsável por tamanha destruição.[3]
Com o passar das semanas, e à medida que fazia progressos na língua local,
comecei a aperceber-me de que os olhares que me eram lançados na via pública
eram frequentemente acompanhados por um dedo indicador e um par de gritos
exclamando Laowai! Laowai! Outras vezes, as pessoas timidamente aventuravam-
se a perguntar-me se eu era meiguoren (americana). Laowai significa
literalmente velho (lao) de fora (wai) e é utilizado pelos chineses para se
referirem aos ocidentais, caucasianos. Trata-se de uma expressão controversa
porque, por um lado, o carácter lao pode ser interpretado positivamente, como
uma forma de tratamento familiar, se pensarmos noutras expressões em que é
utilizado, como em laopengyou ' velho amigo, ou laodifang ' o lugar onde nos
costumamos encontrar. Por outro lado, laowai tende a ser usado nas situações em
que se presume que a pessoa que está a ser alvo da referência não o vai
compreender ' não é suposto que um laowai domine a língua chinesa ' e é
frequentemente acompanhado por risos e proferido num tom irónico. Se a
expressão laowai é usada para tratar os caucasianos ou indivíduos de aparência
euro-americana, já os meus amigos de origem africana eram referidos como heiren
' pessoa preta. Deste modo, laowai oscila entre uma expressão familiar e
preconceituosa ' mesmo racista em certas situações.[4]
Durante uma visita a uma exposição dos melhores trabalhos de pintura do ano de
1999 numa galeria de arte de Pequim, eu e uma amiga chinesa parámos diante de
um dos quadros. A tela, com cerca de dois metros por um, representava de forma
mais ou menos realista o bombardeamento das forças americanas à Embaixada
Chinesa em Belgrado em Maio desse ano. O episódio tinha ocorrido há poucos
meses e fizera crescer entre a população um surto de furor nacionalista,
antiamericano e antiocidental. A minha amiga, uma dócil estudante de inglês de
17 anos, oriunda da província de Hebei, inesperadamente exclamou em inglês, num
tom contundente: I hate foreigners! A rapariga ficou visivelmente embaraçada
quando lhe perguntei se me odiava também, uma vez que eu era uma foreigner, uma
waiguoren, uma laowai. Ela olhou para mim e atalhou que apenas se referia aos
americanos. Claramente ela não estava a falar de mim, eu era alguém que estava
ali próximo, e ela referia-se a um inimigo distante, diferente, e com o qual
quase nada existe em comum. Naquele momento duas versões de estrangeiro
surgiram amalgamadas ' distante e próximo ' e geraram uma ambivalência sobre o
sentido das suas palavras. Ela encontrou uma saída na minha identidade não
americana, mas como seria se eu fosse americana?
A EMERGÊNCIA HISTÓRICA DO PARADOXO FASCÍNIO / AVERSÃO PELOS LAOWAI
Consciente do sentido racista historicamente envolvido nesta categoria de
laowai e querendo intervir positivamente na imagem da China perante os
estrangeiros, o governo chinês lançou há alguns anos uma campanha de
civilização (wenming)[5] destinada a promover o bom uso da expressão laowai,
procurando retirar-lhe o tom negativo ou promovendo o uso do termo waiguoren,
expressão mais inócua que significa pessoa de fora do país.
No célebre ensaio The stranger, Simmel (1979 [1908]) descreve um tipo de
estrangeiro especial, um estrangeiro próximo que encerra em si,
simultaneamente, as qualidades opostas de distância e de proximidade, que lhe
asseguram uma forma específica de interação social. O estrangeiro próximo de
Simmel é elaborado a partir da condição do comerciante judeu na Europa no
século XIX, enquanto a condição de estrangeiro que aqui descrevo apresenta
configurações ligadas ao contexto chinês em particular, e que se consubstanciam
na categoria de laowai.
Assim, ser laowai é uma forma particular de ser estrangeiro, constituída a
partir de processos históricos, políticos, sociais e culturais específicos. Tal
como os gregos, mencionados por Simmel (1979 [1908]), também os chineses
consideravam bárbaros os povos que habitavam a periferia do Império na
antiguidade (Gernet 1974-1975; Fairbank 1992; Dikötter 1992; Fay 1997). Ao
longo dos séculos, a Grande Muralha funcionou como barreira que estabelecia os
limites culturais (e por vezes também políticos) entre a China interior (nei),
a sul, e a China exterior (wai), a norte (Gentelle 1994).[6] Este forte sentido
de diferença cultural / civilizacional dos agricultores han em relação aos
criadores de gado das estepes permaneceu, mesmo com a entrada destes povos nos
limites do império e a conquista do poder dinástico em importantes períodos
históricos (Dinastia Yuan ou Mongol, 1279-1368, e Dinastia Qing ou Manchu,
1644-1911), permanecendo para a história como dinastias estrangeiras (não han).
