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variedadeEu
ano2012
fonteScielo

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Apresentação do Número Temático Apresentação do Número Temático

Carla Moleiroa, Nuno Pintob, Henrique Pereirac aProfessora Auxiliar - Instituto Universitário de Lisboa - ISCTE­‑IUL / CIS bEstudante de Doutoramento - Instituto Universitário de Lisboa - ISCTE­‑IUL / CIS cUniversidade da Beira Interior

Saúde e Bem­‑Estar Individual, Familiar e Social de Pessoas LGBT É com muito gosto que damos as boas­‑vindas aos leitores da Revista Psicologia a este número temático que reúne um conjunto de trabalhos teóricos e empíricos sobre a saúde e bem­‑estar de pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgénero (LGBT), no âmbito do seu ciclo de vida desde a infância/adolescência à vida adulta, do ponto de vista individual, familiar e/ou social.

Embora muita literatura exista na Psicologia sobre questões LGBT, esta tem permanecido relativamente invisível e de difícil acessibilidade aos profissionais (Goldfried, 2001). Tal é particularmente saliente em Portugal, onde os estudos sobre orientação sexual e identidade de género se encontram ainda numa fase embrionária (Vale de Almeida, 2010). Ainda assim, o bem­‑estar e a afirmação das pessoas LGBT, bem como o desenvolvimento de práticas de saúde sensíveis à diversidade sexual, têm estado na base de estudos recentes, em paralelo à crescente visibilidade das pessoas LGBT e das suas famílias em todo o mundo. O presente volume pretende, assim, contribuir para a disseminação de trabalhos científicos desenvolvidos neste domínio e para o processo de mainstreaming da literatura e temáticas LGBT, fazendo­‑as chegar perto de profissionais de saúde, de saúde mental, de educação, de intervenção social, e muitos outros.

Parece­‑nos importante, desde logo, notar que a Revista Psicologia, desde a sua origem em 1980, não tenha tido até hoje um número temático dedicado às temáticas e questões específicas relativas à orientação sexual e à identidade de género. Não são, porém, raros os exemplos de números temáticos desta e de outras revistas nacionais dedicados à discriminação com base no sexo e género, ou na origem étnica e relações interculturais. Este é o reflexo da invisibilidade da população LGBT, não na sociedade, mas também na comunidade científica. E este é também um importante contributo e a relevância do presente número desta Revista.

O momento em que surge este volume não nos parece casual. Os últimos anos têm sido caracterizados, em Portugal, por consideráveis mudanças ao nível do contexto LGBT (Vale de Almeida, 2010), marcados por trabalho associativo e legislativo (nomeadamente, a igualdade de acesso ao casamento civil em 2010; ou a lei de identidade de género em 2011). Estas mudanças foram acompanhadas pelos meios de comunicação social e foram­‑se traduzindo em imagens sociais em transformação das pessoas LGBT (Costa, Pereira, Oliveira & Nogueira, 2010).

A Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género promoveu a realização do mais alargado estudo, até à data, sobre a dimensão e os contornos da discriminação com base na orientação e identidade de género no nosso país, publicado em dezembro de 2010, sob a coordenação de Conceição Nogueira e João Oliveira, enquadrando claramente estas questões no âmbito das ciências psicológicas.

A responsabilidade científica e ética da Psicologia perante estes temas surge como inegável. De facto, a Psicologia, a par de outras ciências, foi também historicamente responsável pela patologização das pessoas LGBT e é, por isso, particularmente responsável hoje pela divulgação e partilha de conhecimento científico atualizado e das investigações realizadas com estas populações junto dos seus pares e da comunidade em geral, consistente com os princípios éticos da competência e da responsabilidade científicas (Código Deontológico; Ordem dos Psicólogos Portugueses, 2011).

