De Casa em Casa: Sobre um Encontro entre Etnografia e Cinema
Filomena Silvano(ensaio) e João Pedro Rodrigues (documentários), De Casa em
Casa: Sobre um Encontro entre Etnografia e Cinema, Caldas da Rainha, Palavrão
- Associação Cultural, 2012, 82 páginas + DVD, ISBN 978-989-97559-2-5.
Nuno Crespo
Instituto de História da Arte, Universidade Nova de Lisboa, Portugal,
nunocrespo.iha@fcsh.unl.pt
Trata-se de uma edição de dois filmes e um texto. Portanto, um não vive sem o
outro e só do encontro entre estas duas peças nasce o sentido do projeto. E o
conceito de encontro é o que mais lhes convém, porque nem as imagens de João
Pedro Rodrigues (JPR) partem das palavras de Filomena Silvano (FS) ou as usam,
nem as palavras desta comentam as imagens daquele. A relação dá-se na total
liberdade disciplinar de cada uma das peças e no modo como, sem
condescendências, cada um dos autores obedece às regras, princípios e
formalismos do seu campo de atuação.
O texto de FS mostra que o exercício cinematográfico de JPR apresenta um
conjunto forte de questões associadas à emigração e ao modo como no contexto da
deslocação social, cultural e afetiva a identidade e a cultura se desenvolvem.
Estes filmes permitiram à antropóloga encontrar o seu objeto de estudo:
Parece-me que ele [o filme do JPR] dá muito mais conta de algumas das minhas
questões do que as aproximações que os antropólogos lhes fazem. O filme não
permite fazer uma leitura linear do espaço, mas consegue dar conta das minhas
interrogações sobre o facto de a vida daquelas pessoas ser aquele permanente
estar em trânsito. A opção do JPR [de] filmar daquela maneira aquelas pessoas
prende-se com questões de cinema, mas foi ele que me permitiu observar aquilo
[de] que andava à procura (entrevista publicada no suplemento Ípsilon do
jornal Público, 15 / 03 / 2013). Portanto, é sobre esta vantagem do cinema que
FS trabalha, não camuflando a sua natureza muitas vezes performativa e sempre
projetiva, ou seja, trata-se de cinema e, portanto, há encenação, há pose, há
construção e, sobretudo, há por parte de quem é filmado a consciência da
presença da câmara e da sua ação de fixação das imagens.
A motivação de todo o projeto teve que ver com as questões da deslocalização
da cultura e com as formas de a dar a ver. Queríamos mostrar como é que os
membros de uma família, de origem portuguesa mas em viagem constante entre duas
aldeias de Trás-os-Montes e a cidade de Paris, constroem os seus próprios
universos culturais e, consequentemente, as suas identidades. Nesse ano
[refere-se a 1997] acompanhámos e filmámos o quotidiano da família nos
percursos entre as suas duas casas de Paris e as casas dos pais de ambos em
Trás-os-Montes. Entretanto foi-se desenhando, face ao desejo da família de
visitar a Expo'98, um segundo projeto de filme, a rodar em Lisboa durante o
verão de 1998 (p. 9).
Se uma das premissas deste projeto é dar a ver os mecanismos da construção da
identidade e da cultura, a outra é fazê-lo através do cinema, ou seja, não é um
meio neutro e nem JPR um realizador qualquer. Escreve FS: quando aceitei
trabalhar com o JPR num projeto de documentário, fi-lo com a consciência de que
ia trabalhar com um cineasta. Ou seja, com alguém para quem filmar um
documentário era um exercício de cinema (e não um exercício etnográfico,
sociológico ou jornalístico). Quero com isto dizer que desde o início foi claro
para mim que estava a acompanhar a realização de um filme que, na sua essência,
não era determinado por questões conceptuais que tivessem origem no saber da
antropologia (p. 10).
Ao longo do livro FS descreve com muita precisão e profundidade os problemas
relacionados com os lugares da cultura (vistos da perspetiva do emigrante), as
viagens à terra e o facto de o ser emigrante implicar um conjunto forte de
traços característicos relacionados com o modo como cada um imagina ser a sua
nação e o seu papel na construção dessa ideia, mas na introdução FS consegue,
numa brilhante síntese, dar conta do modo como o cinema (sempre diferente do
filme etnográfico) consegue levar vantagem sobre a escrita corrente da
antropologia: o João Pedro conseguiu aí ultrapassar o problema, tão frequente
na escrita etnográfica e no filme documental, da ausência das pessoas. Nesse
filme [refere--se a Esta é a minha casa], aquilo que mais me impressionou foi
a força, inequivocamente verdadeira, dos corpos de José e de Jacinta. Uma
presença cuja existência é obviamente cinematográfica (p. 11). E umas linhas
mais à frente acrescenta: é como se os corpos contivessem, logo na sua
primeira aparição, as verdades dos personagens (p. 11).
E esta verdade dá o testemunho que a etnografia tradicional nunca poderia
revelar, não só pelas limitações da escrita metodológica da etnografia, mas
também porque a cena antropológica, ou seja, a identidade das pessoas, é
composta por elementos mutantes e multissituados, ou seja, é feita de
percursos. O cinema, através da montagem e do modo como faz aparecer
simultaneamente elementos tão díspares, consegue mostrar esse movimento e
permanente metamorfose.
O movimento, que é o movimento dos filmes de JPR e do texto de FS, é feito
entre cinco casas distintas distribuídas entre Paris e Trás-os-Montes, entre a
exiguidade de uma casa de porteira num prédio da Paris burguesa, a vivenda de
fim de semana nos arredores da capital francesa e as casas da família na
aldeia. E é neste contexto que aquelas pessoas se constroem. Escreve FS:
queria perceber como é que os seus membros construíam as suas identidades
pessoais e como é que cada um representava a sua condição de pessoa em
constante movimento entre a ruralidade de um país periférico e a urbanidade de
um país central (p. 20). Trata-se aqui de uma tensão entre mobilidade e
localização que não é só geográfica, mas relativa ao modo de vida e à
configuração das escalas de valor.
Se a análise do discurso e das práticas sociais permite traçar um quadro de
identificação cultural, os filmes permitem perceber o modo como o corpo tem um
papel fundamental nos processos descritos. Essa ideia de que a cultura se toma
num corpo (e a que FS chama embodiment) só muito raramente é assumida pela
etnografia, ainda que se saiba não ser possível uma cultura sem corpo. Escreve
FS: No caso de José [o homem do documentário], de uma forma muito mais óbvia
do que no caso de Jacinta, a diversidade das formas que o seu corpo assumia foi
uma revelação. Nas imagens visionadas foi possível identificar pelo menos
quatro formas corporais, a que chamarei, para organizar as ideias, o corpo do
imigrante, o corpo do artesão, o corpo do emigrante e o corpo do crente
(p. 61). A descoberta é feita pelo olhar do cinema, porque esse conjunto de
corpos se forma a partir do estabelecimento de diferenças subtis, estéticas e
expressivas, que só o mais rigoroso exercício do cinema pode tornar
comunicáveis. Ou seja, o cinema torna presente o corpo que é o objeto
fundamental da antropologia, mas quase sempre ausente.