Ainda que as ligações às regiões ocidentais do continente eurasiático, primeiro
pela Rota da Seda e posteriormente pelas rotas marítimas, tivessem feito chegar
estrangeiros ocidentais, nomeadamente jesuítas, à corte imperial chinesa, pelo
menos desde o século XVI, a gestão das relações com os estrangeiros seguiu
enquadrada no modelo de relações com os povos bárbaros das estepes. O Império
chinês entendia-se a si próprio como tian xia diyi ' o primeiro país debaixo do
Céu ', e o Imperador, detentor do título de Filho do Céu, seria o seu
representante máximo na Terra. Todos os outros povos e reinos eram entendidos
como inferiores e seus tributários (Gernet 1974-1975).
A partir do século XIX, a pressão das potências ocidentais provocou
transformações profundas na conceção da China sobre si própria e na sua
perceção dos estrangeiros. O sentido mais forte do termo laowai deve ser
procurado, principalmente, na relação dos chineses com a modernidade ocidental
e suas facetas de ambivalência, de fascínio e de aversão. De facto, se, por um
lado, a superioridade tecnológica e militar ocidental humilhou e vergou a
China, por outro lado, o pensamento iluminista e as sociedades ocidentais
constituíam a principal fonte de inspiração dos intelectuais chineses na busca
de respostas para a transformação da China numa nação moderna. No espectro das
influências iluministas, o darwinismo social foi uma das teorias mais
influentes entre as elites intelectuais chinesas desse período (Schwarcz 1986;
Dikötter 1992; Mitter 2004).
Este rebaixamento político e diplomático teve consequências no quotidiano das
relações entre chineses e ocidentais e deixou marcas profundas na perceção
dos estrangeiros na China. Durante o período semicolonial, do início das
Guerras do Ópio ao fim da invasão japonesa (1839-1945), estrangeiros e chineses
tinham direitos desiguais. Nas áreas de concessão das cidades portuárias os
estrangeiros eram soberanos (extraterritorialidade), e em muitos locais os
chineses não eram autorizados a entrar. Esta discriminação e atitude colonial
tornou-se incómoda, gerando a cólera dos intelectuais revolucionários
(Fitzgerald 1996; Dikötter 1992). O nacionalismo chinês fortaleceu-se pelo
receio do perigo branco (Dikötter 1992).
O encerramento da China ao exterior durante o maoísmo perpetuou uma imagem dos
estrangeiros como uma ameaça ao país, no âmbito da luta de classes e de
colonizadores e colonizados. Depois de 1978, o país foi aberto aos
estrangeiros, mas de um modo muito controlado. Até meados da década de 1990,
muitas municipalidades e algumas províncias estavam vedadas a visitas de
estrangeiros. A Política de Abertura em 1978, apesar de procurar tirar partido
do interesse económico e financeiro dos estrangeiros pela China, inicialmente
baseou o seu modo de relacionamento nas anteriores práticas discriminatórias.
Em suma, podemos dizer que a humilhação da China perante os poderes ocidentais
no século XIX constitui uma importante componente da aversão dos chineses em
relação aos ocidentais, mas, paradoxalmente, o sentimento de inferioridade
infligido foi também catalisador de fascínio. Como copiosamente demonstra Frank
Dikötter em Exotic Commodities (2006), a superioridade tecnológica ocidental
corporificada na cultura material deslumbrou a China. A apropriação de produtos
estrangeiros começou por ocorrer nas classes altas, como símbolo de prestígio,
e perpassou às classes populares através das imitações de manufatura chinesa,
operando uma revolução na vida quotidiana (Dikötter 2006). Esta perceção dos
produtos estrangeiros, ocidentais, como superiores e dos produtos
chineses como inferiores impregnou-se e manteve-se muito para além do período
da República da China. Na China pós-Mao, a ideia de superioridade da cultura
material ocidental continua a manifestar-se numa cultura de consumo transversal
à sociedade chinesa (Chao e Myers 1998; Latham 2006). Este fascínio por
produtos ocidentais é marcado pelo consumo de produtos de luxo, mas também por
um encantamento pelas indústrias culturais ocidentais, da moda ao cinema. Em
conjunto, estes produtos comunicam ideias de prestígio, modernidade e
superioridade.
AUTO-ORIENTALIZAÇÃO E OCIDENTALISMO
Xiaomei Chen (1995) analisa a relação da China com o Ocidente como um processo
de auto-orientalização que terá conduzido a um ocidentalismo. O discurso do
ocidentalismo, com origem no início do século XX (Dikötter 1992), é ainda hoje
evocado por vários grupos na sociedade chinesa, com duas finalidades
diferentes: por um lado, tem sido uma forma de o governo chinês suportar o
nacionalismo que tem como efeito a contenção interna; por outro lado, é também
a forma como a imaginação chinesa constrói um outro ocidental para disciplinar
e dominar o self chinês em casa. Este ocidentalismo popularizado pela
propaganda nacionalista do governo é dominante e continua a fazer parte de uma
forma defensiva de estar da China. O ocidentalismo de que fala Chen Xiaomei é
reflexo de uma ideia do ocidental como estrangeiro distante, mas aqui
oscilando entre a ameaça e o ideal a alcançar.