Este reconhecimento é partilhado internacionalmente. Uma pesquisa na PsycInfo, com as palavras­‑chave gay, lesbian e sexual orientation, entre 2001 e 2011, produz cerca de 3000 artigos científicos e outras publicações. Em igual período, a PubMed produziu 404. Com efeito, na área da saúde de pessoas LGBT e a sua inclusão em estudos publicados, Sousa, Garrett e Moleiro (submetido) efetuaram uma revisão sistemática da literatura que salienta que, por um lado, ainda são poucos os estudos que são inclusivos em relação à orientação sexual e, por outro, as temáticas abordadas estão longe de ser sistemáticas e abrangentes.

Muitas destas investigações tendem a descrever o impacto negativo que as pressões e a falta de proteção social provoca nas pessoas LGBT, devido à não conformidade com a norma, muitas vezes traduzida na discriminação, apresentado maior vulnerabilidade psicológica do que outras populações normativas, apresentando, por exemplo, maiores níveis de depressão, intenção suicida e ansiedade e perturbações de pânico (Mays & Cochran, 2000; Fergusson et al., 1999; Atkinson et al., 1998; Ayala & Coleman, 2000; McGrath et al., 1990).

Aliás, o Relatório da European Union Agency for Fundamental Rights (2009), Homophobia and Discrimination on Grounds of Sexual Orientation and Gender Identity in the EU Member Statesconcluiu que existe discriminação e homofobia/ transfobia nos próprios sistemas de saúde dos estados membros, embora a sua prevalência seja difícil de calcular devido à invisibilidade das pessoas LGBT.

Ainda assim, nas últimas décadas, os/as psicólogos e os/as investigadores/as em geral prestaram maior atenção ao facto de as pessoas LGBT poderem ter necessidades de saúde específicas, nomeadamente aquelas decorrentes das pressões sociais e da homofobia internalizada que poderão afetar o bem­‑estar e comprometer os níveis de saúde (Mayer et al., 2008).

É sabido que as variáveis psicossociais são um fator significativo no contexto da saúde pessoal, das famílias, dos grupos e das sociedades, e que é formado pelos costumes, pelas crenças, pelos valores, pelos conhecimentos e competências que guiam as pessoas num dado caminho de desenvolvimento pessoal.

Na realidade, as variáveis psicossociais poderão até contribuir para uma definição mais ampla de saúde, bem­‑estar ou doença, e esta condição não pode ser subestimada para as pessoas LGBT que, como dissemos, são muito diversas e pouco estudadas em Portugal.

Devido à falta de pesquisa sistematizada nesta área, nem sempre é fácil obter dados fiáveis acerca da realidade social portuguesa. As pessoas LGBT podem enfrentar a rejeição, o ostracismo e algum tipo de dano por parte de uma sociedade que pouco as legitima e, nestas circunstâncias, a negociação da visibilidade poderá ser um desafio importante. Neste sentido, torna­‑se urgente compreender o impacto na sua integridade psicológica e dinâmicas de vida. Em termos de saúde física, por exemplo, a Associação Americana Gay e Lésbica documenta em 2001 que as pessoas LGBT enfrentaram barreiras estruturais, financeiras, pessoais e culturais quando tentaram aceder aos cuidados de saúde.

Outros estudos sugerem que as pessoas LGBT estão mais expostas à ocorrência de alguns tipos de câncro, obsesidade e perturbações do comportamento alimentar (Meyer et al., 2001; Brand et al., 1992) ou menor esperança média de vida (Hogg et al., 2001).

No que diz respeito às questões de saúde mental, a literatura também sugere que o preconceito, a discriminação e a violência a que as pessoas LGBT estão sujeitas pode constituir uma importante preocupação, pois a violência anti­‑LGBT é um stressor muito relevante (Herek et al., 1999; Meyer, 1995, 2003; Rosario et al., 1996). Para além de tudo isto, a resiliência face a tais agentes de stress é muitas vezes complicada pela internalização das atitudes sociais negativas (Pereira & Leal, 2002, 2005; Meyer & Dean, 1995, 1998) e, portanto, a tarefa de obter e manter saúde e bem­‑estar individual, familiar e social não fica, assim, facilitada. Por exemplo, King e McKeown (2003) demonstraram que as pessoas LGBT apresentam menores níveis de saúde mental quando comparadas com as pessoas heterossexuais nos domínios da avaliação clínica, abuso de substâncias, violência e autoabuso e, tal como sugerem Mays et al. (2000) e Zakalik e Wei (2006), os altos níveis de risco de morbilidade psiquátrica estão diretamente associados aos níveis de experiências de discriminação vividos pelas pessoas.