É neste contexto de ocidentalismo, de um forte sentimento de inferiorização e
de discriminação dos chineses pelos ocidentais, e de grande segregação entre
estas duas categorias de pessoas, que surge o termo laowai ' uma categoria
classificatória que ainda hoje convoca a carga de uma história de perceções e
práticas discriminatórias e desiguais entre chineses e estrangeiros.
A minha primeira experiência desta visão mais ampla da China e dos sentidos
mais vastos da expressão laowai aconteceu no fim da década de 1990, quando
residi durante dois anos num campus universitário chinês em Pequim. No interior
da universidade, estudantes chineses e estudantes estrangeiros viviam em
edifícios separados, situados em extremos opostos do campus, a uma distância
que poderia ser de quase um quilómetro. O mesmo sucedia com as residências de
professores estrangeiros e professores chineses. Os professores chineses viviam
com as suas famílias num bairro modesto contíguo ao campus, enquanto os poucos
professores estrangeiros (leitores) eram colocados num edifício de pequenos
apartamentos localizado na área dos dormitórios dos estudantes estrangeiros e
dos edifícios onde eram lecionados os cursos de língua chinesa para
estrangeiros.
Os edifícios das aulas para estudantes chineses e estrangeiros eram diferentes
e igualmente localizados em áreas opostas do campus. Apenas a biblioteca se
constituía como área comum, sem divisões predeterminadas. Havia ainda cantinas
para chineses e uma cantina para laowai. Esta última era mais cara e tinha
alguns pratos classificados como estrangeiros. O acesso às cantinas, bares,
cafés, casas de chá e campos de jogos do campus era livre, mas os preços dos
produtos e os serviços oferecidos determinavam uma segregação entre estudantes
chineses e estudantes estrangeiros.
Quando eu queria que algum dos meus amigos chineses me fosse visitar ao
dormitório, ele / ela tinha de se identificar na shifu (a porteira). Se não o
fizesse, era interpelado para o fazer, e tinha um horário específico para fazer
a visita. A shifu tomava nota da sua identificação e do horário de entrada e de
saída. Tal não acontecia com os estrangeiros, que circulavam livremente nos
dormitórios dos estudantes estrangeiros. O mesmo se repetia quando eu ia
visitar os meus amigos chineses nos seus dormitórios, na mesma universidade ou
noutra.
Neste campus os custos com a educação também eram diferenciados: um estrangeiro
pagava de propinas anuais dez vezes mais do que um estudante chinês. Era também
inferior o valor cobrado pelo alojamento aos estudantes chineses em relação ao
alojamento mais barato disponível para estrangeiros. Os dormitórios para
estrangeiros eram aquecidos no Inverno (os mais caros tinham inclusivamente ar
condicionado), acomodavam no máximo duas pessoas (a maioria era individual),
tinham casa de banho e cozinha coletivas (os mais caros tinham casa de banho
individual), água quente corrente, máquina de lavar roupa e uma televisão com
acesso a canais estrangeiros.
Os dormitórios para chineses acomodavam cerca de oito estudantes em vários
beliches, num espaço pouco maior do que os quartos dos estrangeiros. Também
tinham aquecimento, mas este era menos funcional. As roupas eram lavadas num
tanque, e eram os próprios estudantes que tinham de carregar a água quente para
a sua higiene pessoal a partir de um local no campus, mas fora do dormitório.
Apesar de a diferença de condições corresponder também a uma diferença no preço
do alojamento, a desigualdade e a rigidez do sistema era uma condição de
partida, já que um estudante chinês, mesmo que pagasse a diferença, não poderia
viver num edifício destinado a estudantes estrangeiros, e vice-versa.
O campus murado, com guardas e cancelas de alta segurança nos vários portões,
funcionava como uma pequena aldeia. Da janela do meu quarto, um primeiro andar
do dormitório feminino para estudantes estrangeiros, facilmente se ouviam, às
primeiras horas da madrugada, os treinos militares dos guardas da universidade
e, diariamente, ao final da tarde, os altifalantes espalhados por todo o campus
ecoando as posições governamentais sobre acontecimentos da atualidade.
Fora do campus, na cidade de Pequim, havia bairros específicos onde os
estrangeiros eram obrigados a residir; não eram autorizados a fazê-lo fora
desses bairros, a não ser em campus universitários, em residências ou hotéis
específicos. Estes bairros concentravam-se na zona sudeste da cidade e neles
não viviam chineses, que apenas ali trabalhavam como empregados de limpeza,
cozinheiros, motoristas e amas para a população estrangeira residente. Os
bairros, conhecidos por compounds, tinham vedações, cancelas e guardas à
entrada, como um condomínio privado. Se algum chinês quisesse entrar tinha de
se identificar, dizer quem ia visitar, o motivo da visita, e qual a sua ligação
com essa pessoa. Com a liberalização do mercado imobiliário em Pequim no início
da década de 2000, esta segregação residencial esbateu-se. Nos antigos
compounds e nos novos bairros residenciais da cidade coexistem chineses e
estrangeiros. A capacidade económica é agora peneira para a disposição
residencial.
Os locais de diversão na cidade estavam também muito segmentados; segundo os
meus amigos chineses, havia locais para estrangeiros e locais para
chineses. Nestes locais, não havia proibições ou necessidade de identificação
por força de lei, mas nalguns locais de diversão noturna frequentados por
chineses só entravam estrangeiros quando acompanhados por outros chineses.