Felizmente, à medida que a sociedade começa a reconhecer que as necessidades de saúde e bem­‑estar das pessoas LGBT são legítimas e merecem ser estudadas de forma positiva, vamos assistindo a uma nova fase no desenvolvimento da ciência psicológica. E, neste aspeto, este número da revista Psicologia é uma boa demonstração disso.

No seu conjunto, o presente volume apresenta artigos que espelham a multiplicidade de temas e de metodologias de investigação que hoje enriquecem o nosso conhecimento científico sobre as temáticas e as populações LGBT.

Neste sentido, o primeiro estudo apresentado, da autoria de Raquel António e colaboradores, centra­‑se sobre a temática do bullying homofóbico e transfóbico no panorama das escolas em Portugal. Numa altura em que internacionalmente têm sido especialmente mediatizadas histórias de jovens LGBT vítimas de bullying1, importa compreender esta realidade no contexto nacional, à semelhança do que tem sido feito em outros países (e.g. Stonewall, 2007).

O segundo artigo inscreve­‑se na temática do coming outdos homens gays e das suas consequências internas e externas, tendo­‑se os/as autores/as colocado do ponto de vista das pessoas LGB. Neste artigo Gabrielle Poeschl e colaboradores concluem que as pessoas LGB reportam que a população heterossexual não tem uma motivação interna para não se mostrar preconceituosa, na sua percepção, e discutem as implicações para a escolha de (não) revelar a sua orientação sexual, em termos de sentimentos negativos sobre si próprio enquanto homem gay, e/ou de discriminação percebida.

Pedro Costa, Henrique Pereira e Isabel Leal apresentam o único artigo teórico deste volume, e nele procuram sintetizar, refletir e criticar a literatura sobre as famílias homoparentais e as suas crianças. Os autores, adotando uma postura crítica, propõem que os estudos na área das famílias LGB, ao centrarem­‑se na evidência de que os/as filhos/as de casais de mesmo sexo não apresentam diferenças sistemáticas em relação a outras crianças e jovens, comprometem uma visão da diversidade.

O artigo de Jorge Gato e colaboradores avança para a perceção que futuros técnicos/as de intervenção social, da educação e da saúde têm sobre a homoparentalidade. Neste seu artigo empírico, de caráter experimental, os/as autores/as destacam uma visão heteronormativa da parentidade, por parte de futuros/as intervenientes da rede social, realçando a importância da inclusão de temáticas LGBT nos curricula universitários.

A pesquisa apresentada no quinto artigo, da autoria de Carla Moleiro e Nuno Pinto, procura responder à questão quais as principais dimensões em que se organizam as competências clínicas fundamentais para o trabalho em saúde mental com pessoas LGB, na perspetiva dos/as próprios/as clientes?. Para esse efeito apresentam um estudo qualitativo, centrado em dar voz às pessoas LGB como informantes privilegiados sobre as suas próprias necessidades, experiências e preferências. Esta linha de investigação inscreve­‑se numa perspetiva teórica que salienta a importância da formação específica dos profissionais de saúde (APA, 2009) e que salienta que, na ausência desta, os/as clientes LGB experienciam variadas micro­‑agressões no contexto psicoterapêutico (e.g.

Moita, 2006; Shelton & Delgado­‑Romero, 2001).

O penúltimo artigo, da autoria de Sónia Dias e colaboradores/as, centra­‑se na temática da utilização de serviços relacionados com a prevenção e teste de infeção por HIV. Numa amostra alargada em termos de quantidade e de representatividade do território ao Norte, Centro e Sul do país, os/as autores/ as verificaram que, apesar das dificuldades em recorrer aos serviços associadas a estigma e discriminação (e.g. Schuster et al., 2005), mais de dois terços dos participantes reportaram ter efectuado o teste do VIH, e defendem que este é um resultado positivo que alguns estudos têm verificado que o conhecimento do estatuto serológico positivo para o VIH pode resultar numa diminuição de comportamentos sexuais de risco (e.g. Marks et al., 2005).