A diferenciação entre chineses e estrangeiros ocorria, e ainda hoje continua a
ocorrer, nas relações comerciais em geral. Qualquer aquisição feita com base
num preço que não esteja afixado tem de ser regateada. Se o cliente for
estrangeiro, o preço inicial será imediatamente inflacionado, muitas vezes para
o dobro ou triplo, dificilmente baixando de um determinado valor. Os produtos
em causa podem ir de algumas peças de fruta num mercado de rua a um bilhete de
autocarro nalgumas regiões do país.
Quando questiono os meus interlocutores chineses sobre este facto, respondem-me
quase sempre da mesma forma: Na China pensa-se sempre que os estrangeiros são
ricos e que os chineses são pobres, por isso pede-se sempre mais dinheiro a
quem é estrangeiro.
Ainda hoje, mais de três décadas depois do início da Política de Abertura, e
estando a China a tornar-se a maior potência económica mundial, permanece a
ideia de que o estrangeiro (neste sentido identificado como o ocidental /
moderno) é necessariamente mais rico. Esta riqueza do estrangeiro expressa
muito mais do que ter dinheiro, significa ter poder por se encontrar numa
situação historicamente percepcionada como privilegiada. Esta noção de
riqueza, ligada ao poder e não apenas ao dinheiro, é transversal à sociedade
chinesa. Ellen Hertz (1998), na sua etnografia sobre a Bolsa de Valores de
Xangai, confrontou-se com o facto de os seus interlocutores, alguns deles
homens de negócios chineses, se considerarem mais pobres do que ela, uma
estudante de doutoramento vinda dos Estados Unidos.
Assim, tal como acima descrevo, o estrangeiro no sentido de laowai acaba por
ter ainda mais dimensões sociológicas do que as descritas por Simmel. A
complexidade da relação da China com o ocidente e a modernidade parece, pois,
estar bastante presente nesta categoria.
WAIDIREN E DANGDIREN: CHINESES DISTANTES E CHINESES PRÓXIMOS
Apesar de me encontrar na capital de um dos últimos estados socialistas do
mundo, quando estive em Pequim fui-me apercebendo de que o modo de organização
da vida quotidiana se baseava numa forte estrutura de diferenciação entre
pessoas, a qual não se restringia apenas às relações entre chineses e
estrangeiros. Havia também importantes distinções no interior da categoria
chineses, nomeadamente entre waidiren ' pessoas de fora ou forasteiros ', e
dangdiren ' pessoas locais ' ou beijingren ' pequineses. Um dia em conversa com
um outro amigo chinês, estudante de inglês oriundo da província de Jiangxi, ele
avisou-me: Agora tens de ter muito cuidado a andar em Pequim. A cidade está
cheia de waidiren [gente de fora]! Estes waidiren são huai ren [gente má ou
estragada] que rouba e mata! Esta semana saiu no jornal que uma mulher foi
violada aqui perto [em Haidian]. E tudo isto começou desde que chegou esta onda
de waidiren. Estranhei um pouco o aviso, na medida em que também Yi era um
forasteiro. Foi então que ele me explicou que os waidiren de que falava não
eram meramente pessoas de fora, estudantes como ele, mas gente empobrecida que
tinha vindo das áreas rurais para a cidade trabalhar, mas também, segundo ele,
para roubar e cometer outros crimes.
Em Pequim, estes migrantes internos eram classificados como waidiren
(forasteiros), por oposição aos beijingren (pequineses). Mas o termo não
significava inocuamente forasteiro, antes era usado num sentido
extraordinariamente pejorativo, pressupondo tratar-se de pessoas em situação
ilegal e potencialmente criminosas. Estes migrantes internos, que o governo
designa por liurenkou (população flutuante), são tolerados por serem
economicamente necessários às grandes cidades chinesas como Pequim.
Politicamente, eles são descritos como ameaças latentes à paz, tranquilidade e
segurança dos locais. Por toda a cidade era possível observar um elevado número
de trabalhadores humildes a fazer trabalhos, sobretudo físicos e mal pagos,
rejeitados pelos pequineses, principalmente na construção civil, que teve uma
enorme explosão nesse período. Esta população flutuante ocupava as áreas mais
degradadas da cidade, não tinha acesso a proteção social por terem um hukou
(registo de residência) rural e residirem ilegalmente na cidade.
Na realidade, em 1999, os waidiren em Pequim não eram um fenómeno tão recente
quanto Yi parecia julgar. Já em 1995, o governo central e o município de Pequim
haviam levado a cabo uma campanha política contra a presença descontrolada de
migrantes internos, nomeadamente contra a Zhejiangcun (aldeia de Zhejiang), um
dos maiores enclaves da capital, cujo poder e autonomia crescentes eram vistos
como uma potencial ameaça ao Estado socialista (Zhang 2000:173).
As relações do Estado chinês com a população flutuante tem sido dúbia ao longo
das duas últimas décadas, alternando entre campanhas de limpeza com a sua
expulsão das cidades em determinados períodos, alegando razões de segurança, e
uma maior flexibilização das regras do hukou, permitindo às pessoas encontrarem
trabalho fora das suas áreas de residência dentro do limite da lei.[7]
Waidiren e laowai têm em comum o facto de não pertencerem ao grupo interior e
para ele poderem constituir uma ameaça. Todavia, também podem ser benéficos. Os
waidiren são economicamente necessários, mas ao mesmo tempo são criminosos em
potência. Os laowai são benéficos pelo investimento e conhecimento sobre a
economia e capitalismo global que trouxeram e trazem à China, mas são
percecionados como uma ameaça latente de destabilização da integridade e
unidade da nação. No passado foram as Guerras do Ópio, a invasão de Pequim e a
imposição de uma situação semicolonial à China, mais recentemente apoiam causas
como a soberania do Tibete, de Xinjiang ou de Taiwan e agitam a bandeira dos
direitos humanos. Na ótica de muitos chineses, estas atitudes revelam que os
laowai não têm capacidade, nem abertura, para compreender a China e os
chineses, que não existe uma gongtongdeyuyan' uma linguagem comum. É esta
perceção da inexistência de uma linguagem comum que torna os estrangeiros,
nomeadamente os ocidentais, distantes. Este é o mesmo motivo pelo qual a
vendedora de bilhetes na estação de Pequim se recusou a negociar comigo ' a
perceção e o preconceito de que chineses e ocidentais, em muitos domínios,
possuem visões do mundo incompatíveis.
ETNOGRAFIA PARA PRINCIPIANTES: SER ESTRANGEIRA NA PRÓPRIA TERRA
Voltei a Lisboa, vinda de Pequim, em meados do ano de 2001. Foi então que me
dediquei a uma segunda investigação com chineses, desta vez sobre mulheres
chinesas migrantes em Lisboa (Rodrigues 2009). Nesta segunda experiência de
terreno, iria trabalhar com migrantes chineses recém-chegados da República
Popular da China, com muitos indivíduos em situação de permanência irregular no
país. A experiência em Pequim tornou-me consciente do modo como os chineses me
viam como uma estrangeira e de que esta barreira era inultrapassável, dada a
minha aparência não chinesa. Eu sabia agora que nunca conseguiria passar
despercebida no grupo e que teria necessariamente de lidar com a condição de
estrangeira no terreno, mesmo tendo um domínio razoável da língua. Falar
mandarim (embora como uma estrangeira) e ter vivido na China eram aspetos
favoráveis, mas, como estrangeira, eu tinha de estar preparada para lidar, e
se possível desmistificar, os estereótipos subjacentes à categoria de laowai
entre os chineses. Ser laowai implicava não apenas que eu poderia ser uma
potencial ameaça, mas também ser considerada muito diferente no meu modo de
vida, moralidade e visão do mundo.
Numa fase inicial pensei ultrapassar as dificuldades mostrando, ingenuamente,
que poderiam confiar em mim por ser uma investigadora séria e profissional. A
minha primeira entrevistada, que conheci através de uma colega no meio
universitário, era uma mulher licenciada que fazia um MBA numa faculdade de
economia em Lisboa. Nessa altura eu estava em início de carreira, era monitora
na universidade, e fui-lhe apresentada como uma antropóloga, docente na
universidade, interessada em fazer um trabalho de investigação sobre mulheres e
migração chinesa. Quando lhe falei do meu trabalho, ela acedeu a participar, e
passei várias tardes em sua casa a conversar.
Ela interessou-se pelo meu trabalho e apresentou-me a dona de um restaurante
chinês onde costumava ir, perto de sua casa. Perante a amiga, a dona do
restaurante concordou receber-me e falar comigo dali a algumas semanas. Porém,
quando voltei a contactá-la, fui interpelada pelo marido, que me perguntou se
eu era jornalista, uma vez que queria entrevistar a sua mulher.[8] Sem
conseguir convencê-lo totalmente das minhas intenções, ele lá acabou por me
dizer que, se a mulher quisesse, poderia falar comigo. Marquei encontro com ela
ainda nesse dia à tarde, quando a cozinha encerrasse no final dos almoços.
Quando cheguei ao restaurante, uma empregada foi chamá-la, e ela apareceu na
sala de refeições pronta para sair com um casaco vestido e a carteira a
tiracolo. Disse-me então que não podia falar comigo porque estava doente e
tinha de ir ao médico. Fiquei surpreendida por nada me ter dito nessa manhã.
Disse-lhe então que voltaria noutro dia e, desejando-lhe as melhoras, saí do
restaurante. Enquanto entrava no meu carro, do outro lado da rua, fiquei
estupefacta quando a vi voltar a entrar na área reservada do restaurante e
regressar sem casaco nem carteira para se juntar aos empregados que comiam numa
das mesas. Apesar do compromisso assumido perante a amiga, ela não queria falar
comigo.