Finalmente, o estudo de Nuno Pinto e Carla Moleiro avança especificamente para a análise dos cuidados de saúde prestados a clientes transexuais. Pensamos que, especialmente após a aprovação da lei da identidade de género, que vem permitir a mudança de nome e sexo legal com base num diagnóstico clínico, e o relevo que esta confere ao papel dos/as profissionais de saúde (nomeadamente, dos/as psicólogos/as), existe em Portugal uma importante lacuna de conhecimento sobre transexualidade e as pessoas transexuais, que este artigo pretende contrariar.

É inegável o papel que os/as profissionais de saúde desempenham no desenvolvimento psicossocial e nas trajetórias de vida das pessoas transexuais (Korell & Lorah, 2007), sendo por isto de especial importância o conhecimento acerca dos cuidados de saúde especializados prestados a pessoas transexuais no nosso país.

No seu conjunto, os artigos compilados neste número pretendem contribuir para uma missão nobre e importante, de acordo com o que nos diz a Associação Americana de Psicologia (Policy Statements on Lesbian, Gay, and Bisexual Concerns, APA, 2011): é fundamental que os psicólogos não enveredem por códigos de conduta injustos e discriminatórios, baseados na informação que detenham relativamente à orientação e à identidade sexuais. Do mesmo modo, torna­‑se fundamental que todos estejam cientes das diferenças culturais, individuais e de papel para que eliminem esses enviesamentos da sua prática profissional (p. 10).

Assim, para que o trabalho de psicólogos/as e outros/as técnicos/as nesta área seja eficaz, quer trabalhem com indivíduos, quer trabalhem com famílias ou grupos, é imprescindível a obtenção de informação científica. É neste sentido que o presente número da Revista Psicologia se reveste de enorme pertinência, na medida em que fornecerá pistas de atuação fundamentais na orientação de uma boa prática psicológica, quer no domínio da intervenção, avaliação ou investigação psicológicas.

O artigos selecionados para este número da Revista Psicologia representam as mais recentes perspetivas e contribuições para a compreensão das temáticas LGBT em Psicologia em Portugal, mas também pretendem adicionar novas reflexões e novas vozes a um debate de contrução do conhecimento nesta área que se quer que continue a acontecer no espaço social e científico português. Apesar de terem acontecido muitas mudanças políticas e sociais que são positivas, elas continuam a acontecer num contexto heteronormativo e, portanto, ainda existe muita informação científica que necessita ser produzida e, de acordo com esta perspetiva, este número é também um incentivo a que mais e melhor investigação nesta área seja realizada, aumentando o corpo de literatura científica portuguesa e, assim, promover o avanço do conhecimento.

Sabemos que uma das mais poderosas armas para desafiar o preconceito e a discriminação é, precisamente, a informação disponibilizada não através da academia, mas também pela transferência do conhecimento para as comunidades envolvidas. É, portanto, uma missão digna da ciência, desafiar o heterossexismo, a bifobia, a homofobia e a transfobia, se quisermos viver numa sociedade mais justa e que respeita a diversidade de todos os elementos que a compõem e integram.

No seguimento de todas as contribuições dos/as autores/as incluídos/as neste número, encorajamos todos/as os/as investigadores/as a continuar a investigar e a disseminar as suas conclusões, pois é vital criar uma Psicologia mais inclusiva em Portugal e no mundo, isenta de assunções he­teros­sexistas que a pesquisa e teoria psicológica dominante ainda perpetua.

Por outro lado, convidamos e encorajamos todos os/as leitores/as interessados/ as, quer sejam leigos/as, estudantes ou académicos/as, a lerem os artigos aqui reunidos de forma refletida, crítica e construtiva e a sentirem­‑se protagonistas deste momento histórico: a elaboração de um número temático da Revista Psicologia sobre Saúde e Bem­‑Estar Individual, Familiar e Social de Pessoas LGBT.


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