Este episódio foi muito marcante no início do meu trabalho de campo. Se uma
imagem de seriedade profissional funcionava com pessoas com educação superior,
que conseguiam confiar na natureza do meu trabalho de investigação, esta
estratégia não funcionava com migrantes chineses com baixo nível educacional, o
que correspondia à maioria dos migrantes chineses em Lisboa.[9] Durante semanas
refugiei-me na literatura à procura de uma estratégia milagrosa para os
convencer, pelo menos, a falar comigo. Ainda sem uma resposta para o problema,
apercebi-me da abertura revelada pelos donos do restaurante chinês perto da
universidade, um casal oriundo de Zhejiang, vindo de Espanha há alguns anos, e
que eu já conhecia antes de ir para Pequim. Por falar mandarim, frequentemente
eles solicitavam-me que lhes ensinasse português ou que os ajudasse a resolver
um ou outro problema relacionado com o seu fraco domínio da língua portuguesa.
Ao contrário da experiência com o outro casal, estes não me afastavam e até
pareciam ter interesse em relacionar-se comigo. O facto de a relação ter
começado com uma casual relação comercial, e já durar há alguns anos, gerou uma
base de confiança da parte deles, permitindo a minha aproximação.
Aproveitando este interesse dos chineses pela minha capacidade de comunicação
em português e mandarim, numa fase de mudança para um novo edifício, a
faculdade onde eu trabalhava teve espaço nas instalações antigas e consegui
autorização do diretor para lecionar gratuitamente aulas de português a
chineses. Fi-lo durante dois anos. As aulas decorriam no intervalo do horário
de trabalho, entre o almoço e o jantar dos restaurantes (das 15h30 às 17h30).
Cheguei a ter 30 a 40 pessoas na sala de aula, embora à medida que os meses
passavam o número diminuísse, para depois voltar a aumentar no início do ano
letivo seguinte. Eram sobretudo recém-chegados, empregados de restaurantes e de
lojas. Diziam trabalhar muito e ceder ao cansaço quando à noite, finalmente,
tinham algum tempo para dedicar ao estudo da língua. Algumas pessoas vinham do
Martim Moniz, mas a maioria vinha de Belém, Alcântara e Algés.[10] Apesar do
horário previamente estabelecido, muitos chegavam depois da hora, quando a aula
já tinha começado, e saíam antes de terminar. Raramente se dirigiam a mim e
evitavam o preenchimento do número de identificação e do contacto na ficha de
aluno, admito que por estarem em situação legal irregular.
Na prática, poucas ligações ou até interações consegui manter com eles fora do
contexto da aula. Contudo, no Natal enchiam-me a mesa com as lembranças mais
diversas, acompanhadas por um tímido e fugidio Feliz Natal! De entre todas
aquelas pessoas, consegui estabelecer relação com três famílias. Desde o início
que me foi sempre mais fácil estabelecer relações com pessoas com um nível de
escolaridade mais elevado, mesmo que trabalhassem em Lisboa como empregados de
mesa ou ao balcão de lojas, e com mulheres. Foi através dos meus antigos alunos
chineses dessas aulas de português que comecei a frequentar restaurantes, lojas
e casas de migrantes chineses na cidade de Lisboa. Quando lhes aparecia em
casa ou no trabalho, num encontro previamente combinado, quase sempre me
confrontava com pedidos de ajuda na resolução de problemas. Os pedidos mais
comuns eram explicar o conteúdo do correio, como funcionam os seguros, como
funciona o Sistema Nacional de Saúde, falar com os professores na escola dos
filhos, esclarecer sobre documentação pedida pelo Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras (SEF), entre outros. Muitas vezes, pediam-me também que fosse lá
ensinar-lhes um pouco de português. Este foi o modo como lentamente entrei nas
suas vidas.
Logo a partir dessa altura passei a ser vista como professora e não tanto como
antropóloga ou investigadora (a maioria não compreendia o significado destes
termos), não apenas por lecionar na universidade, mas principalmente por ter
ensinado português a chineses. A classificação de professora foi-me muito útil
na realização do trabalho de campo para mestrado e doutoramento. Não é fácil
explicar qual o trabalho de um antropólogo, ou que tipo de investigação é que
realiza, nomeadamente a chineses com baixo nível de instrução, principalmente
quando já existe uma forte resistência devido à minha identidade de
estrangeira. Aprendi a não usar a palavra entrevista, mas a designar estes
eventos por conversas ' que na realidade eram. Acompanhar chineses pelo Martim
Moniz permitiu-me fazer observação participante e alargar a minha rede de
interlocutores, o que foi largamente compensatório, permitindo-me vivenciar de
perto as suas experiências como migrantes. Como referem Sarró e Lima (2006:
18), a partilha do quotidiano com as populações que se estuda é um dos eixos
definidores do trabalho de campo, tanto em terrenos metropolitanos como na
etnografia clássica. Assim, ao adaptar a minha forma de estar no terreno à
forma de estar na vida dos meus interlocutores, eu acabei por partilhar com
eles o seu quotidiano, ter a oportunidade de fazer observação participante e,
com o tempo, de conversar com eles também sobre assuntos que me interessavam.
Em última instância, ao deixar que fossem os meus interlocutores a encontrar o
meu lugar nas suas vidas, consegui encontrar os pontos de contacto de que falam
Viegas e Mapril na introdução a este dossiê. Porém, a minha atitude por vezes
mais contemplativa de apenas estar por lá não deixou de causar uma certa
estranheza aos meus interlocutores, que me perguntavam: Hoje tens tempo? Não
tens de trabalhar?Normalmente respondia: Quando converso contigo / com vocês
eu estou a aprender coisas para o meu trabalho, e por isso estou a trabalhar.
Geralmente reagiam a esta resposta com um sorriso.
DE ESTRANGEIRO DISTANTE A ESTRANGEIRO FAMILIAR
Um dia em 2003, quando visitava uma aluna na sua loja no Martim Moniz, ela
apresentou-me uma das suas duas filhas, recém-chegada da China. Três semanas
mais tarde chegou o neto de 10 anos, filho da filha, e ela perguntou-me se não
me importava de dar aulas de português ao neto duas vezes por semana, ali mesmo
na loja. O filho desta mulher também estava em Lisboa e, passado alguns anos,
regressou à China para casar com uma rapariga da terra natal dos pais. Depois
do casamento, ela juntou-se ao marido em Lisboa. Cerca de um ano depois nasceu
o primeiro filho do casal e eu fui convidada a ser madrinha. Alguns meses mais
tarde, os pais da mulher vieram a Lisboa conhecer o neto. Quando me desloquei à
China em 2010, visitei-os na sua terra natal.
Ao longo do trabalho de campo, nas minhas visitas e deambulações por lojas,
armazéns chineses e restaurantes chineses do Martim Moniz, testemunhei várias
versões do diálogo que me humanizava como estrangeira distante aos olhos dos
chineses.
O que é que esta laowai está aqui a fazer?
Ela fala putonghua [mandarim], é professora na universidade e foi liuxuesheng
[estudante estrangeira] em Pequim.
Ah. [OK]
A esta descrição normalmente seguia-se um sorriso e uma curta conversa para
confirmar se eu falava mesmo mandarim. Nalgumas situações eu quase passei por
chinesa. Numa véspera de ano novo chinês, eu estava no estabelecimento de uma
família no Martim Moniz, onde os donos resolveram organizar uma pequena festa.
Durante a tarde assistiu-se à gala anual de Ano Novo transmitida pela CCTV,
fizeram-se jiaozi (pequenos pastéis de massa recheada com carne e / ou
vegetais), comeram-se amendoins, tangerinas e doces. Clientes, amigos e
conhecidos acorreram ao estabelecimento para espreitar o programa (transmitido
via parabólica) por alguns minutos, ou para deixar as crianças a assistir. A
anfitriã divertiu-se bastante com as conversas dessa tarde em reação à minha
presença:
Ah, quando entrei pensava que ela era waiguoren.
Mas ela é waiguoren!
Ah?! [o quê?!]
Em momentos de celebração como este, contagiados por uma intensa alegria e boa
disposição, os meus amigos chineses entusiasmados exclamavam: Ta yiban shi
zhongguoren! ' Ela é metade chinesa! Em situação oposta a esse momento em que
fui considerada (quase) meia-chinesa, a minha presença em momentos de tensão
social e familiar gerou situações desconfortáveis e remeteu-me para a minha
condição de ignorância, por ser laowai. Quando perguntava o porquê da atitude
de uma determinada pessoa perante uma situação difícil, ou até quando me
atrevia a aventar uma solução mais à portuguesa, a resposta que
invariavelmente eu ouvia era: Tu não és chinesa. Não percebes. Nestas
ocasiões eu voltava a ser a estrangeira distante e sem capacidade de
compreensão da sua visão do mundo. Os benefícios da minha presença iam além da
resolução de problemas práticos do quotidiano e do ensino de português.
Nalgumas situações, aparecer com uma amiga estrangeira era capitalizado pelos
chineses que eu acompanhava, perante outros chineses, como uma forma de
promover a sua mobilidade social ascendente. Desta forma expressavam o seu
sucesso em Portugal.[11]
Ao longo dos anos, a minha presença desafiou os meus interlocutores a
encontrarem para mim um lugar no seu mundo. Se em Lisboa eu sou professora,
antiga estudante estrangeira em Pequim, quando fui visitar Wenzhou, a terra
natal de muitos dos meus interlocutores em Lisboa, um casal (Zhou e Li) que
conheci em Lisboa há vários anos resolveu adotar-me e apresentar-me perante os
seus vizinhos e amigos na aldeia como a sua quarta filha. Quando Zhou e Li
diziam aos vizinhos que eu era a sua quarta filha, eles olhavam muito
atentamente para mim e exclamavam: Não pode ser! Ela é waiguoren! Mesmo no
interior da família, onde fui estimulada a chamar aos meus pais adotivos A-Ma
(mamã) e A-Ba (papá), ou jiejie (irmã mais velha) e gege (irmão mais velho) aos
meus irmãos de adoção, mantinha a condição de estrangeira perante a geração
mais nova.
Quando eu tentava falar com os meus sobrinhos adotivos, crianças e adolescentes
entre os 12 e os 17 anos, não havia da sua parte nenhuma reação corporal ' não
me olhavam sequer. Apenas murmuravam qualquer resposta muito rápida e
escapatória quando coagidos por algum adulto para o fazerem: Responde à Ayi! A
Ayi está a falar contigo! Estás a ouvir?! Apesar do termo Ayi ser de aparente
proximidade, já que significa tia ' um termo educado usado para chamar as
mulheres da geração da mãe ', eles viam-me como uma estranha, uma estrangeira.
Por isso não me falavam nem me olhavam diretamente. Mas havia uma exceção: a
atitude de uma das crianças, nascida e educada em Portugal, que estava apenas
temporariamente na China a passar férias em casa dos avós. Com esta criança eu
interagia frequentemente e ela falava comigo e olhava-me de frente. Uma noite
os adultos tomaram este contraste de atitudes das crianças para exporem
verbalmente o que pensavam sobre a minha posição ali e mais ainda sobre o que
justificava essa diferença entre as crianças. Uma das irmãs dizia que a reação
dos filhos e sobrinhos chineses, por oposição ao sobrinho português, é um
reflexo do facto de as crianças chinesas serem ensinadas desde tenra idade a
não interagirem com estranhos de modo nenhum. Apesar de os pais e avós
assegurarem às crianças que eu era da família e que deveriam tratar-me como a
xiaoyi ' a tia mais nova ', elas nunca conseguiram ultrapassar essa barreira. A
sua relutância em se relacionarem comigo estaria relacionada com o facto de eu
não pertencer à sua rede de relações até ali, mas em parte também devia-se à
minha ausência de ancestralidade chinesa.
Na China, a prole é considerada um bem valioso para a família, pois assegura a
sua continuidade, tanto nas gerações vindouras, como pelo sustento das gerações
mais velhas em vida e depois da morte. Por esse motivo, as crianças sempre
foram protegidas das ameaças dos estranhos. Na atualidade, as crianças chinesas
vivem condicionadas por uma vivência muito limitada no interior da família e da
escola. À medida que vão crescendo, vão formando vários círculos de segurança
' a família, o grupo de pessoas da sua terra de origem, o grupo de pessoas da
mesma origem nacional, expressando receio em interagir com pessoas exteriores.
Assim, quando se encontram num país estrangeiro, como Portugal, os chineses
tendem a reatualizar esta forma de entender o mundo baseada na diferenciação
entre pessoas de dentro (família, terra de origem, nacionalidade) e pessoas de
fora (estranhos, forasteiros, estrangeiros), e a preferirem interagir com quem
consideram que os compreende. Durante o trabalho de campo, vários migrantes
chineses me falaram sobre os seus sentimentos de solidão e de isolamento em
Lisboa, mesmo em relação a outros chineses, confessando-me a sua dificuldade em
fazerem amigos chineses (para não mencionar portugueses) em quem pudessem
verdadeiramente confiar, como se confia na família e nos amigos de longa data.
CONCLUSÃO
A minha situação de estrangeira entre chineses foi uma condicionante
fundamental do percurso etnográfico. Descrevi aqui o caminho que percorri, não
tanto pelos seus meandros reflexivistas sobre a experiência de campo como
experiência pessoal, mas como parte do processo de conhecimento etnográfico:
neste caso, sobre ser laowai. Se a descoberta do terreno foi para mim um
percurso em direção à familiaridade com o espaço, que de longínquo passou a
próximo (Sarró 2008: 151), para os meus interlocutores foi um processo de
humanização da minha pessoa estrangeira, dotando-me, aos seus olhos, de alguma
capacidade de compreensão da sua forma de estar no mundo. Este processo só foi
possível porque categorias de classificação distantes e vastas como ocidental,
americano, ou chinês foram deixadas para segundo plano, a partir do momento em
que foram encetadas relações sociais mais próximas, abrindo a possibilidade de
compreensão mútua.
Os sentidos implicados nesta categoria poderiam ser então e por último pensados
a partir do que Simmel nos diz sobre a condição de estrangeiro em The
stranger (1979 [1908]), nomeadamente da tensão existente nesta relação, que é
simultaneamente de distância e proximidade. A minha descrição da categoria de
laowaineste artigo pretendeu mostrar que a compreensão mútua e até a
proximidade também fazem parte dos significados de se ser laowai. Para a
compreendermos, temos de a situar na própria história de exclusão / inclusão
que mostrei estar inscrita na história chinesa e estar presente nos modos de
relacionamento e categorização de pessoas entre os chineses emigrados em
Lisboa. Ao mesmo tempo, mostrei que, mesmo quando essa proximidade parecia
íntima e estabelecida, essa mesma condição de ser laowai podia projetar-me de
novo para a minha condição de estrangeira, e novamente ser vista como uma
laowai.
Ao ser laowai, experimentei os limites que a categoria implica no acesso a
determinados níveis de proximidade e de interação. A abordagem epistemológica
da condição de laowai possibilitou alcançar um sentido mais analítico do modo
como se desenvolveram os processos de interação entre a etnógrafa e os
interlocutores no terreno e proceder a uma reconfiguração das categorias de
conhecimento considerando laowai como uma categoria nativa historicamente
situada.